Eu tinha assuntos a resolver, e qualquer um que tentasse me atrapalhar morreria. — Aqui é um lugar santo! Um demônio como você mo... — Com essa cara de quem chupou limão, você quer me dizer que pareço um demônio, velha? — interrompi, erguendo-a pelo pescoço. Ela se contorceu, buscando ar. — Leve-me até Otávio Sepol e talvez eu não mate todas vocês. Seus olhos arregalaram, e ela sacudiu a cabeça freneticamente. Quando se soltou, seguiu de cabeça baixa pelo convento até uma porta pequena. — Lá embaixo. O porão. Ele está lá. Observei seu rosto. Não havia sinal de mentira. — Madre... posso chamá-la assim? — Sim... — ela assentiu, a voz quase um sussurro. — A garota morena, de cabelos cacheados e olhos verdes. O que aconteceu com ela depois que eu a deixei aqui? Ela ficou tensa, a voz vacilando. — Ela... ela morreu há alguns dias. Mentira. — Tudo bem, madre. Me trouxe até Otávio, então deixarei você ir. Mas eu sei que mente. Não faça isso outra vez. — Seg
Mais tarde, já longe do caos do porto, fui procurá-la. Ela estava encolhida num canto, envolta no meu casaco, tremendo feito um filhote de foca. Cheirava a medo. A morte. Aproximei-me, e ela encolheu os ombros. — Precisa de alguma coisa, Capitão Vrynn? — sua voz era áspera, quebrada. — O corte na sua barriga... Como curou? Ela engoliu seco. Seus olhos eram verdes. Verdes como a porra do mar antes de uma tempestade. — Não curou… De que corte está falando? Segurei seu braço, forçando-a a me encarar. — Tinha uma adaga cravada na sua barriga quando você se jogou do penhasco. Ela ainda estava lá até pouco antes de sairmos do mar. Seu vestido tem um rasgo… o corte que a lâmina fez. — O vestido rasgou quando fugi dos aldeões. Não viu? Eles estavam armados. O sangue não era meu. Enquanto falava, percebi que seus olhos fitavam a porta do camarote, como se estudassem o lugar. Soltei-a e recuei, os nós dos dedos brancos de tanto segurar minha raiva. — Você vai tra
O cheiro dela me perseguia. Não importava quantos litros de rum eu afogasse na garganta, quantas vezes eu esfregasse o rosto com água salgada. Lavanda e sangue. Era o que ela exalava, mesmo depois de eu ter jogado aquele vestido podre ao mar. Lavanda das freiras mortas. Sangue do corte que ela dizia nunca ter existido no ventre. Eu a observei da escotilha, escondido nas sombras como um cachorro faminto. Ela estava no meu camarote—meu espaço, minhas paredes marcadas por facas e mapas roubados—sentada no chão, encolhida contra a cama. Os dedos dela traçavam o contorno de uma mancha de vinho no madeirado, como se ali estivesse escrito algum tipo de salvação. — Vai ficar a noite toda encarando ou vai entrar? — a voz dela saiu rouca, mas firme. Entrei, fechando a porta com o pé. O Arraia Negra rangia como um velho reclamão, mas ali, naquela sala apertada, o único som era a respiração dela. Curta. Controlada. Assustada. — Você devia estar dormindo — gritei, mais para me convencer d
Alguns minutos depois, ela acordou. Quando me viu, ficou claramente assustada, mas manteve a postura agressiva. — O que quer? Já sabe o que eu sou! Sabe que posso matar todo mundo aqui. Não se aproxime. Caminhei até a escrivaninha com passos calmos. — Perguntei se era virgem porque Dolphin é a cidade do prazer. Uma virgem seria morta, estuprada ou presa depois de roubar comida. Ela não pareceu se acalmar, então continuei. — Não somos bárbaros... bem, algumas vezes, mas nem sempre. Deixaremos você em Timer. Um colega tem uma estalagem. Você não será rica, mas não vai passar fome ou frio. Ela me olhou desconfiada. — Por que está fazendo isso? — perguntou, se encolhendo no canto da parede do camarote. Eu gostaria de ter resposta para essa pergunta. — Salvei sua vida, tenho que me responsabilizar agora — uma mentira bastante convincente, pensei comigo mesmo. — Sendo assim, vou garantir que você viva, pelo menos até descer do navio. Puxei a gaveta da minha escrivaninha e
