Nunca entendi por que meu quarto era o de número sete.
Entre tantas portas desbotadas e maçanetas gastas pelo tempo, aquela era a única que rangia antes mesmo de ser tocada. O número estava torto, pendurado por um prego solto, como se resistisse a fazer parte do resto da casa. A maçaneta enferrujada não girava fácil — exigia um pequeno empurrão com o ombro. Era como se o próprio quarto recusasse visitas, até as minhas.Não havia muito ali dentro. Uma cama de ferro batido, com um colchão torto que afundava no meio. Um armário pequeno de madeira rachada, uma cadeira que rangia e uma janela com uma trinca no canto superior direito. Quando o vento soprava, a vidraça vibrava como se estivesse prestes a gritar.
O cheiro era sempre o mesmo: poeira, mofo e alguma tristeza antiga.Mas ainda assim, eu gostava daquele lugar. Era meu.
No orfanato Santa Margarida, onde eu vivia desde os quatro anos, poucas coisas eram verdadeiramente nossas. Roupas eram compartilhadas. Sapatos também. Brinquedos eram coletivos e, quando novos, causavam brigas. Até os livros vinham marcados com nomes de outras crianças. O único lugar onde eu podia estar sozinho era o quarto sete. E talvez isso já fosse muito.Todos os dias começavam iguais: às seis da manhã em ponto, a voz rouca da irmã Doroteia ecoava pelo corredor.
— Vamos, pequenos! O Senhor não espera os preguiçosos!
Ela batia as mãos, abria as janelas com força, e a luz invadia os olhos ainda fechados. Eu me levantava rápido. Não gostava de ser notado por ela. Nunca sabia se o comentário do dia seria uma crítica ou um sermão. Às vezes, ambos.
O café da manhã era pão dormido com manteiga rala, e um copo de leite morno. A cozinha era o lugar mais vivo da casa — cheirava a fermento, fumaça e cansaço. Tia Estela, a cozinheira, era a única que parecia genuinamente se importar.
— Come tudo, Samuel. Tá magro feito vara de pescar — dizia ela, servindo um pouco mais de leite, mesmo quando não havia sobras.
Eu sorria de canto e obedecia.
Gostava dela. Ela não falava com pena. Falava com firmeza. Com cuidado.— Você sonhou com o quê, hoje? — ela perguntava sempre.
E eu sempre inventava. Um jardim enorme. Uma casa com paredes azuis. Um cachorro com olhos amarelos.
Ela escutava como se fosse verdade. E, por um momento, talvez fosse.As manhãs passavam com aulas desorganizadas ministradas por dona Inês, uma voluntária que mais lia do que ensinava. Mas eu gostava da voz dela. Lia romances antigos, poemas esquecidos, e às vezes esquecia que estava numa sala de aula. Eu aprendia devagar, mas lia com avidez. E quando não havia livros novos, eu escrevia. Tinha dois cadernos escondidos no fundo do armário da biblioteca — cadernos onde criava histórias sobre garotos que eram escolhidos. Que encontravam seus pais. Que tinham finais felizes.
Mas eu nunca era escolhido.
Nunca fui. A maioria das crianças ali já havia recebido pelo menos uma visita. Um pai curioso. Uma tia arrependida. Um casal interessado. Eu, não.Com uma única exceção.
A primeira — e última — visita aconteceu num domingo chuvoso, quando eu tinha oito anos.
Lembro-me dela como se fosse hoje. Uma mulher alta, magra, de cabelos presos num coque apressado. O casaco bege estava molhado, os olhos, vermelhos. Ela entrou, olhou em volta e parou diante de mim. Não disse o meu nome. Não sorriu. Apenas me encarou. Ficamos assim por quase um minuto inteiro. Então ela levou as mãos ao rosto e começou a chorar. E saiu. Sem dizer nada.Na época, eu pensei que talvez fosse minha mãe.
Depois, pensei que era só mais uma estranha triste. Hoje… não sei mais o que pensar.Desde aquele dia, todos os domingos, entre 10h e 11h, eu me sentava no banco de pedra do jardim. Esperava.
Nunca mais apareceu ninguém. Só o vento. E os pardais. Algumas crianças riam de mim. “Samuel espera por fantasmas”, diziam. Talvez fosse verdade.Mas eu não podia deixar de esperar.
Porque, por mais que o tempo passasse, parte de mim ainda acreditava que alguém viria. Que eu não tinha sido simplesmente esquecido.Naquela manhã fria de inverno, tudo parecia igual.
Até que vi algo.A porta da sala da administração estava entreaberta — o que era incomum. De onde eu estava, conseguia ver parte de dentro. Irmã Doroteia estava em pé, nervosa, falando com um homem de terno escuro. Ele segurava uma pasta preta. Tirou dela um envelope grosso. A freira o abriu, leu algo, e ficou pálida. Os lábios se moveram rapidamente, como se discutissem algo urgente.
