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Capítulo 6 - Esboços de justiça

O dia seguinte amanheceu silencioso.

O sol atravessava as frestas da cortina, desenhando traços de luz e sombra no chão — um quadro quase sereno, se não fosse o peso invisível que pairava no ar.

Helena despertou antes do despertador, como de costume. Por alguns instantes, ficou apenas observando o teto, deixando que a lembrança da noite anterior se infiltrasse lentamente, como tinta dissolvendo-se na água.

Virou o rosto. Cássio dormia ao seu lado.

Ela o observou por um tempo, em silêncio, como quem contempla um quadro antigo — belo, mas já sem a mesma cor.

Os cabelos, um pouco desalinhados, caíam sobre a testa; o queixo, firme sob a luz tênue da manhã, era delineado pela sombra suave da barba, traçando uma linha que antes a convidava ao toque.

Por anos, aquele rosto fora seu abrigo, o lar onde repousavam suas certezas.

Agora, parecia o retrato de um estranho.

Talvez ainda houvesse amor — ou o eco distante de algo que já foi.

Ou, quem sabe, o que ela amara de verdade tivesse sido apenas a imagem que criou dele…

Levantou-se devagar, cuidando para não o acordar.

Enquanto preparava o café, ouviu os passos de Cássio vindo do quarto.

Ele surgiu com a mesma expressão de sempre, tentando vestir a normalidade como quem põe um terno amarrotado.

— Dormiu bem? — perguntou, com um sorriso ensaiado.

Helena serviu-lhe uma xícara sem erguer os olhos, e fez um leve aceno com a cabeça.

Ele hesitou, desconfortável.

Ela nem sequer ergueu o olhar.

— Sobre ontem... — começou, tentando medir as palavras.

— Ontem já passou, Cássio. — interrompeu suavemente, sem aspereza, sem levantar o olhar. — Não há por que voltarmos àquilo.

A naturalidade dela o desconcertou.

Ele esperava resistência, lágrimas, drama — qualquer coisa que o fizesse sentir no controle novamente.

Aquela mulher diante dele parecia outra, não sabia como lidar com ela.

Mas ela apenas continuava ali, serena, inalcançável.

Cássio tentou decifrá-la, confuso.

“Se é assim que ela quer chamar minha atenção”, pensou, “está conseguindo.”

Soltou um bufo curto, tentando disfarçar o incômodo.

Foi então que o celular vibrou sobre o balcão.

Ambos olharam ao mesmo tempo.

O nome de Silvia piscava, luminoso.

Por um breve instante, o olhar de Helena encontrou o dele.

Nada acusador, nada escandaloso.

— Não vai atender? — perguntou com um leve arquejo no canto dos lábios, a voz doce, mas cortante como vidro fino.

Cássio engoliu seco. Pegou o celular com um gesto rápido, mantendo a voz firme ao dizer:

— Preciso ir.

— Claro. — respondeu ela, voltando a mexer o café como se nada tivesse acontecido. — Imagino que o trabalho não possa esperar.

Ele não respondeu, apenas saiu apressado.

Helena não o observou sair — apenas ouviu o som seco da porta se fechando atrás dele.

Mesmo decidida, algo dentro dela se contorceu. Um incômodo, quase físico.

Não por amor — mas por costume, talvez. Por tudo o que ela havia sustentado sozinha durante tanto tempo.

Mas, enfim, ela respirou fundo. Precisava deixar ir.

Terminou o café lentamente, saboreando o gosto amargo que já não vinha apenas da bebida. Depois, levantou-se e foi se arrumar.

Escolheu uma calça pantalona de linho cor palha que marcava a cintura com elegância e caía fluida até os pés. A blusa branca, de algodão leve e mangas transpassadas com detalhes em renda, parecia feita para dias como aquele — simples e bonita.

Nos pés, uma sapatilha caramelo; nada chamativo, apenas confortável.

Por fim, prendeu metade do cabelo, deixando que os cachos se sobrepusessem em ondas macias.

Diante do espelho, sentiu-se bem — não só com as roupas, mas com a mulher que as vestia.

Pegou a bolsa, respirou fundo mais uma vez e saiu.

A cafeteria La Belle, com suas janelas altas que filtravam a luz da manhã, era um refúgio de elegância no coração da cidade. Frequentada por empresários e profissionais apressados, destacava-se por unir conforto e discrição, oferecendo um raro respiro de tranquilidade em meio ao caos urbano.

O café exalava um aroma intenso de torra fresca, e o som suave das xícaras sendo apoiadas sobre os pires misturava-se ao burburinho discreto das conversas.

Era uma manhã amena de início de primavera, e o vidro levemente embaçado da cafeteria refletia uma versão serena — ainda que cansada — de Helena, uma parte dela mesma que há tempos não reconhecia.

Do outro lado da mesa, Lívia Macedo — sua melhor amiga — a observava em silêncio.

