capítulo 3

Capítulo: Turbulências

O embarque foi rápido. Rápido demais.

Aeroportos sempre me causaram essa estranha sensação de fim e começo ao mesmo tempo. Um lugar onde despedidas se camuflam com reencontros, onde a saudade e a esperança dividem o mesmo portão de embarque. Sentei-me na janela, como sempre fazia, quase por superstição. Gosto de ver o mundo ficando pequeno, gosto da sensação de estar acima das nuvens. Gosto da ilusão de controle que aquela janelinha me dá. Só que, naquela madrugada, algo dentro de mim parecia fora do lugar.

As luzes da pista brilhavam como vaga-lumes organizados. O ronco dos motores era familiar, reconfortante até. Vi os funcionários em solo fazendo sinais com suas lanternas, as bagagens sendo despachadas, o avião ao lado já se preparando para levantar voo. Tudo parecia normal — mas meu coração insistia em dizer o contrário.

Peguei o celular, ainda com sinal, e mandei a última mensagem para Bianca:

"Já com saudade. Te amo. Dá um beijo no Enzo por mim."

A resposta chegou segundos depois:

"Também te amamos. Vai com Deus. Já já você tá de volta."

Suspirei. O tipo de suspiro que parece carregar o peso de algo que ainda não aconteceu. Guardei o celular, ajustei o cinto e apoiei a cabeça no encosto, tentando me convencer de que aquela inquietação era só cansaço acumulado. A viagem seria rápida, um b**e-volta para resolver um acordo pendente — nada que eu já não tivesse feito mil vezes.

O avião começou a taxiar devagar, como um animal gigantesco se preparando para o salto. Aos poucos, ganhamos velocidade, e quando as rodas deixaram o solo, senti aquele frio na barriga que sempre me acompanhava nas decolagens. A cidade ficou para trás em segundos, as luzes se dissolveram numa tapeçaria de pontos brilhantes, e eu respirei fundo. Estava a caminho.

A cabine logo entrou na calmaria típica. Os cintos foram liberados, os comissários começaram o serviço. Pedi um café, mais por hábito do que por necessidade. Ao meu redor, passageiros se ajeitavam para dormir, outros já com os fones nos ouvidos, absorvidos por filmes ou músicas. A senhora ao meu lado já estava pescando sono, coberta com um lenço de tricô e cheiro de lavanda.

Mas eu… eu não conseguia relaxar.

Não era medo de voar. Era outra coisa. Um incômodo sutil que cutucava minha consciência. Algo no olhar de Caio, quando me despedi dele naquela manhã. Tinha algo ali. Uma hesitação, uma sombra no rosto dele, como se estivesse prestes a me contar um segredo e tivesse engolido no último segundo. Ou talvez fosse só minha cabeça querendo enxergar problema onde não havia.

Quarenta minutos se passaram.

Foi então que a voz do comandante cortou o som ambiente. Calma. Controlada. Demais.

— "Senhores passageiros, aqui é o comandante. Estamos enfrentando uma pequena falha técnica e vamos iniciar os procedimentos para retorno ao aeroporto de origem, por precaução. Mantenham os cintos afivelados e sigam as orientações da tripulação. Está tudo sob controle."

A frase foi dita com a precisão de alguém que já a treinou centenas de vezes.

Mas a palavra "falha" ficou ecoando na minha mente.

Falha técnica?

Olhei pela janela. O céu, encoberto por nuvens. Nenhum sinal de tempestade, nada que justificasse um retorno. O voo seguia aparentemente estável. Ainda assim, a informação grudou em mim como cola. O clima dentro do avião mudou sutilmente. Os olhares se cruzavam, curiosos. Algumas pessoas se endireitaram nos assentos. Um casal duas fileiras à frente trocou cochichos nervosos. E mesmo que ninguém dissesse em voz alta, todos pensaram o mesmo: algo não está certo.

As comissárias voltaram a circular, sorrisos no rosto, passos mais rápidos do que antes. Repetiam que era apenas um procedimento padrão. Mas os olhos… os olhos diziam outra coisa.

O silêncio tomou conta da cabine. Como se todo o ar tivesse sido drenado. O som das turbinas era a única coisa que nos mantinha conectados ao real. O senhor à minha frente passou a rezar baixinho, contando as contas de um terço entre os dedos trêmulos. Uma criança começou a chorar. A mãe tentava disfarçar o medo, mas sua voz saía mais aguda do que deveria.

Meu peito começou a pesar.

E se…?

Tentei afastar o pensamento. Respirei fundo. Lembrei de Bianca no portão de embarque, com os olhos cheios de sono e amor. De Enzo gritando "papai!" e correndo pelo corredor com os braços abertos. Fechei os olhos. Rezei, não por mim, mas por eles.

Então, o primeiro solavanco.

Nada demais, no começo. Apenas o tipo de turbulência que todo avião enfrenta. Mas então veio outro. E mais um. E outro. Mais forte.

