Mundo de ficçãoIniciar sessãoAntônio chegou em casa com o dinheiro do dia, colocou sobre o pano onde comiam.
Mayana nem olhou.
— Venha colocar sua comida, Tchavo.
Antônio obedeceu, esticou as mãos como a mãe o ensinou a fazer. Pegou a concha, colocou o dedo na borda do prato e se serviu até que o caldo o queimasse.
Mayana havia ensinado a enxergar com as mãos e ouvidos, mas ele ainda se lembrava das cores.
Era bonito.
Sentou no chão e perguntou.
— Quanto consegui hoje, Deja?
A cigana olhou para o pano, apenas algumas moedas e duas notas pequenas.
— Muito! As pessoas gostam de você. Por isso te pagam, Tchavo.
Ela deixava o filho em uma esquina e ia para outra fazer leitura de mãos. Acreditava que Antônio ficasse lá, mas ele preferia a carroça. Achava estranho receber dinheiro para ficar parado.
A cigana olhou os cortes nos braços e ombros do filho, só conseguia ver se ele estivesse sentado. Era um homem alto.
— O que foi isso? Alguém te bateu de novo?
Ele negou com a cabeça colocando mais sopa na boca.
Não conversavam muito. Antônio sempre foi calado e ela nunca o forçou.
Depois de passar uma pasta de ervas nos machucados do filho foram dormir.
E mais uma vez ele sonhou com o seu anjo.
Foi assim que aprendeu a chamar a menina de olhos claros que aparecia em seus sonhos.
Havia falado com a mãe pouco depois de acordar.
— Os olhos brilham muito e o cabelo é amarelo igual era o sol. É bonita, muito bonita, Deja.
Mayana achou que o filho estava sonhando com um anjo ou uma santa. Só podia ser.
A vida de Antônio era um milagre.
— É o seu anjo da guarda.
Ele gostava de sonhar com o anjo, gostava muito.
Acordou sorrindo e a senhora soube que tinha acontecido de novo.
— O mesmo sonho?
Antônio confirmou com a cabeça enquanto comia mais um pedaço de pão.
Comia muito e sabia que isso era um peso no acampamento.
— Vou conseguir mais moedas hoje.
— Não, hoje vamos levantar acampamento.
Essa era a parte que ele não gostava, queria ter um lugar para morar.
— Mas como vou conseguir dinheiro?
Para Mayana era simples... onde houvesse pessoas para ler a sorte e dar esmolas eles ficariam bem.
Já o rapaz pensava que se perdesse o trabalho com Jailson seria difícil conseguir outro.
As pessoas não gostavam dele, sabia que não.
— A roda da vida gira para frente, somos como a água. Não podemos ficar parados.
Antônio baixou a cabeça e em seguida contou o que havia acontecido no dia anterior.
— Eu machuquei uma menina pequena.
— Não machucou. Você é bom, Tchavo.
— Não ouvi ela, mãe. Bati.
— Bateu? Como assim?
Mayana não encontrava nenhum motivo para o filho estar andando sozinho pelas ruas. Já tinham conversado sobre isso.
— Fui no banheiro, mãe, e não ouvi a menina. Tinha o cheiro bom.
— Mais um motivo para a gente ir embora. Se ela se machucou e tem família, vão vir atrás da gente.
A cigana se apressou para arrumar as coisas, não eram muitas.
Mas no apartamento de Ive ela também estava acordando.
Não foi à aula do cursinho.
Queria ser médica, por isso estava se preparando para prestar um vestibular federal.
Nunca tinha faltado, mas como disse a amiga...
— Tudo tem uma primeira vez. Vamos voltar na sorveteria! Quero encontrar aquele rapaz da carroça.
Patrícia reagiu imediatamente.
— Não vamos, mesmo! Ive, para de ser louca. Ele é um mendigo, catador de papelão. Só pode estar de brincadeira, né? Ele tem sarna.
A menina amarrou os cabelos e respondeu enquanto passava o batom.
— Eu vou, você faz o que quiser.
— Ive!
Patrícia paralisou com o pensamento.
— Ai meu Deus! Você não está apaixonada pelo Corcunda de Notre Dame, está?
— Claro que não! Quem se apaixona assim? Só quero fazer alguma coisa. Ele estava tão assustado. Você não quer ser médica? Pois deveria começar tendo alguma humanidade.
— Médicas não precisam de humanidade. Precisam de muito dinheiro para pagar a faculdade e todo o resto.
— Aí, você e esse assunto de novo. Vamos comigo e eu pago os seus materiais do semestre.
Patrícia pulou da cama.
— COMBINADO! Vamos a caçar uns monstros.
Ive sentiu o coração doer com aquela fala da amiga.
Engoliu a resposta e colocou um tênis confortável. Algo lhe dizia que andariam muito.
No carro veio a pergunta que Patrícia realmente queria fazer.
— Você não vai mesmo dar uma chance para o Matheus? É a única garota do mundo que, com a sua idade, nunca ficou com ninguém.
Ive sorriu.
Sorriu, mas por dentro alguma coisa apertou.
O nome estava parado no peito havia anos. Um nome que só diria mais uma vez, estava decidida!
Mas quando disse… tudo começou a desmoronar.