Enquanto Helena desfiava, em voz calma, os últimos acontecimentos, Lívia mantinha o olhar firme, as mãos entrelaçadas sobre a mesa e aquele semblante sereno de quem parece sempre saber o que fazer, mesmo quando o mundo desaba ao redor.

— Espera… me dá um segundo pra digerir tudo isso, Helena! — disse, após ouvir cada detalhe. A voz era baixa, mas carregava uma indignação contida, o tipo de fúria que só nasce quando alguém que amamos é injustiçado.

Helena empurrando o celular para ela. Na tela, as mensagens, as fotos, as provas da traição. Lívia rolava a tela com o olhar prático, sem precisar de mais do que alguns segundos para compreender o tamanho do golpe.

— Eu sempre soube que aquele homem era ambicioso demais para amar de verdade. — suspirou. — E o pior é que foi você quem construiu o império dele.

Helena abaixou o olhar.

— Eu achei que era o nosso sonho.

Lívia encostou-se na cadeira, cruzando os braços. — Não, era o sonho dele, e você era a ponte. — fez uma pausa breve, avaliando a amiga. — Mas sabe o que me consola? Você foi mais esperta do que pensa.

Helena ergueu os olhos, confusa.

— Quando te convenci a registrar todas as suas criações, você achou exagero. Lembra?

Helena sorriu de leve, com tristeza. — Disse que parecia desconfiança.

— E eu disse que era precaução. — retrucou Lívia, com um brilho decidido no olhar. — Agora veja: cada design, cada peça, cada traço teu está autenticado, protegido. Nada do que aquele ingrato exibe como dele pertence de fato a ele.

Um silêncio pairou por um momento, e Helena respirou fundo.

— Sim, mas eu não queria chegar a isso, Lívia. Não queria odiar.

— Odiar é perda de tempo, — respondeu ela, fria. — Mas justiça... justiça é outra coisa. _ O olhar de Lívia suavizou-se por um instante. — Você sempre foi o tipo de mulher que cria beleza até da dor. Mas agora precisa aprender a moldar estratégia também.

Helena fitou a amiga, e um sorriso pequeno, quase imperceptível, curvou-lhe os lábios.

Aquela amizade era uma âncora em meio ao naufrágio.

Lembrava-se perfeitamente do dia em que se conheceram: anos atrás, em uma palestra sobre design contemporâneo, na qual Helena havia sido praticamente arrastada por Cássio.

Enquanto ele se exibia entre os convidados, Helena observava discretamente as obras em exposição — e foi Lívia quem puxou conversa, notando seu interesse genuíno.

— Você olha para as peças como se pudesse ouvir o que elas dizem — dissera ela, divertida.

Helena riu. — É que eu acho que toda criação tem voz própria.

— Nesse caso, você deve ter muita coisa guardada aí dentro — respondeu Lívia, apontando para o peito dela.

Desde então, uma amizade improvável nascera: a artista sensível e a advogada prática, duas mulheres opostas que se completavam.

Quando Helena se mudou definitivamente para a cidade, foi Lívia quem a acolheu nos primeiros meses, antes que Cássio e suas promessas tomassem todo o espaço.

— Você precisa planejar com calma — disse Lívia, voltando ao tom pragmático. — Nada de escândalos, nada de lágrimas públicas. Ele não pode suspeitar de nada até o momento certo.

Helena concordou, com o olhar distante.

A imagem do colar de sua avó, pendendo do pescoço de Sílvia, ainda lhe feria a alma.

Lívia passou os olhos pelas mensagens e percebeu que algo mais perturbava Helena.

— O que foi? Tem algo além disso, não tem? — perguntou com voz calma.

Helena demorou alguns segundos antes de responder. Pegou o celular das mãos da amiga e rolou a tela até encontrar a foto de Silvia usando o colar de sua avó.

— Esse colar... — murmurou, a voz embargando. — Era da minha avó. A mulher que mais me ensinou sobre amor e coragem. Quando ela o entregou a mim disse que era para que eu sempre me lembrasse de quem era.

Lívia estreitou os olhos, sentindo a indignação subir. — Ele deu o colar da tua avó pra amante?

Helena assentiu, contendo as lágrimas. — Não é o valor, Lívia. É o significado. É como se ele tivesse roubado até as minhas memórias pra oferecer a ela.

— Pois então — respondeu Lívia, firme, pousando a mão sobre a dela —, é hora de começar a tomar tudo de volta. Até o que ele pensa que é dele.

— Eu não quero vingança cega — murmurou. — Quero apenas o que é meu... e a paz que ele me tirou.

— Então é isso que vai ter. — afirmou Lívia, erguendo a xícara como um brinde silencioso. — Mas faremos do jeito certo: inteligente, legal e devastador.

Helena respirou fundo. Pela primeira vez em meses, sentiu o ar preencher seus pulmões sem peso.

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