A câmara de pedra onde Ana foi deixada era fria, mas não desconfortável. Almofadas rústicas forravam um divã encostado à parede, e uma lareira fumegava discretamente ao canto. Não havia correntes. Nem grades. Mas Ana sabia: aquilo ainda era uma cela.
Ela estava sendo observada. Sentia os olhos atrás das paredes. Ouvia passos que paravam quando ela se movia. Sussurros que soavam antigos demais para fazer sentido.
Kael não voltou naquela noite.
Mas o efeito dele permaneceu.
Ana não conseguia esquecer o calor do toque dele. O jeito como a fera parecia à espreita dentro de seus olhos. O modo como seus instintos gritavam para fugir… ou se render.
“Você está viva. Isso é o que importa”, repetia para si. Mas a realidade era outra: ela estava presa num reino que não conhecia, cercada por criaturas que a consideravam extinta.
E o homem mais perigoso dali queria entender o que ela era.
Ou possuí-la.
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No dia seguinte, duas mulheres entraram em seu quarto. Uma era baixa, com olhos violetas e orelhas longas — uma elfa. A outra parecia humana, mas seus olhos dourados deixavam claro que não era.
— Kael quer que você se prepare — disse a elfa, lançando-lhe um tecido prateado. — Ele vai te mostrar a Corte.
— Corte?
— O Conselho das Sombras. — A outra mulher sorriu, mas não era um sorriso acolhedor. — Os que decidem se você vive… ou morre.
Ana engoliu em seco.
Vestiu-se com o traje oferecido. Era belo, mas revelador — um vestido com fenda até a coxa, amarrado por fitas que serpenteavam pelo seu corpo. Sentia-se nua e exposta, mas havia poder em sua postura. Ela ergueu o queixo, como quem se recusa a parecer fraca.
Kael a aguardava ao fim do corredor.
Vestido com couro negro e armaduras finamente entalhadas, ele parecia mais rei do que lobo. Quando a viu, seus olhos a percorreram por inteiro, e algo em seu maxilar se contraiu.
— Você está linda. — Ele não elogiava. Afirmava, como se fosse óbvio.
— E você parece prestes a me vender como um troféu — Ana respondeu, firme.
Ele sorriu com o canto da boca.
— Eles não vão te tocar. Não enquanto estiver sob minha proteção.
Ela queria acreditar. Mas sabia que, em um lugar onde o poder era tudo, proteção era só outra forma de posse.
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A Corte das Sombras reunia-se em um salão circular, onde o teto desaparecia sob um céu enegrecido por nuvens mágicas. O trono de Kael estava no centro, elevado em degraus, rodeado por assentos onde se espalhavam representantes das raças dominantes: elfos, fadas sombrias, metamorfos e um ser coberto por escamas — um dragão em forma humana.
Quando Ana entrou, os sussurros recomeçaram.
— É humana…
— Como ela está viva?
— Isso é blasfêmia…
Kael ergueu a mão, e o silêncio caiu como uma lâmina.
— Esta mulher apareceu em minha floresta, ferida… e se curou diante dos olhos dos meus.
— Seu sangue é poderoso.
— E ninguém sabe de onde ela veio.
Um elfo de cabelos brancos se levantou, a voz como neve caindo:
— Isso é perigoso. E se for uma arma? Uma isca? Uma criação da magia proibida?
— Eu sou médica! — Ana disse, dando um passo à frente. — Eu salvava vidas. Nunca matei ninguém. Só quero voltar para minha casa!
— Ela mente — sussurrou uma fada com olhos negros. — Todas as criaturas mentem.
— Então vamos descobrir a verdade — disse Kael, e o silêncio ficou ainda mais tenso.
Ele desceu os degraus, aproximando-se dela. Seus olhos brilhavam com intensidade primal. E então, ele fez algo inesperado: cortou a palma da própria mão com uma adaga cerimonial. O sangue escorreu, rubro e quente.
— Cure-me.
Ana hesitou.
— O que…?
— Cure-me — repetiu ele, estendendo a mão ensanguentada.
O salão observava.
Ana respirou fundo, ignorando o tremor nas mãos. Ajoelhou-se diante dele e segurou sua mão ferida. O sangue escorria entre seus dedos. Quando fechou os olhos, sentiu o calor do ferimento, como se ele a chamasse. Seu coração acelerou. E então, ela sentiu: algo dentro dela despertou. Não era magia. Era algo mais antigo. Algo puro.
A ferida começou a se fechar.
A pele se regenerou diante de todos. E o silêncio virou espanto.
— Isso… não é possível — murmurou o dragão, com os olhos arregalados.
Kael se ajoelhou ao lado dela.
— Agora sabem do que você é feita — disse, com um sussurro feroz. — E por isso… todos vão querer te possuir.
Ou te destruir.
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Naquela noite, Ana não conseguiu dormir.
Kael apareceu em seus aposentos pouco antes da meia-noite. Ele trazia vinho e silêncio. E se sentou ao lado dela, na penumbra.
— Eles vão vir atrás de você — disse ele, olhando para o fogo. — Mas eu não vou deixar.
— Ainda não.
Ela virou-se para ele.
— Por que você está fazendo isso? Por que não me entregou?
Kael se aproximou. Seus olhos estavam escurecidos, como se lutasse contra algo dentro de si.
— Porque desde que você apareceu… meu lobo não cala.
Ana prendeu a respiração.
Kael tocou o rosto dela, a palma quente e firme. E quando se aproximou, os lábios a milímetros dos seus, ele sussurrou:
— E se você for a maldição que o destino me reservou… então que ela seja minha.