Mundo ficciónIniciar sesiónAlonzo
Passei boa parte da manhã no escritório, tentando me concentrar nos relatórios pendentes. Mas, no fundo, meu foco estava em outro lugar. Desde cedo, algo estava me incomodando, uma sensação de que as coisas estavam mudando, e eu não tinha mais controle sobre nada. Letícia entrou na sala logo depois das nove, trazendo um café e uma pilha de documentos. — Bom dia, senhor Karvell. — Ela pousou a bandeja sobre a mesa com seu sorriso ensaiado. — Aqui estão as atualizações da filial de Montreal. Peguei o relatório sem olhar para ela. Folheei as páginas, lendo rapidamente as notas de viagem, os dados da filial, e então algo chamou minha atenção. O nome de Antonella estava ali, destacado no rodapé: — "Antonella Bellini Karvell – Ceo Conjunta / Responsável pela inauguração oficial da filial de Montreal." Por um momento, pensei que fosse um erro de digitação. Ela disse que iria, mas pensei que fosse apenas um jeito de chamar a minha atenção e não me importei em negar sua ida. Fechei a pasta, respirei fundo e abri novamente, só para confirmar. Mas estava lá. Meu nome também, claro, mas o fato de ela ter assinado o documento e confirmado a viagem me irritou mais do que eu esperava. Pousei o relatório sobre a mesa, encostei no encosto da cadeira e olhei para o teto, tentando entender. Antonella realmente foi para Montreal, não era mentira. Peguei o celular. Por alguns segundos, hesitei. Parte de mim queria ignorar, deixar que ela fizesse o que quisesse. Mas a outra parte, a que sempre precisou estar no controle, não me deixou em paz. Disquei o número dela. O telefone chamou três vezes antes de ela atender. — “Alô?” A voz dela soava calma, mas havia algo ali, um toque de firmeza que eu não estava acostumado a ouvir. — Você realmente foi para Montreal? — perguntei, direto. Do outro lado, um pequeno silêncio. Depois, ela respondeu: — “Eu te falei que viria, Alonzo.” — Eu pensei que só queria chamar a atenção. — Meu tom saiu mais duro do que eu pretendia. — Você não tem autorização para representar a Bellini sem minha aprovação direta. — “Eu sou sua esposa, Alonzo” — ela disse, com aquela voz tranquila que, ao mesmo tempo, me desafiava. — “E segundo o contrato, também sou Ceo conjunta. Lembra?” Fechei os olhos. Ela tinha razão. Claro que tinha. — Não é uma boa ideia se expor dessa forma — falei, tentando manter o controle da conversa. — Montreal não é Toronto. Não quero jornalistas te cercando, te pressionando com perguntas. Ela deu uma risada curta. — “Se estivesse preocupado, estaria aqui, não aí sentado me ligando.” Aquela frase me atravessou. — Antonella… — “Eu tenho que ir. Tenho reunião com a imprensa.” — Ela pausou por um segundo, e completou: — “Não precisa se preocupar, Alonzo. Sei me comportar.” Por algum motivo, isso me irritou mais do que tudo. Antes que ela desligasse, soltei a frase sem pensar: — Cuidado com os sorrisos em Montreal. Homens em Montreal vão olhar pra você como eu nunca olhei. O silêncio do outro lado foi imediato. Nenhum som. Nenhuma resposta. E então, a ligação caiu. Olhei para o celular e percebi o que tinha acabado de dizer. Que merda. Encostei o aparelho sobre a mesa, fechei os olhos e respirei fundo. Eu podia ser muitas coisas, frio, arrogante, distante, mas não idiota o bastante pra não perceber que tinha acabado de cruzar uma linha. Fui cruel, e por pura defesa. O tipo de defesa que só quem teme sentir usa. Letícia ainda estava na sala, recolhendo alguns papéis. Percebi seu olhar curioso, disfarçado. Ela percebeu minha tensão e perguntou com a voz doce demais: — Aconteceu alguma coisa, senhor Karvell? — Nada que diga respeito à empresa — respondi, sem encará-la. Ela deu um meio sorriso e disse: — Às vezes, é melhor admitir quando a gente está perdendo o controle. É mais honesto. Levantei o olhar. O tom dela era ousado, quase pessoal. — Está tentando dizer algo, Letícia? Ela inclinou a cabeça. — Só que talvez você esteja perdendo algo que valha mais que qualquer contrato. — Fez uma pausa. — Ou alguém. Cruzei os braços, impaciente. — Faça o seu