Foi quando Luiza se aproximou. Ela tocou meu braço com delicadeza e perguntou:
— Você viu o Pedro?
— Vi há pouco — respondi, sem dar muita atenção. — Estava flertando com uma garota.
Ela franziu a testa.
— Que garota?
— Não sei — dei de ombros. — Não conheço. Deve ser amiga de algum amigo em comum. Só vi de rosto. Não troquei nenhuma palavra com ela. Nem sei quem a convidou.
Luiza ficou em silêncio por um segundo. Tentou disfarçar o incômodo, mas eu percebi. Ela não gostou da resposta. Não gostou da ideia de Pedro flertando com alguém desconhecida.
Mas Pedro sempre foi assim. Livre, leve, encantador. Gostava de flertar, de se divertir. E eu nunca vi problema nisso.
— Vem — falei, puxando Luiza pela mão. — Esquece isso. Vamos curtir a noite. A festa tá linda.
Ela hesitou. Olhou em direção ao salão, como se procurasse por ele. Mas acabou cedendo.
— Tá bom — disse, forçando um sorriso. — Vamos dançar.
Naquela noite, eu e Luiza curtimos como há muito tempo não fazíamos. Dançamos até os pés doerem, rimos alto, bebemos champanhe francês e deixamos o tempo escorrer sem pressa. A festa estava deslumbrante — como eu queria. O salão decorado com flores brancas e velas suspensas parecia saído de um sonho. As luzes suaves criavam um brilho dourado sobre os rostos, e o som era impecável. Cada detalhe tinha sido pensado com carinho, e ver tudo funcionando me dava uma alegria silenciosa.
Luiza estava linda. Usava um vestido azul escuro que realçava seus olhos, e o cabelo preso deixava o rosto ainda mais delicado. Ela chegou meio tensa, perguntando sobre Pedro, mas depois se soltou. Conversamos sobre outras festas, sobre nossas viagens, sobre tudo que vivemos juntas. Lembramos da vez em que nos perdemos em Lisboa e acabamos achando um restaurante escondido que virou nosso favorito. Falamos da trilha em Carrancas, do pôr do sol em Trancoso, das madrugadas em que Pedro nos fazia rir até chorar.
A pista estava cheia, vibrante. Gente dançando com taças na mão, casais se formando nos cantos, flashes de celular iluminando sorrisos. Os garçons circulavam com bandejas de canapés delicados — vieiras com molho cítrico, mini bruschettas de burrata, tudo impecável. O perfume das flores misturava-se ao aroma dos vinhos, e havia uma leve brisa entrando pelas janelas abertas.
Eu me sentia leve. Por algumas horas, esqueci tudo que me preocupava. Luiza parecia feliz também, mesmo que eu soubesse que algo nela ainda estava inquieto. Pedro estava por ali, como sempre — flertando, sorrindo, sendo ele. E eu, sem saber, estava vivendo uma das últimas noites com ele por perto.
A festa ainda seguia, mas já dava sinais de cansaço. As luzes estavam mais suaves, algumas pessoas já se despediam, e os garçons recolhiam taças esquecidas pelos cantos. Foi quando Luiza se aproximou de mim novamente, com o semblante mais sério.
— Clara, você viu o Pedro? — perguntou, quase num sussurro.
Olhei ao redor, esperando encontrá-lo encostado em alguma parede, rindo com alguém, como sempre fazia. Mas não o vi. E naquele instante, algo me incomodou.
— Não... — respondi, tentando manter a calma. — Ele disse que voltaria conosco, lembra?
Tínhamos combinado. Eu, Luiza e Pedro. Os três juntos, como sempre. Mas ele não estava ali. E a festa já estava para acabar.
Começamos a perguntar. Fomos de grupo em grupo, entre os que ainda dançavam, os que conversavam nos sofás, os que fumavam na varanda. Ninguém sabia ao certo. Alguns disseram que o viram mais cedo, outros nem lembravam de tê-lo visto.
Até que um dos amigos comentou:
— Acho que ele saiu com a Júlia...
Eu e Luiza trocamos um olhar. Júlia? Quem era Júlia?
Nenhuma de nós conhecia. Não sabíamos quem a havia convidado, de onde ela viera, nem sequer lembrávamos de tê-la visto. Era como se Pedro tivesse desaparecido com alguém que não existia para nós.
