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Ecos à Beira do Lago

No estacionamento do tribunal, Raul, que já o aguardava, abriu a porta. Lian entrou, e o carro partiu, levando consigo não apenas um juiz, mas um homem que acabara de testemunhar a podridão de perto. No silêncio tenso do banco de trás, o mundo exterior passava como um borrão.

A imagem de Sigrid, com sua vulgaridade e seus olhos famintos, o assombrava. Era como se a cena estivesse gravada na sua mente. Aquele beijo, o acordo, a forma asquerosa como o advogado e a juíza falavam de pessoas, de vidas, de audiências, como se fossem meros objetos num jogo de poder sujo.

A fúria no seu peito, antes quente e descontrolada, agora se transformou numa raiva fria e densa. Um pensamento claro e inegociável tomou conta da sua mente: ele não era apenas um juiz. Ele era Lian e ele não descansaria até que cada pedaço daquela podridão viesse à tona e a justiça fosse feita.

O carro deslizou silenciosamente até a entrada da casa. A luz morna que vinha das janelas contrastava com o frio do entardecer — um abrigo acolhedor após a dureza do dia. Raul abriu a porta e, ao pisar no cascalho, o som firme dos sapatos foi o primeiro sinal de que finalmente estava de volta ao lugar que tanto desejava.

A porta abriu-se antes que ele pudesse sequer tocar a maçaneta. Isabella estava ali, a luz dourada da casa emoldurando seu sorriso. O cheiro de pão fresco e café recém-coado, uma sinfonia de familiaridade, atingiu-o em cheio. Mesmo assim, ele não se deixou distrair, mantendo os olhos firmes na irmã.

— Como você conseguiu entrar no tribunal? — perguntou, a voz carregada de surpresa e indignação. — Eu disse que era para você ficar em casa!

Sem esperar resposta, passou por ela e foi até o banheiro para lavar as mãos. Isabella o seguiu, empolgada.

— Eu só queria saber como seria o lugar onde meu irmãozinho iria começar a trabalhar… e não me arrependo. Achei tudo lindo! Inclusive aquela advogada, ela é incrível! Quero ser igual a ela quando terminar a minha graduação. Será que ela é solteira? Daria uma bela esposa para você.

Lian bufou, secou as mãos e se dirigiu à mesa, sentando-se com ar impassível. Isabella se acomodou à sua frente. Enquanto ele enchia uma xícara com café expresso puro, ela tomava seu chá de pêssego, sorrindo levemente.

— Amanhã você começa a sua aula. Está no horário da noite, como pediu. — Lian disse, mordendo um pedaço de torrada com geleia de uva.

— Oba! — exclamou Isabella, pulando levemente na cadeira. — Obrigada, irmãozinho! Prometo que vou me sair super bem!

Super bem? — Lian arqueou uma sobrancelha, a voz fria e controlada. — Espero nada menos que perfeição, Isabella. Entendido?

— Ai, credo! — reclamou Isabella, cruzando os braços. — Nem a mamãe fala desse jeito comigo. Você é muito chato e frio. Você não era assim, tão gelado… foi depois que terminou com a Helena. Falando nisso, por que vocês se divorciaram mesmo? Eu nunca vou entender!

— Não quero falar sobre isso, Bella! — respondeu Lian, firme.

— Você nunca quer, Lian… — insistiu Isabella, a voz suave, mas cheia de decepção. — E pensar que o casamento de vocês parecia perfeito! — Ela respirou fundo e completou, num tom mais amargo: — Acho que a Helena só percebeu tarde demais o que demorei para aceitar… que você não sabe amar ninguém além do seu trabalho

Lian bateu com força na mesa, o som seco cortando o ar.

— Cala a boca, Isabella! — a voz dele saiu dura, afiada, como uma lâmina.

Isabella o fitou, surpresa, os olhos marejados. Klaus e Greta trocaram um olhar silencioso, carregado de pena.

— Você nunca falou assim comigo… — murmurou ela, a voz trêmula. — O que foi que você se tornou, Lian?

Ela levantou-se da mesa num movimento brusco. Lian ainda tentou impedi-la, mas Isabella o ignorou, saindo pela porta e batendo-a com força, deixando para trás um silêncio pesado que pareceu engolir toda a casa.

Lian suspirou, recostando-se na cadeira. Passou a mão pelos cabelos, exausto, e lançou um olhar cansado para Klaus.

— Por favor, peça para retirarem a mesa… e avise o chefe que quero poutine no jantar. É o prato preferido da Bella. Ah, e suco de abacaxi com hortelã.

— Sim, senhor — respondeu Klaus, num tom profissional.

