CAPÍTULO 02

Lancei um último olhar para o quarto que nunca foi meu. Aquela casa sempre foi uma prisão. Respirei fundo e segurei a maçaneta com força.

Por um instante, meu corpo inteiro hesitou, a mão suada pelo medo. Mas eu não voltaria atrás.

Nem hoje.

Nem nunca mais.

Os gemidos do quarto ao lado ficaram mais altos, mais ritmados, mais viscerais. A cada som abafado pelo gesso fino da parede, meu estômago se revirava.

Talvez eu não soubesse qual era o meu lugar no mundo, mas tinha certeza de que não era ali.

Saí do quarto com passos leves, descendo as escadas na ponta dos pés. Parei diante da porta da cozinha, imóvel, apenas ouvindo. Esperando. Eu sabia que precisava do momento certo.

O barulho no quarto se intensificou. Senti minha garganta arder, mas mantive a respiração contida. Cada som alto vindo daquele cômodo era, ironicamente, uma bênção silenciosa.

Quanto mais barulho, menos atenção para mim — e mais próxima da liberdade eu ficava.

Fiquei parada na porta da cozinha, o corpo rígido, o coração martelando contra o peito. Esperava que os sons continuassem, que se tornassem tão ensurdecedores que abafassem qualquer ruído meu.

O som do clique foi baixo, mas, ainda assim, prendi a respiração. Esperei. Nenhum som vindo de cima cessou. Nenhuma porta se abriu.

Nada além dos sussurros indecentes de um casal que nunca se preocupou com o quanto me machucavam.

Abri a porta lentamente, e um sopro de ar frio invadiu a cozinha. Fechei os olhos por um segundo, absorvendo aquele instante de liberdade como se fosse o primeiro gole de água após dias no deserto.

A noite me envolveu como um manto cúmplice. Meu corpo se movia no automático, guiado por uma única urgência — sobreviver, era a única coisa que restava.

Cada som na mata fazia meu coração disparar. Cada sombra parecia um lobo, prestes a me entregar de volta para Victor. Mas continuei.

Um passo depois do outro, até que as luzes fracas de uma casa familiar surgiram entre as árvores — a casa de Alana.

Ela era a única que me ofereceu ajudar. Sem que Victor soubesse, usei meus poderes para curar aquela loba, salvando sua vida. Desde então, ela guardou meu segredo.

Uma amiga improvável para alguém como eu, que não tinha permissão para vagar pelo território da matilha.

Mas, mesmo com as regras cruéis e silêncios impostos, ela me estendeu a mão. Me ofereceu ouvidos, me deu esperança — algo que eu nunca imaginei que poderia encontrar em alguém ali.

A porta dela se abriu no segundo toque.

— Aurora? — ela sussurrou, a voz rouca, os olhos arregalados pela surpresa.

Ela usava uma camiseta larga, como se tivesse acabado de sair da cama. Mas ali, na penumbra da entrada, seus olhos brilharam com uma mistura de determinação e urgência.

— Entre — disse ela, puxando-me para dentro. — Só preciso trocar essa roupa.

Não precisei dizer mais nada para que ela soubesse do que eu precisava. O calor da casa me envolveu, e, por um segundo, minhas pernas quase cederam, o peso da fuga finalmente me atingindo.

Alana fechou a porta atrás de nós com um suspiro — provavelmente imaginou que esse momento chegaria.

— Você fez bem. Não olhe para trás — disse ela, firme.

Era hora de desaparecer. De cortar todos os laços com aquele mundo que me feriu. Alana foi direto até o balcão da cozinha, onde seu telefone descansava.

Ela discou para alguém, levando o aparelho ao ouvido, os olhos evitando os meus por um instante.

— Ela chegou — disse Alana em voz baixa, mas firme. Depois de uma pausa curta, ela voltou a falar. — Meia hora. Estaremos lá.

Desligou sem dizer adeus. Apenas devolveu o telefone à bancada e seguiu até o quarto, me deixando sozinha na sala, em um silêncio que parecia durar uma eternidade.

Quando Alana voltou, poucos minutos depois, vestia uma blusa e calça pretas. Ela parecia pronta para enfrentar o que viesse.

— Vamos sair pelos fundos e cortar pela floresta. Evite a trilha principal. Não podemos ser vistas — explicou ela, a voz firme e determinada.

Apenas assenti. Meu coração já batia forte outra vez, agora impulsionado pela adrenalina que corria nas minhas veias. Segui Alana em silêncio, cada passo nos levando mais fundo naquela na floresta.

Nenhuma de nós podia se transformar — ela, para não ser detectada pelos guerreiros de Victor, eu, por uma ordem imposta por ele.

Quase meia hora depois, senti o solo se tornar mais firme, as árvores começaram a se afastar e uma estrada surgiu ao longe, como um sussurro de liberdade.

— Ali… — apontou Alana.

