O sol da manhã entrava pelas frestas da janela, dourando o chão do apartamento como se alguém tivesse derramado luz líquida sobre a madeira. Clara pintava de meias, com a camiseta dele — que já não era mais dele fazia tempo — e uma xícara de café esquecida sobre a mesa. Havia tinta no canto da boca e uma música instrumental preenchia o ar com uma espécie de calma concentrada.
O celular vibrou uma, duas vezes. Ela ignorou. Continuou os traços finos em azul-acinzentado, quase transparentes.
Na terceira vez, pegou o aparelho com a mão suja de tinta.
Assunto: Proposta de Exposição — Gus Sterling Gallery
O coração deu um solavanco.
Abriu o e-mail com os olhos arregalados.
E…e ali estava, preto no branco, a frase que ela vinha sonhando havia meses:
“Clara, seu trabalho fala. Ele sussurra, às vezes grita — mas nunca passa despercebido. A galeria adoraria receber sua exposição. Estamos reservando a data para daqui a seis semanas. Gus manda um abraço e disse: ‘ela pinta como quem se lembra de algo que o mundo esqueceu’.”
Clara soltou um grito abafado, tropeçando nos próprios pés enquanto ria sozinha. Pegou o celular, os dedos ainda melados de tinta, e discou rápido.
— Leo?
— Hm? Você sabe que são nove da manhã, né? — EU CONSEGUI. A GALERIA. É REAL.Do outro lado, um silêncio. E então, um grito tão alto quanto o dela.
— EU SABIA! EU SABIA! MEU DEUS, EU SEMPRE SOUBE! MEU DEUS, VOCÊ VAI EXPOR, CLARA!
Ela girava pela sala, os braços para o alto.
— Eles amaram o conceito dos bilhetes. E os quadros. E... Leo, eles entenderam tudo.
— Porque você faz a gente entender o invisível. Eu to indo praí. A gente precisa planejar isso.
— Com café?
— Com champanhe.
Ela desligou, ainda rindo, e só então percebeu que havia deixado um rastro de tinta do ateliê até a cozinha. Não se importou. Aquela era a trilha da felicidade.
E então, pensou em Noah.
E em como queria contar para ele com as palavras mais certas. Ou talvez só com um bilhete.No hospital, Noah revisava os últimos exames de um paciente que operaria à tarde — um homem de 42 anos com um aneurisma complexo. A equipe ao redor dele estava tensa. Ele, calmo como sempre.
— Dr. Bennett? — disse um residente. — O senhor acha que consegue manter a clipagem sem passar pela bifurcação do tronco?
— Vamos tentar. Mas se houver sangramento, entramos com o plano B imediatamente.
Ele falava com clareza. Dava instruções como um maestro com a orquestra.
Não porque gostava de poder. Mas porque vidas dependiam disso.E quando, finalmente, terminou a cirurgia com sucesso, retirou as luvas e lavou as mãos em silêncio. Só então checou o celular.
“Hoje, o mundo viu algo que eu já sabia: minha arte encontrou casa. Eu te conto tudo quando você chegar. Spoiler: sim, vai ter vinho.” — C.
Ele encostou o celular na testa e fechou os olhos por um segundo.
Ela. Sempre ela.
Quando chegou em casa, encontrou Clara com uma taça de vinho na mão e uma toalha presa como capa nas costas.
— Me chame de artista internacional. Ou super-heroína. Ou ambos.
Ele largou a mochila no chão, foi até ela e a levantou com os braços ao redor da cintura.
— Eu soube que uma mulher que pinta a alma vai expor num dos lugares mais poéticos de Nova York.
— Soube por quem?
— Por ela mesma. Num bilhete.
Clara o beijou, ainda rindo, e giraram pela sala como duas crianças em festa.
— Leo está surtando, já quer chamar uma equipe pra fotografar tudo, fazer catálogo, vídeo…
— E você?
Ela ficou mais séria, os olhos marejando um pouco.
— Eu só quero fazer jus à história que a gente escreveu. Que estamos escrevendo.
Ele a beijou na testa.
— Você já está fazendo. Todo dia.
Naquela noite, dormiram no sofá, abraçados, com um documentário tocando baixo na televisão e uma tela inacabada encostada no canto da sala.
Clara sonhou com tinta escorrendo pelas paredes.
Com bilhetes voando como folhas de outono. E com a voz dele, chamando seu nome no meio de uma multidão.Noah, por outro lado, não sonhou.
Mas acordou no meio da noite, observando o rosto dela iluminado pela luz fraca da rua.
E pensou em tudo o que ainda tinham para viver.Em tudo que ele não sabia que precisava até ela chegar.
E, como fazia toda noite, pegou um pedaço de papel e escreveu devagar, antes de esconder o bilhete dentro do livro que ela lia:
“Você não precisa entender o que somos. Basta continuar pintando o que sente. Porque, no fim, eu sempre estarei nas suas cores.” — N.