Foi quando ela levantou os olhos.
E olhou diretamente para mim.Foi só um segundo. Mas aquele olhar não era casual. Era como se ela tivesse me visto de novo, pela primeira vez.
Senti um arrepio.
Algo estava errado.Fiquei observando até a porta se fechar. A conversa continuava lá dentro, abafada pelas paredes.
Voltei ao meu quarto, tentando ignorar o frio que agora parecia vir de dentro. Me sentei na cama, olhei para a janela, para a rachadura no vidro.
Havia silêncio.Mas não era o silêncio de sempre.
Era outro. Mais pesado. Mais… alerta.Deitei, fechando os olhos por um instante.
Então ouvi passos se aproximando. Não eram os passos firmes da irmã Doroteia. Nem os leves da Tia Estela. Eram passos desconhecidos. Pararam diante da minha porta.Alguém estava lá.
Sem bater, sem chamar, a maçaneta girou lentamente.
E o quarto sete voltou a ranger.Os dias no orfanato seguiam um ritmo tão repetitivo que até o tique-taque do velho relógio de parede parecia zombar da minha existência. O sol nascia, a comida era servida com pontualidade monótona, e as atividades variavam entre tarefas domésticas e aulas improvisadas com livros doados por escolas que nem queriam mais saber deles. Tudo ali cheirava a desuso — como se cada canto carregasse o peso de memórias que ninguém queria manter vivas. Eu dividia o dormitório com mais três garotos. Um deles, o Nando, era o mais velho entre nós e se autodenominava nosso "protetor". Na verdade, só queria se sentir importante. Quando não estava implicando com os menores, ficava horas olhando pela janela, como se procurasse alguma fuga que nunca vinha. Certa manhã, acordei com um ruído abafado vindo do corredor. Espiei pela fresta da porta e vi a diretora arrastando pelos braços um dos garotos mais novos, o Raul. Seus olhos estavam cheios de medo e suas pernas, trêmulas. Ele havia molhado a cama ou
Eu tinha um lugar favorito no orfanato: um banquinho de madeira azul desbotado que ficava próximo à estufa abandonada no quintal dos fundos. Ninguém se importava com aquele canto isolado, talvez porque estivesse sempre úmido e com cheiro de terra. Mas era ali que eu sentia que podia respirar. Sentava ali todas as tardes, depois das tarefas, observando o céu mudar de cor. Às vezes, inventava histórias na minha cabeça. Outras, ficava em silêncio, ouvindo o canto dos pássaros ou o barulho do vento entre as frestas da velha estufa. Era um refúgio só meu. Certa vez, encontrei uma borboleta com as asas quebradas perto do banco. Cuidei dela por dias, tentando ajudá-la a voar novamente. Ela nunca voou, mas sempre voltava ao mesmo canto. Demos um nome a ela — eu e a borboleta: Esperança. Era bobo, talvez, mas naquele tempo, qualquer migalha de sentido era um alívio. A rotina no orfanato seguia dura. Acordávamos cedo com o som do velho sino da cozinha. Café ralo, pão duro, correria para o ba
Os dias seguintes foram uma mistura de ansiedade e silêncio. Após a conversa com a diretora e o envelope em minhas mãos, uma nova pergunta se formava a cada passo: quem seria Clara Monteiro? O nome ecoava em minha mente, como se eu já o tivesse ouvido em algum canto do orfanato, sussurrado em noites de febre ou perdido entre os registros antigos. Mas nada me vinha com clareza. Com o pouco dinheiro que ganhei trabalhando em um restaurante da esquina durante as noites, comprei uma passagem para a cidade vizinha. O endereço do asilo onde ela estava internada parecia pertencer a um lugar esquecido pelo tempo. A viagem foi curta, mas os pensamentos tornaram o trajeto longo. O asilo ficava em uma rua de paralelepípedos, ladeada por árvores de folhas envelhecidas. Uma fachada simples, com janelas altas e grades pintadas de branco. Um letreiro dizia “Lar Esperança”. O nome parecia uma ironia cruel — ou talvez uma promessa. Ao entrar, fui recebido por uma senhora de voz gentil, que me pediu
Os dias que se seguiram foram uma mistura de expectativa e frustração. A cada visita ao asilo, Clara parecia estar mais distante, mergulhada em sua confusão mental, mas, de alguma forma, eu começava a acreditar que algo dentro dela reconhecia a minha presença. Eu era o filho que ela havia perdido, ou talvez aquele filho nunca tenha sido perdido para ela. Mas a verdade estava em algum lugar entre os silêncios e os fragmentos de memória que ela compartilhava, sem que soubesse realmente o que significava. Em um dos meus encontros, Helena, com sua calma peculiar, comentou enquanto olhava para Clara, que dormia pacificamente na poltrona: — Ela reconhece os sons. Às vezes, é tudo o que temos para nos lembrar do que ficou para trás. Ela vai se lembrar de você. Talvez, um dia... Eu não sabia se aquilo era esperança ou uma tentativa de consolo. No fundo, algo dentro de mim me dizia que a verdade que eu tanto procurava não viria de Clara. Ela estava perdida demais em sua própria mente para d