Sem dizer mais nada, Lian se levantou e seguiu em direção à escada. Subiu devagar, sentindo o peso da tensão ainda latejando no peito — um silêncio espesso o acompanhando até o quarto.

Do lado de fora, as lágrimas escorriam pelo rosto de Isabella enquanto ela caminhava sozinha pelo condomínio, no início da noite, tentando se livrar da tensão sufocante que sentia.

A noite fria trazia o perfume de jasmim e o cheiro de terra molhada, e o barulho do cascalho sob seus sapatos acompanhava o ritmo inquieto de seus pensamentos.

Ela se dirigia ao grande lago, buscando distância e tentando esquecer o que havia acontecido poucos minutos antes. Enquanto as luzes das casas do condomínio piscavam ao longe, ela caminhava pelos  jardins impecáveis.

Ao chegar, a paisagem parecia se transformar. O aroma da grama recém-cortada misturava-se ao frescor úmido do entardecer. A lua despontava no horizonte, refletindo-se na superfície serena do lago — até que uma brisa suave rompeu o espelho d’água, desfazendo a imagem em delicadas ondulações.

Foi neste momento que Isabella notou uma figura solitária sentada na beira do tablado de madeira. A mulher, com longos cabelos n.e.g.r.o.s cobrindo parte do rosto, segurava uma taça de vinho, cujo vidro aprisionava o brilho da lua.

O corpo da mulher estava curvado para a frente, e os ombros tremiam em espasmos leves, contidos. Não era um choro de desespero, nem de histeria, mas algo mais íntimo... quase sagrado.

Isabella permaneceu imóvel, sentindo-se uma intrusa num momento que claramente não lhe pertencia. A mulher, então, ergueu a taça num brinde silencioso ao vazio e, com a voz embargada, rompeu a quietude ao seu redor.

— Pai… Mãe… hoje foi um bom dia. — Uma risada trêmula e breve escapou da sua garganta. — Consegui! Venci a causa. O senhor Pierre conseguiu uma boa quantia daqueles mentirosos do Damien e do advogado dele. O juiz… é novo no tribunal, frio e indecifrável, mas excelente, sabe?

A voz sumiu, e o silêncio pesado retornou. Apenas o sussurro do vento entre as folhas, tão baixo que Isabella quase acreditou que o mundo inteiro estava se inclinando para ouvir também.

— Ah… o Damien tentou me atacar, mas eu me defendi. — Ela respirou fundo, como se a lembrança ainda fosse uma dor física. — Sabe… aquelas aulas de defesa pessoal que fiz para me proteger daquele i.m.b.e.c.i.l do Bastien Fournier? Valeu a pena. Nunca contei isso a vocês, não queria que ficassem preocupados. Mas, no fim… — a voz dela se quebrou, e um silêncio pesado caiu. — Não houve tempo.

Os dedos da mulher apertaram a haste da taça, e, num gesto hesitante, ela levou-a aos lábios e bebeu um gole do líquido.

— Tenho certeza… pai… que se estivesse vivo, teria acabado com ele.

Um soluço mais forte escapou, e o corpo dela se curvou ainda mais, a cabeça pendendo. O timbre da voz mudou, tornando-se um sussurro ferido, quase um gemido:

— Bastien… Ele me espancou… e depois me jogou escada abaixo. Fiquei em coma por meses. Por um milagre, sobrevivi. Eu menti quando disse que estava em Zurique fazendo um curso. Na verdade… estou escondida. Ainda sou casada com ele, e o mesmo se recusa a assinar o divórcio. Meus advogados estão lutando… mas, se ele me encontrar, sei que não sairei viva. O Álvaro… ele está cuidando de mim, arriscando-se por minha causa. — Uma pausa longa e pesada. — Me perdoem por não ter contado a verdade… eu sinto tanto a falta de vocês.

Um soluço rompeu na sua garganta, e o corpo dela tremeu, uma onda de dor que a fez soltar a taça de vinho. O cristal escorregou do tablado e se perdeu nas águas escuras do lago, emitindo um som baixo e abafado. Ela, então, escondeu o rosto nas mãos, e desabou.

Um nó formou-se no estômago de Isabella, e a brisa da noite pareceu gelar, carregada pela dor invisível de Aurora. Ela deu um passo para trás, tentando recuar mas a ronia, conspirou contra o seu recuo: ela acabou pisando em falso e caindo no lago. O barulho da queda e o grito abafado chamaram a atenção de Aurora. Os seus olhos se desviaram da escuridão, e ela viu a moça se debatendo no reflexo da lua na água escura.

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