A inquietação cresceu. A música ainda tocava, mas já não fazia sentido. O brilho da festa começava a se apagar dentro de mim.
— Que horas foi isso? — perguntei, tentando manter a voz firme.
O rapaz que mencionou Júlia deu de ombros, como quem não quer se comprometer.
— Difícil dizer a hora exata... acho que faz mais ou menos uma hora. Vi ele ali perto da varanda, estava com a garota, os dois se beijando. Depois disso, sumiram.
Olhei para Luiza. Ela também não tinha visto Pedro sair. E eu, que sempre percebia seus movimentos mesmo sem procurá-lo, não tinha notado nada. Era estranho. Pedro não era de sair sem avisar. Principalmente em uma noite como aquela, que era nossa.
— Ele disse pra alguém onde ia? — insisti. — Mandou mensagem? Falou alguma coisa?
Ninguém sabia. Ninguém tinha recebido ligação, nem visto ele pegar o celular. Só tinham visto ele saindo com essa tal de Júlia.
— Mas quem é Júlia? — Luiza perguntou, já impaciente. — Alguém sabe quem a convidou?
Silêncio. Alguns rostos se entreolharam, mas ninguém tinha resposta. Era como se ela tivesse aparecido e desaparecido com Pedro, sem deixar rastro.
A festa já estava esvaziando. As luzes começavam a se apagar, os últimos convidados se despediam. E Pedro... nada. Nenhuma mensagem, nenhuma ligação, nenhum sinal.
A inquietação virou incômodo. Eu sentia um nó no estômago. Não era só preocupação — era uma sensação estranha, como se algo estivesse fora do lugar, como se a noite tivesse mudado de tom sem que eu percebesse.
E foi ali, entre os últimos acordes da música e os copos esquecidos sobre a mesa, que eu soube: Pedro não voltaria naquela noite.
A festa já não tinha mais brilho. As luzes começavam a se apagar, os últimos convidados se despediam, e o salão, antes vibrante, agora parecia vazio demais. Eu e Luiza trocamos um olhar silencioso — aquele tipo de olhar que diz tudo sem precisar de palavras.
Decidimos encerrar a noite ali. Não fazia mais sentido continuar. Pedro não estava, e a ausência dele pesava mais do que qualquer música alta ou taça cheia.
— Talvez ele tenha ido embora com nossos pais — sugeri, tentando acalmar a mim mesma tanto quanto a Luiza. Eles tinham saído mais cedo, discretos, como sempre. Era possível que Pedro tivesse ido com eles, sem avisar, sem pensar que isso nos deixaria inquietas.
Preferi acreditar nisso. Era mais fácil imaginar que ele estava em casa, seguro, talvez até já dormindo, do que aceitar aquela história de que saiu com uma tal de Júlia — alguém que ninguém conhecia, que ninguém sabia de onde veio.
Com esse pensamento, pegamos nossas bolsas, agradecemos aos poucos que ainda estavam por ali, e saímos. O ar da madrugada estava fresco, mas havia um peso no peito. O coração apertado, a mente cheia de perguntas.
No caminho de volta, o silêncio entre mim e Luiza dizia mais do que qualquer conversa. Ambas esperávamos encontrar Pedro em casa. Esperávamos que tudo fosse apenas um mal-entendido. Mas, no fundo, algo já não parecia certo.
Chegamos em casa já com o coração apertado. O silêncio da rua contrastava com o burburinho que ainda ecoava dentro de mim. Eu e Luiza entramos pela porta da frente, e logo demos de cara com meus pais, ainda acordados na sala de TV.
Achei estranho. Eles costumavam dormir cedo, ainda mais depois de uma festa longa como aquela. Mas estavam ali, sentados, com os rostos tensos e os olhos atentos, como se esperassem por alguma notícia.
— O que houve? — perguntei, já preocupada. — Cadê o Pedro?
Minha mãe se levantou devagar, como se estivesse esperando aquela pergunta. Meu pai olhou para nós com um semblante confuso.
— Ué... achamos que vocês três voltariam juntos — disse ele. — Foi o que combinaram, não foi?
— Sim — respondi, tentando controlar a ansiedade. — Mas ele sumiu da festa. Disseram que saiu com uma garota chamada Júlia... mas ninguém sabe quem é ela.