Após minha conversa com Isadora, algo dentro de mim mudou. Eu havia sido rejeitado mais uma vez. Minha própria irmã, aquela que poderia ser minha única ligação com o passado, me tratou como se eu fosse uma invenção, uma farsa. Mas, apesar de tudo, uma parte de mim não acreditava nas palavras dela. Algo dentro de mim me dizia que a verdade estava mais perto do que eu imaginava, e eu não podia parar agora. Não depois de tudo o que já tinha descoberto. Não depois de tudo o que ainda estava por vir. Eu voltei ao asilo naquele dia, e Helena estava lá, como sempre, pronta para me apoiar. Ao me ver, ela não precisou perguntar. O olhar triste e cansado que eu tinha já dizia tudo. Eu sabia que o encontro com Isadora não havia dado certo, mas Helena não fez questão de pressionar. Ela apenas me envolveu em um abraço apertado, oferecendo o consolo silencioso que tanto precisava. — Eu sabia que seria difícil, mas não podemos desistir. — Ela disse, com a voz suave, como se tentasse me acalmar com
O dia seguinte foi de silêncio. Um silêncio pesado que pairava no ar, como se o asilo, a cidade e o mundo inteiro estivessem aguardando algo. Após a estranha interação com Clara, eu não conseguia parar de pensar nas palavras dela. "Você... voltou para mim..." Havia algo profundamente familiar e ao mesmo tempo inquietante nessa frase. Clara não era apenas a mulher que cuidava de uma vida perdida; ela parecia carregar dentro de si uma chave para tudo o que eu precisava entender sobre mim, sobre minha história, sobre minha mãe e, especialmente, sobre meu pai, Eduardo Camargo. O amanhecer trouxe uma sensação de urgência, como se o tempo estivesse se comprimindo, apertando cada vez mais meu peito. Eu sabia que algo estava prestes a acontecer. Uma revelação, uma descoberta, uma virada de jogo. A pergunta que me martelava a mente era: por que Clara, que havia estado tão distante e distante de mim, parecia finalmente me reconhecer? No entanto, não tinha tempo para me perder em dúvidas. O ad
O relógio na parede do escritório de meu advogado parecia ecoar a cada segundo que passava. Eu estava sentado ali, com as mãos suando, sentindo que algo muito maior do que eu poderia imaginar estava prestes a ser revelado. A descoberta do exame de DNA e a confirmação de que Eduardo Camargo era meu pai haviam sido um choque. Mas a menção ao segredo no testamento, àquela cláusula que mencionava algo sobre meu nascimento, foi o que realmente me desestabilizou. Eu sabia que não podia esperar mais. A verdade que Eduardo havia escondido estava lá, em algum lugar, à espera de ser desenterrada. Mas onde eu procuraria? O que ele teria feito para garantir que ninguém descobrisse o que ele não queria que fosse revelado? O advogado me entregou uma nova pilha de documentos, mas eu estava tão absorvido em meus próprios pensamentos que não consegui me concentrar no que estava ali. Ele percebeu a distração e, sem dizer uma palavra, se levantou e se afastou. Eu estava sozinho novamente, mas não me s
A noite caiu rapidamente sobre a cidade, e as luzes fracas das ruas mal conseguiam iluminar a escuridão que agora parecia me cercar. O que Clara dissera reverberava em minha mente, mas eu não sabia como seguir em frente. A verdade estava, de algum modo, escondida em algo que eu não conseguia alcançar. O segredo de Eduardo ainda estava no ar, entre o que ela sabia e o que ela não podia me dizer. Eu me sentia como um caça às sombras, procurando algo que talvez nem existisse. Aquelas palavras de Clara – "A verdade está onde você nunca imaginou" – ficavam me assombrando, mas eu não sabia de onde começar. O que ela queria dizer? O que ela sabia que eu ainda não entendia? De volta ao meu apartamento, a sensação de impotência tomou conta de mim. Eu não tinha mais respostas, apenas perguntas. O que mais poderia acontecer? Eu precisava de mais pistas, algo mais tangível que me levasse a um caminho mais claro. O telefone tocou novamente, e o som cortante me fez saltar da cadeira. Era um núme