trabalho, Letícia. Ela deu um passo à frente, deixando o perfume caro invadir o ar. — Eu estou fazendo. Mas não posso fingir que não vejo o que está acontecendo. — Sua voz abaixou um tom. — Está perdendo ela, mas… não importa. Existe alguém que claramente te ama. Aproximei-me da mesa, olhando diretamente para ela. — Não me provoque, Letícia. Você é funcionária. Por um segundo, ela sustentou meu olhar, como se quisesse testar o limite. Depois recuou com um sorrisinho curto e controlado. — Claro, senhor. Foi apenas uma observação. Pegou a bandeja e saiu da sala. Fiquei sozinho, o som da porta ecoando por alguns segundos. Passei as mãos pelos cabelos, frustrado. Ela estava certa em parte, eu estava perdendo Antonella. Mas não era o tipo de perda que eu podia aceitar com calma. Era o tipo que arrancava pedaços. Olhei novamente para o relatório de Montreal. A foto dela estava ali, pequena, anexada ao documento de imprensa. Vestindo um terno claro, elegante, com o crachá da Bellini preso à lapela. O cabelo solto, o olhar confiante. Era impossível não notar como ela estava diferente. Mais mulher. Mais segura. E, pela primeira vez, parecia não precisar de mim. Apertei o celular novamente, mas não liguei. Fiquei só olhando o número dela na tela, indeciso. Naquela hora, percebi que algo dentro de mim começava a mudar, um incômodo, uma inquietação nova. Eu sempre soube que Antonella era doce, mas subestimei o que havia por baixo disso. Agora, ela estava mostrando força, e isso me atraía de um jeito que eu não queria admitir. Tentei voltar ao trabalho. Liguei o computador, abri planilhas, respondi e-mails. Mas cada palavra que ela tinha dito ecoava na minha mente: — “Sou sua esposa e Ceo conjunta.” Por que ela precisava dizer isso com tanto orgulho? Por que me soou como uma provocação? Olhei o relógio. Já era quase meio-dia, fui almoçar num restaurante próximo, não consegui comer e voltei para a empresa. Peguei o carro e dirigi até o prédio principal da Karvell & Bellini Corporation. O trânsito de Toronto estava lento, mas nem isso me impediu de pensar nela o caminho todo. Quando entrei no estacionamento subterrâneo, estacionei e fiquei alguns minutos dentro do carro, olhando o painel. Era estranho, mas sentia falta dela naquele instante. Do jeito que me olhava, das tentativas dela de me agradar. Talvez o silêncio dela fosse o que mais doía. O jeito como ela simplesmente parou de tentar. Subi até o andar executivo. Assim que entrei na sala, Letícia apareceu novamente, segurando mais relatórios. — Senhor Karvell, o senhor tem reunião às duas com o conselho. — Ela colocou os papéis sobre a mesa e se inclinou um pouco. — Quer que eu confirme com o senhor Damiani? — Confirme. E traga um café forte. — Passei a mão no rosto, cansado. — O senhor não dormiu bem? — perguntou, ainda parada à minha frente. — Isso é uma pergunta pessoal demais pra um ambiente de trabalho. Ela sorriu, sem vergonha. — Me desculpe. É que é difícil ver o senhor desse jeito. Não combina. — Desse jeito como? — Parecendo… humano. Levantei o olhar devagar. — Cuidado, Letícia. Você está ultrapassando um limite. Ela mordeu o lábio, disfarçando um sorriso. — Às vezes, os limites precisam ser testados. — Não aqui — cortei, seco. — E não comigo. Ela deu de ombros, fingindo indiferença, e saiu. Fiquei sozinho de novo. O silêncio voltou, e com ele a lembrança da frase que eu tinha dito à Antonella. — "Homens em Montreal vão olhar pra você como eu nunca olhei." Bati o punho na mesa, irritado comigo mesmo. Por que eu disse isso? Porque era verdade. Porque eu nunca olhei. E agora talvez fosse tarde demais. Peguei o celular, abri a câmera de segurança da filial, e vi o registro da coletiva de imprensa ao vivo. Ela estava lá, sorrindo, falando, representando o nome Bellini com segurança. Homens de terno a observavam, repórteres faziam perguntas, e Antonella respondia com elegância. Meu peito apertou. — Cuidado com os sorrisos, Antonella… — murmurei, sozinho. Mas não soou como advertência. Soou como medo. Medo de perder o que nunca tive coragem de segurar.