Meus pais se entreolharam. O rosto da minha mãe ficou ainda mais tenso. Meu pai passou a mão no queixo, pensativo.
— Júlia? — repetiu ele. — Nunca ouvimos esse nome. Achamos que ele estava com vocês.
O silêncio que se seguiu foi pesado. A TV estava ligada, mas ninguém prestava atenção. Era como se o ar tivesse mudado de densidade, como se algo invisível estivesse pairando sobre nós.
— Estamos com uma sensação estranha — confessou minha mãe, com a voz baixa. — Desde que chegamos, parece que... não sei. Como se algo estivesse fora do lugar.
Eu e Luiza nos sentamos no sofá, em silêncio. Aquela noite, que começou com risos e brindes, agora parecia um enigma. Pedro não estava ali. E pela primeira vez, ninguém sabia onde ele estava — nem com quem.
Meus pais não esperam mais. Assim que percebem que Pedro não está em casa, que ninguém sabe onde ele está, que nenhuma mensagem chegou, eles se levantam com urgência. Chamam a mim e a Luiza, e sem precisar dizer muito, entendemos: vamos começar a procurar.
— Vamos ligar para os amigos — diz meu pai, já com o celular na mão. — E verificar os arredores. Hotéis, ruas próximas, qualquer lugar onde ele possa ter ido.
Saímos juntos, ainda vestidos com as roupas da festa, como se o tempo não tivesse passado. Eu e Luiza seguimos meus pais, dividindo tarefas. Enquanto minha mãe começa a ligar para os amigos mais próximos, eu e Luiza buscamos por hotéis nas redondezas da nossa casa e também perto do clube onde a festa aconteceu.
A cada ligação, a esperança se mistura com o medo. Ninguém sabe de nada. Alguns dizem que viram Pedro com Júlia, mas ninguém sabe quem ela é, onde mora, se foi embora com ele ou se ele saiu sozinho depois.
A madrugada avança, e a cidade parece quieta demais. As ruas estão vazias, os hotéis silenciosos, os recepcionistas confusos com nossas perguntas. Nada. Nenhum registro. Nenhuma pista.
O coração aperta. A cada passo, a sensação de que algo está errado se intensifica. Pedro não desapareceria assim. Não sem avisar. Não no nosso aniversário.
E enquanto a busca continua, uma pergunta começa a ecoar dentro de mim: Onde está Pedro? E quem é Júlia?
Luiza parou de repente, como se tivesse sido atingida por uma ideia urgente.
— Espera... — disse ela, com os olhos arregalados. — A lista de convidados. E a portaria do clube. Eles registram quem entra e sai, não registram?
Meus pais se viraram na hora. Era uma pista concreta. Algo que podíamos verificar imediatamente.
— Vamos voltar ao clube — disse meu pai, já acelerando o passo.
Seguimos juntos, em silêncio, com o coração apertado. O salão da festa estava quase vazio agora, com funcionários recolhendo restos de decoração e copos esquecidos. A alegria da noite anterior parecia um eco distante, engolido pela angústia.
Meu pai foi direto ao gerente do clube. Explicou a situação, mostrou a foto de Pedro, pediu acesso à lista de convidados e ao registro da portaria.
O gerente hesitou por um instante, mas diante da expressão da minha mãe — um misto de desespero e determinação — ele cedeu.
Recebemos uma cópia da lista. Luiza e eu nos sentamos num canto e começamos a vasculhar nome por nome, enquanto meus pais tentavam contato com a segurança para acessar as câmeras.
Foi Luiza quem encontrou primeiro.
— Clara... olha isso — disse ela, apontando para um nome. — Júlia Monteiro. Ela entrou às 22h17. Mas não tem registro de saída.
Meu coração disparou. — Júlia Monteiro? — repeti, sentindo um arrepio. O nome me soava familiar. E então, como um estalo, lembrei: Monteiro Produções. A empresa dos Monteiro, conhecida no meio artístico, envolvida em desfiles, eventos de luxo, campanhas publicitárias.
Luiza já estava com o celular na mão, procurando o nome nas redes sociais. Em segundos, ela encontrou o perfil. E aí veio o choque.
— Meu Deus... — murmurou ela. — Clara, você não vai acreditar.
