Mundo de ficçãoIniciar sessãoO abraço de Patrícia fez Ive gemer de dor e foi exatamente o som que pareceu mexer com algo dentro de Antônio, mesmo do lado de fora da sorveteria ele se virou em direção ao som, sentia o cheiro de algo doce, mas não o dela.
Foi como lembrar de alguma coisa que só existia em um lugar tão fundo da sua mente que o corpo foi capaz de arrepiar, mas a razão não conseguiu explicar.
Tentou andar mais rápido, estava ansioso e preocupado. A ideia de ir embora com o bando estava pesando mais do que todas as outras vezes, tentou se convencer que era pelo trabalho, mas o coração gritava que não era isso.
Apressou o passo e se perdeu, sem Jaílson para ajudar o centro da cidade parecia um labirinto de sons fortes demais para se guiar por eles. Não prestou atenção, se deixou levar pelos pensamentos fragmentados de alguém incapaz de conhecer a si mesmo.
E o preço foi o reencontro que ele quis desde que bateu com a carroça naquela garota pequena.
Ive estava sentada segurando a casquinha de sorvete com o mesmo interesse que seguraria um copo vazio, não estava onde queria, mas estava agarrada a esperança de que em algum momento “Tonho” passaria por ali.
Pulou quando um barulho pesado lhe atravessou, era estranho. Parecia o barulho que o compactador de entulho fazia quando estava funcionando. Depois vieram as buzinas, pneus raspando no asfalto, ainda assim a batida horrível do início foi quando o seu coração quase parou no peito.
Correu para fora e o homem que ela estava procurando se arrastava para a calçada enquanto as pessoas tiravam fotos do rastro que ele deixava. Os comentários eram terríveis e ninguém parecia ter noção da solidão que gritava junto com os gemidos abafados do rapaz.
O motorista olhou por um tempo, tentou conversar, mas Antônio continuou encolhido.
Ive não pensou, correu para perto dele e o abraçou como quem reencontra um pedaço de si mesma, não tinha ideia do motivo, mas era assim que se sentia com aquele desconhecido que chamavam de monstro.
Antônio também parou, de repente, o escuro deu lugar a outra sensação e a voz embargada da menina parecia tão gostosa de ouvir quanto o abraço pequeno que ele achou que já conhecia.
— Calma, não se mexe, tá?
Antônio não conseguiu responder, fechou os olhos, só sentia as lágrimas dela caindo quentes em seu ombro. A dor na perna ainda estava lá, mas Ive também estava e isso fez todo o resto ficar estranho, sem importância.
Levantou a mão e tocou os cabelos dela com as pontas dos dedos, era dali o cheiro doce que ele tinha sentido, era o melhor cheiro do mundo. Falou o que queria ter dito desde o dia anterior quando a machucou e o que ficou ainda mais urgente quando soube que Jaílson havia batido nela.
— Desculpa?
Ive não entendeu, mas apesar de errado continuou abraçada a ele, sabia que deveria estar ajudando, que ele precisava de um médico. Só que não conseguia soltar, nunca teve tanto medo de ver alguém machucado.
— Não se mexe, a ambulância já deve estar chegando e eu vou com você, tá?
Deveria ter sido assim, mas os minutos seguintes foram uma mistura de sirenes, flashes e vozes misturadas.
Ela não ouviu, o coração estava tão acelerado no peito que chegava a doer e as lágrimas não paravam, deitou a cabeça no peito dele, acariciou o braço forte e de repente os gritos a fizeram despertar do paraíso.
As sirenes não eram da ambulância, e sim da polícia.
— SE AFASTA MOÇA!
Ive levantou porque achou que aqueles homens ajudariam o rapaz, mas o que se seguiu foi um show de horrores que ela não conseguia entender.
Um policial comentou com o colega.
— É o cigano cego de novo, ele vive caindo e batendo nos carros! Deveriam internar esse demente.
Os dois policiais olharam, ao mesmo tempo, para Ive.
— Você está bem, moça? Precisa de ajuda, quer prestar queixa contra ele?
A menina gritou sem perceber o que estava fazendo.
— Eu não! Ele se machucou... o carro, aquele homem bateu nele com o carro.
A lataria amassada e o farol sujo de sangue confirmavam a história, mas os policiais pareciam não se importar.
Foram falar com o motorista.
— O senhor se machucou?
Ive gritou, dessa vez deliberadamente.
— NÃO ESTÃO ME OUVINDO?
Ela quis dizer o nome do rapaz, se lembrou de que o homem que a agrediu havia chamado o amigo de Tonho, mas quando olhou na direção de Antônio. Ele já tinha se levantado e se afastava cambaleando apoiado na parede.
Ele queria voltar para casa, sabia que a única pessoa que cuidaria dele era Mayana, estava doendo, queria voltar para a mãe.
Ive esqueceu os policiais e correu atrás dele.
— Oi? Olha eu te levo para o hospital. Vem comigo, pode confiar em mim.
— Hospital não.
Antônio não gostava de hospitais, já tinha sido levado para um, a cama era pequena, ele não cabia em lugares assim, nem pelo tamanho, nem pela aparência. Os médicos e enfermeiros não falavam com ele, só mexiam e comentavam, diziam que alguém como ele não poderia estar sozinho.
Lembrava de uma médica dizer que ele tinha cheiro de carniça e quando a enfermeira respondeu, foi ainda pior.
— O cheiro nem é tão ruim, difícil é olhar para isso.
Ele não gostava de hospitais e mesmo que fosse com Ive, ele não queria entrar em um.
A resposta de Ive foi impulsiva, sem razão, só disse o que sentia.
— Então vem comigo, para minha casa. Eu cuido de você!
Patrícia chamou a amiga.
— IVE!
A menina olhou para trás por um segundo e voltou para Antônio. Segurou a mão dele e colocou no próprio rosto.
— Olha, dizem que as pessoas cegas podem sentir quando estamos mentindo. Sente, eu não vou te fazer mal. Vem?
Ela gostaria de poder puxar ele nem que fosse a força, mas até abraçar o rapaz era difícil. Antônio não era só alto, era grande, os músculos marcavam a pele de uma forma que mesmo quando ela estava agarrada a ele, era como abraçar uma rocha.
Patrícia insistiu.
— IVE!?
Quando foi ignorada, a amiga da herdeira Bianchi correu para o policial.
— Por favor, me ajuda. A minha amiga não está acostumada com o Brasil. Ela quer levar aquele drogado para casa, tenho medo de que ele faça alguma coisa com ela.
— O que podemos fazer, senhora?
— Aconselhar?!
O policial tentou e acabou ouvindo mais coisas daquela mulher minúscula do que ouvia do chefe no batalhão.
— Escuta aqui, ele é meu amigo e você não é! Você é um policial muito incompetente, porque deveria estar protegendo as pessoas e não julgando quem merece a sua atenção. Se me disser um único erro dele eu te ouço, caso contrário saia da minha frente.
Ive pegou o celular e tirou uma foto da identificação que o policial tinha na farda.
— Não pode fazer isso moça!
— Posso sim! E minha mãe é advogada, nos veremos no tribunal!
Antônio ouviu a voz alterada da menina, achou bonita. Era doce até quando estava brava.
A perna ainda doía, mas a seguiu com a passividade de quem segue um sonho, e mesmo sem saber era exatamente isso que ele estava fazendo. Ele caminhou sem pensar em nada, Ive pensando em tudo ao mesmo tempo, mas só quando chegaram ao carro, foi que a menina percebeu que estava de fato com um problema para cumprir o que tinha prometido a Antônio.
Ele não cabia!







