Miriam e Deise tinham planos para desmascarar Edson. Mas que não poderiam prosseguir naquele dia. As jovens foram interrompidas pela mãe de Miriam que a chamou para se arrumar. A família de Miriam frequentava uma igreja Batista e eram muito rígidos na criação dos cinco filhos. Miriam era a filha mais velha e tinha quatro irmãos. Geralmente os meninos estavam sempre por perto, a vigiando, a mando do pai. Gustavo, Elias, Jonas e até o menorzinho Pedrinho se mantinham firmes em sua missão de acompanhar Miriam para onde quer que ela fosse.
Deise nunca se importou com a presença deles. Para a amiga de Miriam, eles eram meninos divertidos e de convivência agradável. Também eram muito inocentes e quando Miriam e Deise queriam falar sobre algo particular, com facilidade conseguiam afastá-los, mesmo que temporariamente. Gustavo, que era dois anos mais novo que Miriam, amargava uma paixonite por Deise que jamais teve conhecimento dos sentimentos do garoto.
Seguindo o plano que tinham, Deise retornou para casa e pegou a agenda telefônica da mãe que ficava na estante da sala, próximo ao telefone fixo. A jovem mestiça folheou rapidamente o pequeno bloco de notas com capa dura e roxa, até chegar na letra M. Não demorou muito tempo para que encontrasse o nome da vizinha: Márcia.
Pegou uma das folhas de seu fichário e anotou o número. Guardou rapidamente a agenda, antes que sua mãe saísse do banheiro e a pegasse no flagra.
Deise suspirou e, puerilmente, forçou a orelha contra a parede da sala tentando ouvir o que se passava no apartamento ao lado.
Quando se mudou para aquele bloco, Deise não tardou a perceber que se encostasse a orelha nas paredes ou no chão ouviria tudo que estava acontecendo do outro lado da parede. Morava no quarto andar e às vezes ouvia conversas de quem habitava no primeiro andar.
Contudo, naquele momento não conseguira ouvir nada. Na casa de Márcia imperava o silêncio para que Edson pudesse dormir e se restabelecer para mais uma noite de trabalho.
Deise se espantou ao ouvir a mãe destrancando a porta do banheiro e dando de cara com ela na sala. Maria não percebeu o nervosismo de Deise e retornou para seus afazeres domésticos. O apartamento em que viviam tinha aproximadamente sessenta metros e devido a cozinha americana, era possível ver todos que estavam na casa a partir da sala.
Deise retornou para seu quarto e se recordou de certa vez que estava no oitavo ano do ensino fundamental e precisou alugar um filme para fazer um trabalho de geografia. Na época sua família ainda não tinha o aparelho de videocassete. Márcia, por acaso, soube da necessidade da menina e, percebendo a aflição de Maria, permitiu que a adolescente assistisse ao filme em sua casa e concluísse seu trabalho com sucesso. A vizinha também era amigável com as outras famílias que compartilhavam o mesmo andar. Mesmo assim, Márcia era muito discreta sobre sua vida pessoal.
Retornando de suas lembranças, Deise guardou o fichário em sua mesinha de estudos e, de dentro de uma caixa, retirou um vídeo game Mega Drive 16 bits que a mãe havia comprado usado em um brechó na Cupecê, próximo ao hotel Kuipers Kava. Os três únicos jogos que a menina tinha eram: o cartucho do Super Monaco GP, seu preferido, Aladdin e Sonic. Maria tinha conseguido essas fitas de sua patroa, de coisas antigas que seu filho não queria mais.
Deise não era habilidosa com os controles e jamais conseguiu concluir aqueles jogos, no entanto, se divertia bastante com eles por horas.
O ritual já começava em conectar o videogame na televisão antiga da Semp que Deise tinha em seu quarto. Era uma televisão pequena, provavelmente dos anos setenta, amarelada, com uma alça para ser carregada com facilidade, apesar do peso do tubo da tela, e continha à sua direita um painel com numeração e botões. No total eram oito opções de canais abertos que poderiam ser configurados naquela televisão. Decerto que uma jovem curiosa logo descobriu como obter mais canais.
Ao abrir o painel, se revelaria um conjunto de botões giratórios que captavam sinais VHF e UHF. Deise percebeu que, girando aqueles botões, conseguia ter a opção de encontrar até três canais diferentes para cada botão da televisão. Assim, vez ou outra, quando se cansava dos oito canais que tinha, trocava a sintonização dos botões para obter novos canais. Da mesma forma, sintonizava em um canal específico que captava a imagem de seu videogame que era conectado na televisão através de um adaptador para a entrada da antena do aparelho televisivo.
Deise se divertiu bastante jogando por horas os três jogos que possuía. Num piscar de olhos o sábado passou. No final da tarde, André retornou para casa. Como de costume, de cara amarrada, foi logo tomar um banho. Maria estava terminando de fazer a janta e Deise desligou sua televisão e guardou o videogame. André não gostava do que ele chamava de brinquedo inútil. Uma vez, André aceitou jogar o jogo de corrida com Deise. Ficou irritado por não conseguir manter o carro na pista e nunca mais quis ver o console em sua frente.
A televisão da sala, mais moderna que a de Deise, estava desligada. O silêncio imperava no ambiente. Era sempre assim quando André estava em casa. Maria e Deise evitavam incomodá-lo ou irritá-lo.
O operário de obras mantinha um relacionamento razoável e superficial com mãe e filha. O básico para a sobrevivência delas não faltava. No entanto, a escassez era de sentimentos e diálogos. Era agoniante para Deise conviver com uma pessoa que parecia um completo estranho em sua vida.
O jantar foi servido, e apenas ao som dos talheres, os três se satisfizeram com a deliciosa refeição preparada por Maria. Costelas de porco com abóbora, arroz e feijão. Ao concluírem a refeição silenciosa, André pegou uma lata de cerveja e se dirigiu ao seu quarto, fechando a porta. Logo pegaria no sono.
Maria e Deise ficaram juntas. A menina ligou a televisão e ficou assistindo a novela das sete, que não chamava a atenção de nenhuma delas. Maria arrumou a cozinha e depois juntou-se à filha no sofá da sala.
Assistiram ao telejornal da noite que anunciava mais as festas carnavalescas por todo o Brasil do que qualquer outra notícia. Em seguida, começou a novela das oito. Outra que não despertava interesse, talvez por ainda estar no início da trama.
De fato, o que ambas realmente esperavam era o início do Desfile das Escolas de Samba de São Paulo. De tanto ouvir na programação diária os enredos das escolas de samba, mãe e filha já sabiam cantar samba-enredo de praticamente todas as escolas.
Era um hábito de mãe e filha assistirem e se encantarem juntas com os desfiles das escolas que se empenharam ao longo do ano para a exibição desse magnífico show de alegria, fantasias e carros alegóricos.
Maria permaneceu com a filha até o final do desfile da terceira escola. Depois foi deitar com André. Deise desligou a televisão da sala e foi para seu quarto. Ligou sua televisão, com o som bem baixinho, e continuou assistindo aos desfiles. Não demorou muito para que ouvisse os gemidos produzidos no quarto ao lado. Tapou os ouvidos com o travesseiro e revirou os olhos.