Saí do quarto sem olhar para trás. O som abafado da televisão ligada na sala misturava-se aos meus pensamentos, cada vez mais distorcidos.Não havia como voltar à cama depois daquilo. Nem havia cama onde deitar, na verdade. Apenas um passado que parecia se desfazer, camada por camada, diante dos meus olhos. E no fundo, bem fundo, eu já não tinha certeza se era uma raiva, ou um alívio, eu não sentia mais vontade de tocar em Maria Clara, em estar perto.O peso do que estava acontecendo, transitava entre nós dois, a culpa não era únicamente dela, era nossa, mas ao pensar em Maria Vitória, não havia arrependimento algum, eu jamais seria um hipócrita para tanto, mas sabia que era momento de me afastar.Fui até a varanda, com o cabelo ainda molhado do banho. A brisa da noite era cortante. Sentei na cadeira de madeira, encostei a cabeça na parede e fechei os olhos. O meu corpo cedia, mas a mente ainda processava as palavras de Clara, era como ferro atravessando a carne, sem passagem ou aneste
Passava do ínicio da tarde quando vi Alexandre cruzar o terminal rodoviário. Desviei o olhar, fingindo estar concentrada no celular. Eu precisava parar de pensar nele, ainda mais daquele jeito, usando roupa de hospital fora do hospital, e ainda assim, ele me parecia sexy, bonito e muito atraente. A sua maneira de andar, calmamente, a cada passo firme, sem pressa, transmitia uma elegância, que poucas vezes foram vistas, ele sabia o que estava fazendo a cada passo, a cada olhar, e isso me desestabilizava por inteira. Mantive os meus olhos na tela, buscando distrair as minhas ilusões.Eu não poderia me apaixonar por ele. Aquele homem é comprometido, casado e por mais que eu tivesse vindo de um lar, onde isso não significava muita coisa, eu queria respeitar o casamento de Alexandre, eu não queria mais me sujeitar a relacões extra-conjugais como diversão.Aquele não era o momento para achá-lo sexy. Era uma fossa. Era fim, mas ele se aproximou devagar, e mesmo de cabeça baixa, observei os
O domingo não foi diferente. Ir para o trabalho era a minha salvação. Alguns funcionários do plantão ainda comentavam sobre a festa apocalíptica de Heitor. Eu me mantive à parte, trabalhei o dia inteiro. Quando a noite chegou, o celular tocando dentro da gaveta me tirou do transe dos papéis.Imaginei que fosse Clara. Talvez pedindo para conversar. Pedindo desculpas. Ou cobrando explicações.Mas o número desconhecido na tela me fez hesitar por alguns instantes. Não era da cidade. Não importava quem fosse, não naquele momento. Tentei voltar ao trabalho, mas a ideia de ser Maria Vitória me fez pegar o celular de novo. Ela me ligaria se precisasse? Teria algo dado errado com os medicamentos?Retornei a chamada, torcendo, secretamente, para que minha insanidade fosse verdade. Mas não era. Era apenas um contato aleatório, confirmando uma apresentação em uma faculdade federal, a aula magna, eles havia gostado da minha palestra de encerramento, o auditório ficou lotado.Achei estranho o dia e
Deixei Heitor para trás naquele refeitório, eu até poderia me sentir inquieto com Maria Vitória partindo, mas isso não me dava motivos de ir atrás dela, como um resolvedor de soluções, faltando apenas um cavalo branco, no fundo, Maria Vitória partir, mesmo que precocemente, nos tirava de uma confusão enorme. — Por favor Alex, só desta vez...Heitor me seguia pelos corredores como se eu fosse seu salva guarda, e no fundo, algo já me cansava daquele papel. — Talvez, talvez a mãe dela tenha razão, mas pensa na situação, a Maria Vitória pode mesmo estar tendo um caso com o padastro, a mãe grávida, eu não vim ela...— Ela não teve um caso com padastro. — Afirmei aguardando o elevador, o pouco que eu conheço Maria Vitória poderia ser capaz de afirmar. — Como pode dizer isso com tanta certeza? A Maria sequer olhou para alguém naquela festa. — Questionou, ela tinha ficado comigo, como eu poderia dizer, a voz na minha cabeça gritava. — Você não pode saber, estava bêbado, subiu no meio da festa