Júlia Monteiro. Milhões de seguidores. Iniciando carreira como modelo.
Júlia era filha dos donos. Eu já tinha ouvido falar dela — mimada, egocêntrica, antipática. Sempre cercada de gente influente, mas com fama de tratar todos com superioridade. O tipo de garota que se acha superior a todos, que vive cercada de bajuladores e que nunca se mistura com “gente comum”.
— Isso não faz sentido — disse eu, tentando processar. — Júlia Monteiro estava na nossa festa? Com Pedro?
Luiza mostrou uma foto postada por ela na noite anterior: uma selfie no salão, com legenda provocativa. Nos comentários... uma curtida de Pedro.
Meu pai voltou com uma notícia: as câmeras registraram Pedro saindo com Júlia por uma porta lateral, por volta de 2h da manhã.
— Mas depois disso... nada — disse ele. — Nenhum dos dois voltou. Nenhum dos dois passou pela portaria.
O silêncio caiu como uma cortina pesada. Júlia Monteiro. A última pessoa vista com Pedro. E agora, a única pista que tínhamos.
Sentada no sofá, com o celular tremendo nas mãos, digitei o nome dela no G****e: Júlia Monteiro.
A página carregou rápido demais. E ali estava. Fotos impecáveis, editoriais de moda, entrevistas em sites de celebridades. Modelo. 22 anos. Filha de empresários do ramo artístico. E logo abaixo, como uma facada no peito: Namorada de Rafael Duarte, 33 anos. Também modelo.
Meu coração parou por um segundo. Como assim? Júlia tem namorado? Então por que estava com Pedro? Por que saiu com ele pela porta lateral do clube? Por que não há registro de volta?
Mostrei a tela para meus pais e para Luiza. Todos ficaram em silêncio. Era como se a realidade estivesse se desfazendo aos poucos, revelando algo que ninguém queria ver.
O dia amanheceu. O sol já se fazia presente, mas parecia zombar da nossa angústia. Estávamos exaustos, sem dormir, sem comer, sem saber o que fazer. Na delegacia, disseram que não podiam agir ainda — não haviam se passado 24 horas desde o desaparecimento de Pedro.
Voltamos para casa, derrotados. Os amigos começaram a chegar, tentando ajudar, tentando consolar. Lucas, o melhor amigo de Pedro e irmão de Luiza, estava conosco o tempo todo, calado, tenso, como se carregasse o peso do mundo nos ombros.
No início da noite, enquanto todos estavam reunidos na sala, Lucas recebeu uma ligação. Ele atendeu em silêncio, se afastando um pouco. E então... seu rosto ficou pálido. Os olhos se arregalaram. Ele não disse uma palavra. Apenas deixou o celular escorregar da mão e cair no chão.
Lágrimas começaram a rolar pelo seu rosto. Lentas, pesadas, como se cada uma carregasse uma verdade que ele não queria enfrentar.
Todos se levantaram ao mesmo tempo. — Lucas... o que foi? — perguntou Luiza, já se aproximando.
Mas ele não respondeu. Apenas olhou para mim. E naquele olhar, eu soube: alguma coisa tinha acontecido. Algo que mudaria tudo.
— Clara, respira — disse Lucas, com a voz baixa, firme, tentando me conter. — Você precisa se acalmar... sua mãe está em choque. Se você desmoronar, ela desaba também.
Eu mal conseguia puxar o ar. Luiza se aproximou do irmão, os olhos arregalados, esperando por respostas. Lucas olhou para nós duas, depois para os meus pais, e então começou a falar.
— Um amigo meu da polícia me ligou agora. Ele está envolvido numa investigação que começou hoje cedo... — fez uma pausa, como se cada palavra fosse uma peça delicada de um quebra-cabeça. — Encontraram um corpo.
Meu coração congelou. Minha mãe se levantou devagar, como se o chão estivesse se desfazendo sob os pés.
— Um corpo com características que batem com as do Pedro — continuou Lucas. — Ainda não é confirmação oficial, mas... é compatível.
Luiza levou a mão à boca. Meu pai se sentou, em silêncio absoluto. Eu senti o mundo girar, como se tudo estivesse prestes a desabar.
— Como eles chegaram a isso? — perguntei, com a voz trêmula.