Passei muito tempo com ela, e cheguei a pensar que era só mais uma entre tantas mulheres na minha vida. Mas me enganei. Me apaixonei. "Você é diferente dos outros", ela sussurrou na primeira noite que passamos juntos, seus dedos traçando as cicatrizes nas minhas costas. Eu era jovem e estúpido o suficiente para acreditar. Depois de um ano ao lado dela, me sentindo o homem mais feliz do mundo, decidi pedi-la em casamento. Mas, na noite anterior, Hedrien entrou no meu quarto, apressado, olhando pela janela como se temesse ser ouvido por alguém além de mim. "Tess, acorda!" Hedrien sacudiu meu ombro com força, o rosto pálido à luz da lamparina. "Olha isso." Os documentos que ele espalhou sobre minha cama cheiravam a tinta fresca e sigilo. "O velho Dain está desviando suprimentos dos postos fronteiriços", ele sussurrou, os olhos ardendo com aquela luz de justiça que sempre o condenaria. "Vou viajar depois de amanhã até o quartel de Nailli. Preciso pegar mais algumas informações e, depoi
— Capitão — a voz de Garrick me arrancou do passado. — A tripulação tá comentando. — Ele acendeu um cachimbo de ópio. — Dizem que a garota é bruxa. Que trouxe a tempestade. Olhei para o horizonte. O céu estava limpo, estrelado, mas um bom pirata sabe que não deve confiar no céu limpo. — E você? Acredita nessa bobagem? Ele cuspiu no chão. — Acredito que você tá arriscando o pescoço por uma mina que nem sabe amarrar um nó. Sorri, sem humor. — Eu arrisco meu pescoço todo dia, Garrick. Pelo menos dessa vez, o prêmio é bonito. Ele bufou, mas não discutiu. Ninguém no Arraia discutia comigo. Não depois do que eu fiz por eles. — E se ela tentar fugir? — Não vai. — Como pode ter tanta certeza? Encostei na amurada, sentindo o sal grudar na minha pele. — Porque ela não tem pra onde ir. — Você me disse que quem não tem nada a perder, não tem nada a temer. Encarei meu imediato por alguns segundos, tentando encontrar algo para dizer que provasse que ele estava errado, mas
TESSAR VRYNN Eu não sabia o que estava acontecendo. Estava no meu camarote, concentrado nas cartas náuticas, traçando uma rota que nos mantivesse longe da enseada de Lhamar, a ilha das sereias. Se fôssemos pegos pelo seu canto, o navio inteiro poderia se perder. Era um risco que eu não estava disposto a correr. Então começaram os golpes no casco. Não parecia um canhão. O barulho era diferente, mais seco, como se algo estivesse se chocando contra a madeira repetidamente. Saí do camarote em passos rápidos, o cenho franzido, já preparado para qualquer ataque, mas o que vi no convés me deixou surpreso. Meus homens estavam parados, olhando maravilhados para o mar. Alguns pareciam encantados, outros assustados. E quando segui seus olhares, entendi o motivo. Peixes-espada se jogavam contra o navio. Um após o outro, como se tivessem enlouquecido. Alguns não sobreviveram ao impacto, caindo mortos na água ou deslizando pelo convés encharcado. — Bem, não precisaremos de suprimentos
Liora Nix Acordei depois do desastre dos peixes. O mar estava calmo, e o céu, mais estrelado do que nunca. Uma visão linda, quase irreal. O convés estava silencioso, apenas o marujo no topo do mastro montava guarda. Observei quando ele desceu devagar e, estranhamente, me desejou boa noite antes de seguir em direção à cozinha. Apesar do frio, não me cobri. Só queria sentir aquele momento, respirar a brisa salgada. A sensação de querer ir embora havia sumido, e isso era estranho. Ele fez isso comigo. De alguma forma, parecia ter arrancado a dor de dentro de mim com as próprias mãos. Me chamavam de bruxa, mas quem teve o poder de acalmar o mar dentro de mim foi ele. Ouvi passos lentos atrás de mim. Era ele. Por um momento, achei que fosse me abraçar por trás, mas ele respeitou meu espaço e sentou-se ao meu lado. — Se sente melhor? — Sua voz grave era baixa, quase um sussurro. Assenti sem encará-lo. — A tripulação pediu para que eu lhe agradecesse. Os peixes vão evitar que pass