Capítulo 9

O sol da manhã entrava pelas frestas da janela, dourando o chão do apartamento como se alguém tivesse derramado luz líquida sobre a madeira. Clara pintava de meias, com a camiseta dele — que já não era mais dele fazia tempo — e uma xícara de café esquecida sobre a mesa. Havia tinta no canto da boca e uma música instrumental preenchia o ar com uma espécie de calma concentrada.

O celular vibrou uma, duas vezes. Ela ignorou. Continuou os traços finos em azul-acinzentado, quase transparentes.

Na terceira vez, pegou o aparelho com a mão suja de tinta.

Assunto: Proposta de Exposição — Gus Sterling Gallery

O coração deu um solavanco.

Abriu o e-mail com os olhos arregalados.

E

…e ali estava, preto no branco, a frase que ela vinha sonhando havia meses:

“Clara, seu trabalho fala. Ele sussurra, às vezes grita — mas nunca passa despercebido.

A galeria adoraria receber sua exposição. Estamos reservando a data para daqui a seis semanas.

Gus manda um abraço e disse: ‘ela pinta como quem se lembra de algo que o mundo esqueceu’.”

Clara soltou um grito abafado, tropeçando nos próprios pés enquanto ria sozinha. Pegou o celular, os dedos ainda melados de tinta, e discou rápido.

— Leo?

— Hm? Você sabe que são nove da manhã, né?

— EU CONSEGUI. A GALERIA. É REAL.

Do outro lado, um silêncio. E então, um grito tão alto quanto o dela.

— EU SABIA! EU SABIA! MEU DEUS, EU SEMPRE SOUBE! MEU DEUS, VOCÊ VAI EXPOR, CLARA!

Ela girava pela sala, os braços para o alto.

— Eles amaram o conceito dos bilhetes. E os quadros. E... Leo, eles entenderam tudo.

— Porque você faz a gente entender o invisível. Eu to indo praí. A gente precisa planejar isso.

— Com café?

— Com champanhe.

Ela desligou, ainda rindo, e só então percebeu que havia deixado um rastro de tinta do ateliê até a cozinha. Não se importou. Aquela era a trilha da felicidade.

E então, pensou em Noah.

E em como queria contar para ele com as palavras mais certas.

Ou talvez só com um bilhete.

No hospital, Noah revisava os últimos exames de um paciente que operaria à tarde — um homem de 42 anos com um aneurisma complexo. A equipe ao redor dele estava tensa. Ele, calmo como sempre.

— Dr. Bennett? — disse um residente. — O senhor acha que consegue manter a clipagem sem passar pela bifurcação do tronco?

— Vamos tentar. Mas se houver sangramento, entramos com o plano B imediatamente.

Ele falava com clareza. Dava instruções como um maestro com a orquestra.

Não porque gostava de poder.

Mas porque vidas dependiam disso.

E quando, finalmente, terminou a cirurgia com sucesso, retirou as luvas e lavou as mãos em silêncio. Só então checou o celular.

“Hoje, o mundo viu algo que eu já sabia: minha arte encontrou casa.

Eu te conto tudo quando você chegar.

Spoiler: sim, vai ter vinho.”

— C.

Ele encostou o celular na testa e fechou os olhos por um segundo.

Ela. Sempre ela.

Quando chegou em casa, encontrou Clara com uma taça de vinho na mão e uma toalha presa como capa nas costas.

— Me chame de artista internacional. Ou super-heroína. Ou ambos.

Ele largou a mochila no chão, foi até ela e a levantou com os braços ao redor da cintura.

— Eu soube que uma mulher que pinta a alma vai expor num dos lugares mais poéticos de Nova York.

— Soube por quem?

— Por ela mesma. Num bilhete.

Clara o beijou, ainda rindo, e giraram pela sala como duas crianças em festa.

— Leo está surtando, já quer chamar uma equipe pra fotografar tudo, fazer catálogo, vídeo…

— E você?

Ela ficou mais séria, os olhos marejando um pouco.

— Eu só quero fazer jus à história que a gente escreveu. Que estamos escrevendo.

Ele a beijou na testa.

— Você já está fazendo. Todo dia.

Naquela noite, dormiram no sofá, abraçados, com um documentário tocando baixo na televisão e uma tela inacabada encostada no canto da sala.

Clara sonhou com tinta escorrendo pelas paredes.

Com bilhetes voando como folhas de outono.

E com a voz dele, chamando seu nome no meio de uma multidão.

Noah, por outro lado, não sonhou.

Mas acordou no meio da noite, observando o rosto dela iluminado pela luz fraca da rua.

E pensou em tudo o que ainda tinham para viver.

Em tudo que ele não sabia que precisava até ela chegar.

E, como fazia toda noite, pegou um pedaço de papel e escreveu devagar, antes de esconder o bilhete dentro do livro que ela lia:

“Você não precisa entender o que somos.

Basta continuar pintando o que sente.

Porque, no fim, eu sempre estarei nas suas cores.”

— N.

Sigue leyendo este libro gratis
Escanea el código para descargar la APP
Explora y lee buenas novelas sin costo
Miles de novelas gratis en BueNovela. ¡Descarga y lee en cualquier momento!
Lee libros gratis en la app
Escanea el código para leer en la APP