— Eu contei ao meu amigo que Pedro foi visto pela última vez saindo do clube com Júlia Monteiro — explicou Lucas. — Eles revisaram todas as câmeras de segurança. Viram os dois entrando juntos num hotel ali próximo, por volta das duas da manhã.
— Que hotel? — perguntei, já me levantando.
— Um hotel que estava recebendo um desfile privado de uma marca patrocinada pela Monteiro Produções — disse ele, olhando diretamente para mim.
Silêncio.
— Foi nesse hotel que encontraram o corpo — completou Lucas. — Em um dos quartos. E no mesmo local, o modelo Rafael Duarte foi detido. Estava em estado de embriaguez, com sinais de uso de arma branca. A polícia ainda não confirmou se os casos estão ligados... mas é sério. Eles estão tratando como suspeita.
Minha mãe começou a chorar. Luiza se sentou ao lado dela, tentando consolar, mas também sem forças.
— Ainda não há informações concretas — disse Lucas, tentando manter a calma. — Mas precisamos ir até lá. Ver com os próprios olhos. Entender o que está acontecendo.
Eu assenti, mesmo sem conseguir falar. O corpo pode ser Pedro. E se for... tudo muda.
— Eu estou indo com eles.
— Eu vou com vocês — falei, sem hesitar.
Lucas se virou, surpreso.
— Clara, não... você não precisa passar por isso. É uma cena de crime. É pesado demais.
— Eu vou sim — interrompi, mais alto. — Pedro é meu irmão. E se alguém tem que estar lá, sou eu.
Luiza me olhou com os olhos marejados, mas permaneceu em silêncio. Meu pai abaixou a cabeça, vencido pela dor. Minha mãe chorava sem som, como se o mundo tivesse deixado de fazer sentido.
Lucas respirou fundo, derrotado pela minha decisão.
— Tá bom — disse ele, finalmente. — Mas se prepara. O que você vai ver... pode mudar tudo.
Peguei minha bolsa com mãos trêmulas, mas o olhar firme. Eu precisava encarar. Precisava entender. Precisava saber — embora meu coração já gritasse a resposta.
Clara e Lucas saíram de casa em silêncio. O ar parecia mais pesado do que o normal, como se o mundo soubesse que algo terrível estava prestes a ser confirmado. No carro, Lucas dirigia com o maxilar travado, os olhos fixos na estrada. Clara olhava pela janela, tentando conter o turbilhão que se formava dentro dela.
Depois de alguns minutos, Lucas quebrou o silêncio.
— Você conhece algum Rafael? — perguntou, sem tirar os olhos da pista.
Clara balançou a cabeça, sem hesitar.
— Não. Nenhum. Nem eu, nem o Pedro.
Lucas assentiu devagar, mas parecia ainda tentando conectar os pontos.
— Então como esse Rafael Duarte se encaixa nisso tudo?
Clara respirou fundo, tentando organizar os pensamentos.
— Na festa... Pedro estava flertando com uma garota. Júlia. Algumas pessoas viram. Um amigo nosso disse que viu os dois se beijando.
Lucas olhou rapidamente para ela, surpreso.
— Júlia Monteiro?
— Sim. Quando eu fui pesquisar sobre ela, tentando entender quem era... descobri que ela é namorada de um cara chamado Rafael Duarte.
Lucas soltou um palavrão baixinho, quase como um reflexo.
— Puta merda...
Clara se virou pra ele, assustada com a reação.
— Você conhece ele?
Lucas não respondeu de imediato. O silêncio voltou a dominar o carro, mas agora carregava outra coisa: medo. Medo do que estava por vir. Medo do que já podia ser verdade.
E Clara sabia — mesmo sem confirmação — que o nome Rafael Duarte não estava ali por acaso.
Chegamos ao hotel já sob o manto da noite. As luzes da fachada brilhavam com frieza, refletindo nos vidros escuros como se ignorassem completamente o peso que nos acompanhava. O silêncio da rua contrastava com o turbilhão dentro de mim. Lucas estacionou o carro e saiu rápido, sem dizer nada.
Antes que eu pudesse abrir a porta, ele se virou e fez um gesto contido.
— Clara, espera aqui. Fica no carro. Só por enquanto.
— Lucas...