Os faróis baixos de um carro piscaram duas vezes, discretos. Alguém nos esperava. Engoli em seco. Um homem desceu do carro e, no mesmo instante, Alana correu até ele.

Não havia hesitação em seus passos, apenas urgência — a mesma urgência com que ele a envolveu com força. Seus lábios se encontraram em um beijo desesperado, faminto, cheio de saudade. Um reencontro selado pela paixão.

Permaneci alguns passos atrás, ofegante pela caminhada, observando a cena com surpresa. Por um instante, toda a tensão do meu corpo cedeu lugar à curiosidade silenciosa.

Alana nunca falara de ninguém, nunca deixara escapar qualquer detalhe sobre sua vida fora dos limites da alcateia — talvez por segurança.

O homem era alto, de ombros largos e presença marcante. Um lobo sem dúvida, mas não de nossa alcateia.

Havia algo diferente nele, uma aura de comando e proteção que contrastava com o caos e o controle do mundo que eu conhecia.

— Você, como sempre, arriscando tudo — disse ele, tocando o rosto dela com reverência antes de voltar o olhar para mim.

Os olhos dele encontraram os meus com uma firmeza suave, mas, ao mesmo tempo, com gentileza.

— Você deve ser Aurora… — disse ele, sua voz grave, porém acolhedora.

Eu assenti, incapaz de responder com palavras. Minha garganta estava seca, o medo e a exaustão finalmente cobrando seu preço. O homem deu um leve passo à frente e estendeu a mão.

— Sou Kael. Estou aqui por você.

As palavras eram simples. Mas para mim, soaram como um sussurro de esperança. Alana voltou para o meu lado e segurou minha mão com força.

— Ele vai te levar até a rodoviária. Lá, você deve pegar o ônibus para o destino mais longe que encontrar e nunca olhar para trás. Por isso, fique alerta o tempo todo e, acima de tudo, não se permita ser capturada.

Eu não sabia exatamente onde esse “longe” ficava, nem o que me esperava lá. Mas, pela primeira vez em muito tempo, senti que podia acreditar.

Abracei Alana, sentindo o peso da gratidão misturado com a incerteza, meus olhos marejados.

— Obrigada! Por tudo. Espero não te causar problemas.

— Esqueça isso. Eles nem vão imaginar como você conseguiu. São arrogantes demais para acreditar que você fosse mais astuta do que eles.

Entrei no carro. A estrada escura se estendia como um corredor sem fim, levando-me para um futuro incerto — mas, pela primeira vez, eu estava livre.

— Você tem dinheiro suficiente? Precisa de algo? — perguntou ele, analisando-me.

— Não. Juntei o que consegui durante meses. Vai dar por um tempo — respondi, Kael assentiu, e um leve sorriso surgiu nos lábios dele.

— Você está preparada… isso é bom.

Era apenas uma constatação, mas soou como um elogio — um daqueles que não precisam ser ditos em voz alta para serem sentidos.

Kael estacionou próximo de um local mais reservado da rodoviária, desligou o motor e se virou para mim com um olhar firme.

— Daqui em diante, você está por conta própria — disse ele, sem dureza.

Assenti, peguei minha mochila e abri a porta do carro. Antes de sair, virei-me para ele mais uma vez.

— Obrigada... por tudo.

Ele apenas fez um gesto com a cabeça. Não precisava de mais palavras entre nós. Já tínhamos dito o suficiente — e o necessário.

Entrei na rodoviária com passos decididos, mesmo que, por dentro, eu estivesse tremendo. A fila no guichê era curta e, quando chegou a minha vez, não hesitei… pedi um bilhete para o local mais distante dali.

Próximo ao horário de partida do ônibus, procurei um lugar mais reservado para finalmente fazer o que antes me haviam impedido.

— Eu, Aurora Alcorn, loba da Alcateia Bloodhowl, rejeito Victor Draven, como meu alfa. Assumo a responsabilidade pelo meu próprio destino e escolho caminhar livre, sem suas correntes.

Senti a dor atravessar meu corpo como lâminas afiadas quando a corrente invisível dele se quebrou dentro de mim. Meus joelhos cederam, e caí no chão, ofegante, como se o ar tivesse sido arrancado dos meus pulmões.

A ligação que me prendia a ele se despedaçava, rompida pela minha decisão. Não fiz isso antes por medo — medo de que Victor me encontrasse antes que eu estivesse longe o bastante.

Agora, eu não aceitaria mais ser acorrentada por aquele alfa de merda. Ele não mandaria mais em mim. Nunca mais.

No entanto, minha loba ainda permaneceu reclusa, como se estivesse se curando das feridas invisíveis que aquela ligação havia deixado.

Eu a sentia ali, silenciosa, atenta… talvez cautelosa. Daria a ela o tempo necessário. Quando estivesse pronta, ela viria até mim.

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