E então, uma sirene abafada soou da cabine dos pilotos. Uma luz vermelha começou a piscar sobre nossas cabeças.

Nesse instante, não havia mais disfarces.

A comissária que estava perto da minha fileira perdeu o sorriso. Segurou firme no apoio e olhou para os colegas como quem esperava ordens.

O avião deu um tranco forte. Objetos começaram a cair dos compartimentos superiores. A senhora ao meu lado agarrou meu braço com força, os olhos arregalados. Eu não disse nada. Só continuei encarando a janela. O chão estava se aproximando.

A descida, que deveria ser controlada, agora parecia desespero.

As luzes piscaram mais uma vez e depois se apagaram por completo. Por segundos intermináveis, ficamos no escuro. Uma escuridão atravessada apenas pelo som cada vez mais alto das turbinas, pelo ranger do metal sendo forçado além do limite. E pelo medo.

Um cheiro forte invadiu a cabine. Queimado. Plástico. Combustível.

E então veio o impacto.

O mundo desabou.

O avião tocou o solo de lado, como um gigante tropeçando. Derrapou, rodou, arrastou-se pela terra como uma fera ferida. O som das ferragens se despedaçando era ensurdecedor. Gritos. Estalos. Vidros quebrando. Objetos voando. Bagagens se chocando contra corpos. Partes do teto se soltando.

Fui arremessado contra o assento da frente. O cinto me segurou. Por pouco. A dor atravessou meu corpo como uma lança. A cabeça latejava. O peito queimava. A fumaça dificultava a respiração. Tudo era confuso, irreal, violento.

Uma explosão à minha esquerda iluminou a cabine. A asa tinha se partido e se chocado contra algo. Uma bola de fogo atravessou o corredor. O calor me atingiu no rosto. As máscaras caíram, mas muitas já estavam derretidas, inúteis.

Tentei soltar o cinto. Tentei me levantar. Tentei achar uma saída.

Mas não consegui.

Meu corpo não respondia mais como antes. Meus braços estavam pesados. Os sons começavam a desaparecer, como se alguém estivesse girando um botão de volume ao contrário. Até o grito das pessoas ficou distante.

Olhei uma última vez pela janela.

Vi o fogo.

Vi a destruição.

Vi a sombra da asa sendo consumida pelas chamas.

E então, tudo ficou branco.

Um clarão. Um silêncio absoluto. Como se o mundo tivesse sido desligado.

Minha cabeça tombou para o lado. Os olhos se fecharam sem minha permissão.

E a última coisa que pensei antes de apagar foi:

"Bianca… Enzo…"

Depois disso, não vi mais nada.

Apaguei.

[Um dia depois – Zona de impacto do voo 374]

O cheiro de morte era o primeiro a chegar.

Muito antes da visão dos destroços, antes do som das sirenes, antes mesmo do silêncio que tomava conta dos que presenciavam — era o cheiro. Combustível, carne queimada, terra molhada e fumaça se misturavam num perfume grotesco de tragédia.

A floresta estava ferida. Árvores partidas como palitos, folhas queimadas, pedaços do avião espalhados como fragmentos de um pesadelo.

— “Equipe Alfa, setor dois. Confirmando mais corpos.” — a voz no rádio era baixa, mas firme. Técnica.

— “Sem sobreviventes?” — respondeu a central.

— “Negativo. Apenas mais... destroços.”

Um bombeiro abaixou a cabeça. Retirou o capacete por um segundo. Respirou fundo como quem precisava pedir perdão ao mundo por estar presenciando aquilo.

As lonas pretas cobriam corpos enfileirados no que antes era uma clareira. Vinte e três. Depois vinte e sete. E subindo. Alguns irreconhecíveis. Outros com as mãos ainda estendidas, como se tivessem tentado segurar o próprio fim.

— “Achamos o copiloto.” — avisou outro socorrista, afastando uma parte retorcida da cabine. — “Sem chance.”

Ao lado dele, uma enfermeira voluntária murmurava preces em silêncio enquanto limpava o rosto de uma passageira que parecia dormir. Mas não dormia.

Mais adiante, dois homens lutavam para erguer uma das laterais do avião, onde havia uma bolsa enroscada sob ferragens. Dentro dela, três passaportes carbonizados, uma carteira infantil e uma aliança de ouro manchada de sangue.

O silêncio era quebrado apenas pelo barulho dos helicópteros circulando ao longe e pelo apito intermitente de detectores de calor tentando identificar qualquer sinal de vida.

Nada.

Nada.

Até que...

— “Tem algo aqui!” — gritou um dos bombeiros.

Os outros correram.

Entre as árvores tombadas, a mais de cinquenta metros da fuselagem principal, havia um pedaço do avião quase irreconhecível. Um assento inteiro, preso a uma barra metálica, com um corpo ainda amarrado pelo cinto de segurança.

— “Cacete... ele foi arremessado.” — disse um socorrista, ajoelhando-se.