— Por favor — disse ele, com a voz firme, mas gentil. — Deixa eu falar com os policiais primeiro. Ver o que está acontecendo. Se for mesmo o Pedro... eu volto pra te buscar.
Assenti, mesmo que tudo em mim gritasse para sair correndo atrás dele. Fiquei ali, sentada, com as mãos trêmulas no colo, observando Lucas se aproximar do grupo de policiais ao lado de um carro discreto, estacionado perto da entrada lateral do hotel.
Eles conversaram por alguns minutos. Lucas ouvia, balançava a cabeça, os olhos cada vez mais baixos. Um dos policiais entregou um papel, outro apontou para o prédio. Eu não ouvia nada, mas sentia tudo.
O coração apertava. O ar parecia rarefeito. E uma dor estranha começou a se espalhar pelo meu corpo — uma dor que não vinha de fora, mas de dentro. Como se algo estivesse sendo arrancado de mim, lentamente.
Lucas voltou com o rosto tenso, os olhos vermelhos, a boca trêmula. Ele parou diante de mim, sem saber por onde começar.
— É o Pedro? — perguntei, antes que ele pudesse falar. Minha voz saiu baixa, mas firme. Eu já sabia. Eu sentia. A dor já tinha me contado.
Lucas assentiu, com os olhos marejados.
— É ele, Clara. Confirmaram. É o Pedro.
Fechei os olhos. O mundo ficou mudo. Não havia som, nem cor, nem tempo. Só a certeza. A certeza que já morava em mim desde o momento em que Pedro não voltou para casa.
Eu não conseguia ficar parada. Depois que Lucas confirmou que o corpo era mesmo do Pedro, algo dentro de mim se rompeu. Eu precisava ver. Precisava encarar. Era como se meu corpo estivesse sendo puxado por uma força maior — a força da verdade.
— Me leva até lá — pedi, com a voz firme, mesmo que o coração estivesse em pedaços.
Lucas tentou me segurar, me impedir.
— Clara, não. Você não precisa passar por isso. É pesado demais.
— Eu vou sim — respondi, mais alto, mais dura. — Pedro é meu irmão. Minha metade. E se alguém tem que estar lá, sou eu.
Ele hesitou, mas não teve escolha. Me deixou ir.
Me aproximei devagar, como se o tempo tivesse desacelerado. Os policiais abriram espaço, e quando o lençol foi retirado, tudo em mim desabou.
Era ele. Pedro. Meu Pedro. Meu irmão.
Naquele instante, o mundo ficou frio. Tudo se partiu. O ar sumiu. A dor me sufocou.
Gritei. Gritei alto, forte, como se o universo precisasse ouvir o tamanho da minha dor. Gritei até minhas pernas falharem, até meu corpo não aguentar mais. Chorei como nunca tinha chorado. Chorei até meus pais chegarem, até Luiza me abraçar, até todos estarem ali — quebrados comigo.
E então, como se a dor já não bastasse, ouvi.
— Foi um golpe na cabeça — disse um dos policiais. — Com uma peça de ferro, parte da estrutura do quarto. Foi covarde.
Eu ainda estava nos braços de Lucas, mas ao ouvir aquilo, me afastei. Me desvencilhei devagar, como se o toque dele me impedisse de sentir o que eu precisava sentir.
Pedro foi assassinado. Covardemente. E eu não ia deixar isso passar.
E voltamos para a pista. Sem saber que aquela seria a última vez que dançaríamos com Pedro por perto.
Pedro era o rosto da empresa. Carismático, firme, inspirador. Tinha aquele tipo raro de beleza que não vinha só do rosto — vinha do jeito de olhar, de falar, de estar presente. Era lindo. E não apenas por fora. Tinha uma alma leve, generosa, que cativava todos ao redor.
Eu era a mente por trás dos projetos. Detalhista, criativa, apaixonada por formas e espaços que contassem histórias. Juntos, éramos a nova geração da Tavares Engenharia e Arquitetura. O futuro da marca. E, acima de tudo, irmãos que se respeitavam, se admiravam, se amavam.
Naquela noite, Pedro saiu. Não foi por irresponsabilidade. Pedro sabia dos seus limites. Sabia o valor da família. Mas também sabia viver. Gostava de aproveitar sua liberdade, de sentir o pulso da juventude, de se permitir momentos de leveza.