Mundo de ficçãoIniciar sessãoIve discordava do que a amiga estava falando, mas demorou alguns segundos para conseguir responder.
Era uma lembrança boa.
— Eu já fiquei com alguém.
Patrícia se animou. Todos comentavam que Ive Bianchi era o que chamavam de BV. Boca virgem.
A garota não dava chance para que ninguém se aproximasse.
— JURA! E QUEM FOI ESSE DEUS GREGO QUE CONQUISTOU ESSES LÁBIOS DE MEL?
Ive disfarçou.
— Mel é a minha irmã.
— Tá! Fala logo.
Patrícia estava empolgada, mas Ive guardava aquelas memórias só para ela. Não gostava de falar sobre a própria vida.
Resumiu.
— Lucca, o nome dele era Lucca. Nós éramos amigos, mas ele está morto. Agora chega, tá.
A amiga da herdeira Bianchi não conseguiu falar mais nada. Ficou perdida. Parecia uma história triste; não quis saber mais.
Fizeram o caminho até a sorveteria no carro de Ive.
Havia sido um presente de aniversário e Patrícia sempre achava graça. O carro era pequeno como a dona.
Ive estacionou o miniconversível e começou a olhar em volta, como se a esperança estivesse em cada detalhe.
Demorou até encontrarem Jailson.
— Ali!
Ive pulou de alegria e saiu correndo sem olhar para os lados.
Um carro freou já quase em cima dela.
Ela pediu desculpas, a mão sobre o capô, e continuou.
Queria encontrar o homem que a empurrou.
Nem sabia por que aquilo era tão importante, mas era.
— OI!
Ela gritou. O rapaz só olhou para ela e deu mais um gole na cachaça barata, num copinho de plástico.
— Qual foi, lorinha?
Ive se abaixou na frente de Jailson. Ele também estava com um corte na testa.
— Posso ver?
Ela tocou o rosto do rapaz.
No começo ele gostou do cuidado, mas logo segurou o pulso da menina.
— O QUE VOCÊ QUER?
— Nada, eu só queria limpar.
— Sai daqui, ô patricinha.
Jailson soltou o pulso ao mesmo tempo em que ela tentava puxar.
A força a fez cair.
Ela rastejou para longe quando o rapaz se levantou.
Ainda assim, arriscou antes que ele fosse embora.
— CADÊ O SEU AMIGO? O RAPAZ DA CARROÇA.
Ele voltou, olhou para ela com nojo.
— Sabia que queria alguma coisa. Gente como você sempre quer.
— Não…
Ela abriu a boca para responder, mas Jailson jogou o resto da bebida no rosto dela.
Cuspiu em seguida.
O chute nas costelas fez Ive soltar um gemido estranho, baixinho, quase engolido pela dor.
Patrícia só se aproximou quando Jailson já tinha corrido.
Ele tinha visto dois policiais e achou que acabaria preso.
— Ive, o que foi isso? Você está bem?
A menina se levantou depressa. Respirar doía, mas aquele bêbado era a única chance que tinha para encontrar o homem que a derrubou.
Voltou para o carro e arrancou com tudo.
Deixou a amiga para trás.
Rodou cada uma das ruas e quando não encontrou nada, parou.
Só então se permitiu chorar.
Levantou a camiseta com a mão trêmula, o hematoma tinha se espalhado.
— Isso não é bom.
Ela sabia que precisava ir para o hospital, mas não queria.
Tinha chegado tão perto.
— Estraguei tudo!
Se culpava pela forma como se aproximou de Jailson, achava que deveria ter sido mais respeitosa.
A reação do rapaz significava que ele tinha se sentido atacado.
Pelo menos na cabeça dela.
Dirigiu de volta para perto da sorveteria e, em vez de ir para o hospital, avisou a amiga que tomariam um sorvete.
Patrícia chegou poucos minutos depois.
Brava, muito brava.
— Você é louca! Provoca drogados na rua e depois me deixa aqui com a polícia para explicar o que eu nem sei.
— Desculpa, Pati. Toma um sorvete comigo. Estou com dor.
Patrícia se deixou vencer.
Ive era irresistível com aquele jeitinho sempre doce de falar.
Tomaram o sorvete, enquanto Jailson contava para Antônio que a loira do outro dia estava atrás dele com a polícia.
— Ela levou uma tropa dos homem atrás de você. Dá no pé, mano. Sou seu amigo. Fica entocado uns dia, mas eu dei uma lição na vadiazinha. Vai andar torto por umas boas semanas.
Antônio ficou confuso.
Achava que fosse uma criança, tinha cheiro de doce e era pequena e leve.
Ouviu a história e simplesmente saiu.
Tateando paredes, batendo o rosto em postes, tropeçando em tudo.
Mas voltou para o centro.
Não era completamente cego.
Havia o que ele chamava de furo de agulha, um pontinho minúsculo que o permitia ver alguma luz.
Queria pedir desculpas.
Não tinha machucado a menina por mal.
Ele passou por ela. Ive não o viu... estava de costas.
Mas Patrícia, que esperava a amiga pagar para irem embora, correu de volta para a sorveteria.
— QUERO MAIS!
Abraçou a amiga e a forçou a olhar para a vitrine outra vez.
Patrícia falou alguma coisa que Ive não ouviu. Estava distraída demais tentando disfarçar a dor nas costelas.
Antônio passou ali em silêncio, a poucos passos. O cheiro de sorvete, doce, queimou sua memória por dentro.
Ele parou por um segundo.
Ela respirou fundo no mesmo instante.
E nenhum dos dois entendeu por quê. O mundo seguiu sem que eles soubessem que a dor também é capaz de unir almas perdidas.







