Selene Castiel
A biblioteca da mansão é o único lugar onde ainda me sinto... sozinha.
O cheiro de couro dos livros antigos, o silêncio denso, a madeira escura. Tudo aqui grita poder antigo, herança, tradição. Tudo que eu nunca pedi, mas carrego como um fardo com etiqueta de luxo.
Estou sentada no chão, entre duas estantes, com um copo de vinho roubado da adega e um livro aberto que não li nenhuma linha. O salto jogado de lado, o cabelo preso com uma caneta. Eu — a herdeira, a CEO, a manchete viva — em sua forma mais crua.
Então ele entra.
Como sempre. Do nada. Como se o universo tivesse prazer em me jogar no caos.
Caius Varella.
Camisa preta dobrada até os cotovelos, jeans escuros e aquele olhar que parece te despir com calma. Ele me vê no chão, e não ri. Nem se surpreende. Apenas se aproxima.
— Estava te procurando. — diz.
— Parabéns, então. Me achou. — respondo sem levantar o olhar.
Ele para em pé à minha frente. Me observa como se eu fosse parte do mobiliário, mas daquelas peças que você quer levar pra casa e não sabe por quê.
— Posso?
— Sentar ou julgar?
— Os dois, talvez. — ele dá um meio sorriso e senta ao meu lado.
Ficamos ali, encostados na estante, o silêncio entre nós vibrando.
— Por que aqui? — ele pergunta.
— Porque a biblioteca é o único lugar onde ninguém vem pra fazer cena.
— E você precisa fugir de cena?
Dou um gole no vinho, sem responder. Ele continua:
— Você sempre posa como uma tempestade... mas aqui, tá mais pra furacão depois do estrago.
Viro o rosto devagar.
— Você tem talento pra metáforas, Varella. Já pensou em escrever um livro?
— Já pensei em viver um. Com alguém que não foge da própria história.
O silêncio corta como navalha.
— Isso é uma cantada?
— Isso é um aviso.
— De quê?
— De que eu vejo você. Por trás da pose, dos escândalos, das armaduras. E isso, Selene… te apavora.
O vinho fica amargo na boca.
— Sabe o que me apavora, Caius? A ideia de que você acha que me entende.
— Eu não acho. Eu sinto.
Ficamos frente a frente. O ar carregado. Os olhos dele nos meus, sem medo. Sem máscara.
E então ele se inclina.
Mas não me beija.
Apenas encosta a testa na minha. Um toque leve, íntimo, quase sagrado.
— Você não precisa fugir o tempo todo.
— E se for a única coisa que sei fazer?
— Então me deixa te ensinar outra.
O chão parece desaparecer.
Mas antes que qualquer coisa aconteça, a porta da biblioteca se abre.
Dona Nair aparece na porta da biblioteca, segurando um pano de prato e com aquele olhar carinhoso que só ela consegue lançar, como se soubesse exatamente o que está se passando mesmo sem ter ouvido uma palavra.
— Menina Selene... o jantar já terminou há um tempo. Seu pai pediu pra ver você antes de subir. Tá tudo bem?
Eu me afasto de Caius no mesmo segundo, como se ela tivesse pego a gente fazendo algo errado. Mas Dona Nair não repreende, não pergunta, não julga. Só observa. Como sempre fez.
— Tá sim, Nair. Eu só... queria um pouco de silêncio. — me levanto, ajeitando o vestido.
Ela sorri, aquele sorriso cheio de história e cuidado.
— Silêncio é bom. Mas cuidado pra ele não virar solidão, viu?
Me beija a testa e sai, deixando um rastro de cheiro de bolo e saudade de mãe.
Caius se levanta logo depois, passa por mim e diz, bem baixo:
— A senhora que cuida de você tem mais sabedoria do que muita gente rica que eu conheci. Você devia escutar mais.
Não respondo. Porque escutar dá trabalho quando a gente vive tentando se esconder do som.
***
Já era umas 23h quando o meu celular vibra.
PIETRO: Estou aqui fora.
Olho pela janela e, sim, o desgraçado está mesmo: Pietro Moreau. Encostado num carro preto brilhante, com aquele terno que cheira a vaidade e perfume caro. Sinto o estômago virar.
Desço.
Sozinha.
Sem salto. Sem pressa.
Abro o portão com frieza.
— Você está louco?
— Louco por você, talvez. — ele sorri, aquele sorriso cínico de sempre. — Selene, a gente precisa conversar. Isso entre você e esse cara... esse tal noivado... não pode ser sério.
— Isso entre mim e você já acabou, Pietro. Você só gostava da Selene que te obedecia. E essa morreu faz tempo.
— Não finge. Eu te conheço.
— Não. Você conheceu uma parte de mim. A mais burra.
Ele se aproxima. Rápido demais. A mão quase encosta no meu braço.
— Eu sinto sua falta. Eu penso em você toda noite.
— Então pensa calado. O que ainda acontece entre a gente é algo casual, Pietro.
Dou um passo pra trás. Fria. Firme. Pela primeira vez, ele vê que não tem mais acesso. E isso o desconcerta.
— Vai embora, Pietro. Antes que eu mande te retirar. E dessa vez... não com palavras.
Ele me olha por mais dois segundos. Entra no carro e parte. Sem drama. Sem volta.
Viro pra entrar de novo. E então o vejo.
Caius.
No jardim lateral, ao lado do velho carvalho iluminado. Camisa branca, mangas dobradas, e aquele olhar.
Aquele maldito olhar.
— Você gosta de adrenalina, né? — ele diz, com a voz rouca de quem não sabe se está com raiva ou excitado.
— Você sempre aparece assim? — retruco. — Do nada?
— Eu não apareço. Você que se exibe.
Dou um passo. Ele também.
— Ele era alguém do seu passado?
— Era.
— E quer ser presente?
— Não mais.
Ficamos frente a frente. Só a grama e a raiva nos separando.
— Eu não gosto de ver homem tocando o que é meu. — ele solta, num tom grave que me faz estremecer.
— Eu não sou sua. — rebato.
— Ainda não.
Silêncio.
A lua escorrendo no rosto dele, a tensão entre nós pulsando como um trovão prestes a estourar.
— Você está com ciúmes? — pergunto, arqueando a sobrancelha.
— Eu estou com fome.
— De quê?
— De tudo que você não me dá. Ainda.
Ele dá mais um passo. Estamos perigosamente perto. A respiração dele entra na minha. O calor do corpo invade o ar.
— Você quer brincar comigo, Caius?
— Não. Eu quero incendiar você. E ver o que sobra depois.
O mundo para. Por um segundo, tudo que existe são nossas bocas, quase tocando. Mas ele não beija.
Ele apenas olha.
Depois vira as costas.
E vai embora.
Me deixando ali, no jardim, com o coração na boca e a certeza de que esse homem é o único capaz de fazer o que ninguém mais conseguiu: me despedaçar... com calma.