— “Tá morto?” — perguntou outro, já se preparando para cobrir com a lona.

— “Espera...”

O bombeiro tocou o pescoço do homem.

Silêncio.

E então…

— “Pulso fraco. Mas tá aqui. Ele tá respirando.”

As vozes explodiram no rádio.

— “Sobrevivente encontrado! Homem adulto, desacordado, sinais vitais fracos. Repetindo: sobrevivente!”

O grupo se uniu num movimento ensaiado. Estabilizaram a cabeça, protegeram o pescoço, isolaram o local.

O rosto do homem estava coberto de sangue seco e fuligem. Um corte profundo atravessava sua sobrancelha. As costelas pareciam afundadas. A respiração era irregular. Mas ele estava ali.

Lutando.

Um dos bombeiros começou a procurar por qualquer documento. Nos bolsos da jaqueta, nada. No banco, nada. Mas ao abrir o cinto que o prendia ao assento, algo caiu do cós da calça.

Uma carteira de couro.

Encharcada. Amassada. Mas inteira o suficiente para carregar a verdade.

O socorrista abriu com cuidado, como se estivesse manuseando um milagre.

E ali estava:

Gustavo Henrique Oliveira Andrade.

Foto. RG. Cartão de embarque com a sigla maldita estampada no canto superior: Voo 374.

O bombeiro se virou para a equipe, com os olhos arregalados.

— “Meu Deus... é o empresário desaparecido. A mídia inteira tá procurando por ele.”

O rádio chiou novamente.

— “Central, temos um nome. Repetindo: GUSTAVO HENRIQUE OLIVEIRA ANDRADE. Sobrevivente confirmado do Voo 374. Estado crítico. Em transporte aéreo.”

A maca foi içada com cuidado. O helicóptero já se aproximava. As hélices varriam a fumaça e a poeira como se anunciassem que o improvável acabava de acontecer.

E um dos socorristas, sujo até a alma, murmurou, encarando o rosto machucado de Gustavo:

— “Você não devia estar vivo, cara. Mas parece que tem alguém lá em cima puxando seu fio com força.”

Enquanto o helicóptero decolava, levando o homem que o mundo inteiro acreditava morto…

[Cena – Hospital Metropolitano | Horas após o resgate]

O helicóptero pousou com violência calculada no heliponto do Hospital Metropolitano. Os ventos das hélices sacudiam tudo ao redor — papéis voando, jalecos batendo contra o corpo, cabelos presos com força.

— “Paciente crítico! Vítima do acidente do voo 374! Está vivo!” — gritou um dos socorristas, enquanto a maca era empurrada com pressa pelo corredor estreito.

— “ID confirmado: Gustavo Henrique Oliveira Andrade. 38 anos. Empresário.” — informou a enfermeira, correndo ao lado com o prontuário sujo de barro nas mãos.

O elevador subiu como um soco direto. Três andares. Unidade de trauma. Portas abrindo com estrondo.

A médica plantonista, doutora Lorena Mello, aguardava com as luvas já vestidas.

— “Vamos! Sala de emergência 2! Agora!”

Entraram.

Tudo era caos e precisão. Seringas sendo abertas, bisturis sendo entregues, fios sendo conectados. Gustavo estava inconsciente. Mas seu corpo reagia. Pulso acelerado. Respiração irregular. Sangue nos pulmões. Fraturas no braço direito, duas costelas quebradas, suspeita de traumatismo craniano.

— “Pupilas reagem… mas ele não responde a estímulos.” — disse um dos residentes.

— “Tensão 7 por 4. Ele tá indo embora!” — gritou outro.

Lorena pressionou o peito com firmeza, olhando o monitor.

— “Não. Não aqui. Não agora.”

Adrenalina.

Respirador.

Desfibrilador ativado por precaução.

O coração de Gustavo oscilava entre resistência e desistência. Os médicos lutavam como guerreiros em campo de batalha. O tempo parecia torcido. Longo. Cruel.

Então, de repente…

Silêncio.

A linha do monitor se estabilizou.

Batimentos presentes.

Respiração mecânica assistida.

Mas os olhos…

Os olhos estavam fechados.

Fixos.

Vazios.

— “Ele entrou em coma profundo.” — murmurou Lorena, baixando os braços.

Todos pararam. Por um instante, só o som dos aparelhos preenchia a sala.

— “Vamos entubá-lo. Registrar tudo. Ele está vivo, mas não sabemos por quanto tempo.”

Enquanto os enfermeiros finalizavam os procedimentos, Lorena olhou para o rosto de Gustavo e disse, baixinho:

— “Se você pode ouvir... segura. Alguém lá fora ainda te espera.”

Mas ele não respondeu.

Não se moveu.

Apenas dormiu.

Profundo. Silencioso. Perdido entre dois mundos.

E ninguém — nem mesmo os médicos — sabia se Gustavo Andrade um dia abriria os olhos outra vez.

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