O olhar de Alexandre se manteve fixo a estrada por longo tempo, eu me sentia ansiosa, querendo roer as unhas, não sabia como seria esta conversa, sequer estava preparada para olhar no rosto do meu pai, e sobre nós, não falamos nada. Quando a sua mão tocou o meu joelho, eu estremeci, olhei para Alexandre receosa, e o olhar que ele me deu de volta, em silêncio, por alguns segundos, era douradouro o suficiente para que eu soubesse que não haveria mais uma vez. E talvez fosse melhor assim.Eu não queria perder a cabeça, não por um homem, ainda mais um que não era meu. Ele voltou a olhar a estrada, me ignorando ao seu lado, e como ele, fitei a janela, tentando fugir de tudo aquilo, havia um desejo enorme de resolver tudo de uma vez, e ir embora, mas eu sabia que isso machucaria pessoas que sequer sonhava com esta loucura, a amizade entre eles é linda, eu desejei ter uma amizade assim, alguém que me defendesse mesmo quando eu estivesse errada.Olhei para Alexandre ali a espera do sinal ver
Achei que íamos para casa. Mas ele apenas abriu a porta do carro e apontou o banco do passageiro. A minha cabeça latejava por causa do excesso de choro, crises de pensamentos. — Talvez tenhamos começado errado — disse, sem me olhar diretamente. — Eu deveria ter tirado um tempo pra você. Te mostrar a cidade, os lugares importantes, os meus pais... — Lamentou ao constatar.— Não precisa — murmurei, ainda confusa com aquela súbita mudança de tom, a cabeça latejando. Ainda tentando digerir o que havíamos vivido minutos atrás, ele parecia outro homem, onde poderia guardar tantos sentimentos.Mas ele insistiu. E não sei por quê, talvez por instinto, talvez por curiosidade, aceitei ir com ele, eu não queria mais brigas, eu queria me entender com ele, ter alguma conexão.Seguimos para o shopping. O almoço foi simples — grelhados, arroz, suco natural. Nenhum luxo, nenhuma pressa. Conversamos pouco, mas de forma leve. Pela primeira vez, ele me perguntou coisas banais: se eu gostava de doce ou
Maria Vitória entrou em meu carro receosa, enquanto eu buscava mantér uma posição formal, homem mais velho, um tio postiço, um homem que eu ainda iria buscar ser. Enquanto a sua natureza alba, tranquila e ao mesmo tempo provocante me instigava a rememorar cenas de dias anterior. Para ela, tudo parecia bem, afinal sentou ao meu lado, usando a sua calça jeans, seu coturno marron, e a blusa vermelha, tranquilamente, mas a mente e mil, os seus pensamentos a levavam para longe do veículo e talvez isso fosse confortante para nós dois. Percebi o seu receio quando toquei em seu joelho ao passar a marcha, ela me olhou engolindo em seco, e numa troca de olhar breve, nós dois compartilhavámos o mesmo olhar. Era como um desejo quente, ardente, que buscávamos dar um basta, em respeito a pessoas que amamos. Ela não me disse nada, apesar da sua boca se entre abir. Desviei os olhos para a estrada, atentando-me ao movimento do dia, das idas e vindas dos carros.Até que chegamos ao hospital, era como
Passei o resto da manhã me sentindo sonza com tudo aquilo.Quem, afinal, era Heitor Montenegro?O homem que me mostrou os cavalos, que me fez rir com histórias de infância, que me deu leite de cabra numa caneca de alumínio e me chamou de vento... ou aquele outro — o das festas com pessoas desconhecidas, da música alta na madrugada, da bebida escorrendo entre os dedos, como se cada gole fosse um esquecimento?Por que ele vivia daquele jeito?Era fuga? Era negação? Era apenas solidão mal disfarçada?Tomei um banho longo. Muito longo. A água escorria pelo meu corpo e parecia carregar um pouco das dúvidas também. Ainda havia lama nos meus cabelos, os resquícios da noite no campo, picadas de mosquito marcando minha pele como pequenas tatuagens da lembrança. Mas eu não reclamava. Como poderia?Eu estava apaixonada pelo meu pai.E isso era tão absurdo quanto real.Apaixonada por um homem imperfeito, mas que, de repente, carregava em si todas as características que eu imaginei para um herói d