capítulo 2

– Recomeços e Silêncios

O relógio marcava cinco da manhã quando fechei o porta-malas pela última vez. O som ecoou seco no ar frio da madrugada, rompendo o silêncio que envolvia a rua como um véu. A cidade ainda dormia, mergulhada numa paz que só existe antes do sol nascer — e naquela manhã, tudo parecia suspenso. Como se o tempo também estivesse prendendo a respiração.

A neblina rastejava sobre o asfalto, úmida, densa. A luz amarela dos postes iluminava pouco. Era como se até o mundo estivesse hesitando. Como se soubesse o peso do que aquela despedida carregava.

Bianca surgiu na porta da casa com Enzo nos braços. Ela caminhava devagar, protegendo o filho com a mantinha azul que ele carregava desde o primeiro mês de vida. Os cabelos estavam presos num coque frouxo, o rosto cansado, mas lindo. Era a beleza de quem já acordou mil vezes de madrugada, mas ainda encontra forças pra seguir.

Enzo estava acordado. Os olhos grandes e sonolentos observavam o mundo em silêncio, as bochechas rosadas pelo calor do colo da mãe. O coelhinho de pelúcia, quase sem orelha, apertado contra o peito. Quando me viu, soltou um som pequeno, carregado de significado:

— Pá… pai…

Aquilo me atravessou.

Estendi os braços e Bianca me entregou nosso filho com cuidado. Enzo me envolveu com os bracinhos curtos, encostou a cabeça no meu ombro e suspirou, como se também soubesse que o momento era maior do que ele podia entender.

Caio já estava do lado de fora. Encostado no portão, de braços cruzados, a postura rígida e o olhar escuro. Vestia um moletom escuro, calça jeans e o rosto sério. Mas o que me prendeu foi o silêncio. Um silêncio estranho. Cheio. Tenso.

— Pronto pra madrugar com a gente? — perguntei, tentando aliviar o clima.

— Sempre — ele respondeu, forçando um sorriso. Mas havia algo nos olhos dele. Algo que não combinava com a resposta.

Caio era o tipo de cara que sempre quebrava a tensão com uma piada boba, um comentário idiota. Mas aquela manhã... ele estava diferente. Carregado. Calado demais.

Durante o caminho até o aeroporto, o silêncio continuou. Bianca cochilava no banco do passageiro com Enzo no colo. Ele brincava com os dedinhos dela, soltando palavras desconexas: “mamã… luz… au-au…”

Eu dirigia em silêncio. De vez em quando, olhava pelo retrovisor. Caio estava com a testa encostada no vidro, olhando a cidade acordar. Mas não era só contemplação. Era peso.

— Tá tudo certo aí? — perguntei baixo, só pra ele ouvir.

Ele demorou pra responder.

— Tô. Só… pensando. Essas horas mexem com a gente.

Assenti. Mas o incômodo continuava latejando dentro de mim.

Chegamos ao aeroporto com o céu começando a ganhar cor. Um laranja tímido se espalhava no horizonte. O frio da manhã cortava a pele, e o ar parecia mais denso do que o normal.

Estacionei. Ajudei Bianca a sair com Enzo nos braços. Ele olhou o prédio imenso do aeroporto e apontou:

— Avião…

— Isso mesmo, campeão — falei, tentando sorrir.

Fizemos o check-in. Bianca estava firme, mas quieta. Ela sempre foi assim: engolia o choro pra não pesar ainda mais o ambiente. Mas eu via. O aperto no maxilar, a respiração curta. Ela sentia.

Me aproximei por trás, abracei os dois e encostei o rosto no ombro dela.

— Eu te amo — murmurei.

Ela virou um pouco o rosto e encostou o dela no meu.

— Também te amo. Vai dar certo, Gustavo. Vai… e volta com a vida que a gente merece.

— Prometo. Em breve, isso tudo vai valer a pena.

Me abaixei até Enzo. Ele já estava com os olhos abertos, mais acordado. Sorria de canto, preguiçoso. Esticou os bracinhos e falou:

— Pai… dá…

Peguei-o no colo. Beijei sua testa. E abracei com força.

— Papai te ama, filho. Muito. Você é meu mundo. Papai vai trabalhar pra construir nossa nova casa. Um lugar só nosso. Um lugar pra você crescer em paz.

Ele riu com sono e encostou a cabeça no meu ombro. Bianca nos envolveu num abraço apertado, e por um instante, o tempo parou.

Quando me afastei, fui até Caio. Ele me esperava de braços cruzados, mas o rosto… o rosto agora estava exposto. Sem máscara.

— Cuida deles, Caio — pedi. — Não é só passar por aqui. É estar presente. É reparar nos silêncios da Bianca, nos chorinhos do Enzo. É ser apoio quando tudo pesar.

Ele assentiu, olhos marejados. Pela primeira vez, vi que aquilo também doía nele.

— Eu cuido. Como se fossem meus. Palavra.

Abracei-o forte. Bati nas costas dele como se quisesse selar aquele pacto com o corpo inteiro.

— Tô indo pra São Paulo.Três meses de imersão. Uma vida nova. Mas preciso saber que eles tão bem até lá. Preciso da tua palavra, irmão.

— Você tem. Vai lá. Faz acontecer. A gente segura aqui.

Voltei pra Bianca. Ela me olhava como se quisesse decorar cada traço do meu rosto.

— Cuida do nosso menino — pedi. — E de você.

— A gente vai estar te esperando.

Beijei os dois. Enzo riu quando encostei o nariz no dele.

— Pai… vai? — ele perguntou.

— Vai, filhote. Mas volto logo.

Dei um passo pra trás. Respirei fundo.

E fui.

Sem olhar pra trás.

Porque se olhasse... talvez não conseguisse seguir.

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