Capítulo 3

Na manhã seguinte, com uma última olhada no espelho para garantir que meu semblante estava no ponto exato entre profissional e ligeiramente perigosa, saí de casa. O batom vermelho estava impecável, e minha expressão dizia “não mexa comigo”, mas com um sorriso sutil o bastante pra deixar qualquer um em dúvida se era ameaça ou flerte.

Atravessar o saguão da agência foi como entrar em um set de reality show. Alguns cochichos, alguns sorrisos suspeitos — e, claro, aquela colega de trabalho que me lançou o olhar clássico de quem sabe de algo. O algo, no caso, era Leon.

Ah, os corredores da publicidade… onde egos se misturam com café e boatos têm mais audiência que briefing de cliente.

Entrei na minha sala e, como se o roteiro já estivesse escrito por alguma divindade do caos criativo, lá estava ele. Leon. Concentrado em alguns papéis, como se fosse muito difícil fingir que não tinha transado comigo e depois decidido brincar de chefe intocável.

Ele levantou os olhos no exato momento em que a porta se fechou atrás de mim. Tão pontual que eu teria aplaudido, não fosse o leve nó que ainda insistia em se formar no meu estômago quando o via.

— Bom dia, Stella. Como foi sua noite? — perguntou ele, com aquele sorriso que deveria vir com um aviso de incêndio.

— Oh, a noite foi tranquila — respondi, pendurando minha bolsa e mantendo a postura —. Nada como não dormir com o chefe sem saber que ele é o chefe. Um verdadeiro clássico moderno.

Leon riu. Sério, ele riu. Como se eu tivesse feito uma piada genial em vez de um comentário passivo-agressivo afiado como navalha.

— Não que você tenha reclamado em algum momento.

Tive que engolir em seco. Ele não jogava limpo — e o pior era que meu corpo ainda não tinha recebido o memorando do meu cérebro para parar de reagir a ele.

Felizmente, trabalho sempre foi meu melhor disfarce. Mergulhei de cabeça nas tarefas do dia, afogando qualquer sensação persistente em planilhas e paletas de cores.

Montei um moodboard inspirador com a precisão de quem disseca sentimentos em silêncio. As imagens escolhidas tinham tons fortes, como se minha raiva e minha paixão estivessem brigando na tela. Eu chamaria de Catarses em CMYK.

No estúdio de fotografia, encontrei uma equipe elétrica — o tipo de energia que dá até esperança na humanidade. Pelo menos até Leon aparecer.

Sua chegada foi discreta, mas senti. Meu corpo ficou alerta como se pressentisse o cheiro de testosterona em posição de comando.

— Stella — disse ele, com aquele tom morno que parecia esconder algo quente —. Estou ansioso para ver o resultado final. Sua abordagem é... refrescante.

Refrescante. Como uma pedra de gelo derretendo devagar no decote.

— Que bom ouvir isso — respondi com um sorriso que não chegava nos olhos —. Estou apenas tentando traduzir conceitos em imagens. E manter minha sanidade.

A sessão continuou. Direcionei as poses, alterei luzes, ajustei ângulos como uma diretora de cinema sensível ao detalhe — e emocionalmente blindada.

Durante uma troca de figurinos, um novo rosto se aproximou. Alex. Simpático, um sorriso fácil e um quê de “sou novo aqui, me ajuda a não parecer perdido”.

— E aí, Stella! Você tá basicamente dirigindo essa operação, hein? Impressionante!

— Faço o que posso. E finjo que não estou surtando por dentro — brinquei, soltando um riso seco.

Ele riu, mas logo sua expressão se tornou curiosa.

— Olha, eu reparei numa coisa… o Leon tá meio diferente hoje. Mais... presente. Ele geralmente só aparece no fim, pra dar o aval. Hoje ele tá desde cedo por aqui.

Arqueei uma sobrancelha. Ah, você reparou também, querido?

— Estranho mesmo. Ele costuma ser do tipo “CEO-fantasma”. Talvez esteja redescobrindo o prazer de microgerenciar.

— Vai ver é algo grande. Uma campanha importante. — Alex deu de ombros, mas o olhar dele dançou até Leon.

— Ou talvez seja só... pessoal. — Falei como quem não se importa, mas o subtexto estava pingando sarcasmo. Ele não insistiu. Inteligente.

Com o fim da sessão da manhã, a hora do almoço se aproximou e, sinceramente, eu precisava de um tempo longe de luzes, olhares e interpretações corporativas.

Fui até uma cafeteria próxima, onde o cheiro de café era tão acolhedor quanto uma confissão não dita. Escolhi um canto estratégico, de onde eu pudesse observar sem ser observada.

Pedi meu cappuccino. Sem açúcar. Porque o dia já estava doce o suficiente com toda essa ironia cósmica.

Enquanto esperava, Alex apareceu, parecendo surpreso.

— Stella! Achei que você fosse almoçar com o pessoal.

— Hoje eu preferi café e silêncio. Estou praticando a arte do isolamento social gourmet.

— Entendo. Às vezes é preciso uma pausa... com estilo. — Ele sorriu, genuinamente gentil.

De volta à agência, a edição das fotos virou meu refúgio. A sala de edição era silenciosa, exceto pelo zumbido constante dos computadores. O paraíso dos emocionalmente sobrecarregados.

Aproximei-me de Louis, nosso mago do Photoshop e zen-master oficial da equipe.

— Louis, pode dar uma olhada nisso? Quero saber se estou exagerando no contraste ou só expressando minhas emoções reprimidas.

Ele sorriu.

— Vamos ver. — E juntos ajustamos luz, sombras e expectativas.

Com cada clique, eu redescobria minha autonomia. Cada cor corrigida era uma memória mal resolvida sendo realocada.

No fim do dia, Louis apareceu.

— Stella, seu olhar é afiado. Essas imagens têm personalidade.

— Bom saber que algo em mim ainda tem.

Ele riu, mas eu mantive o tom. Ainda era cedo pra baixar a guarda.

No caminho pra casa, parei em uma cafeteria diferente. Meu ritual de encerramento. Cappuccino com espuma perfeita e uma mesa perto da janela — porque drama sempre funciona melhor com vista.

Foi então que vi Leon. Sentado numa mesa ao lado, rindo com seu secretário — um rapaz bonito, educado e que claramente sabia demais.

Leon me viu. É claro que viu. E sorriu como se não tivesse bagunçado minha cabeça e meu equilíbrio emocional.

— E aqui está você de novo — murmurei para mim mesma, equilibrando minha xícara de cappuccino como quem equilibra a sanidade. Claro que Leon estaria aqui. Obviamente. Porque o universo adora uma piada interna — e aparentemente eu sou o punchline.

Ele sorriu. Aquele sorriso. O tipo de sorriso que faria uma freira repensar seus votos, e uma publicitária recém-traída, como eu, considerar jogar o cappuccino na própria cara só para se distrair da tensão ridícula que se instalava sempre que ele abria a boca.

— Também sou fã dos cappuccinos deste lugar — disse ele, como se estivéssemos em um daqueles comerciais de perfume franceses. Voz baixa, olhar insinuante, um leve toque de mistério. — Parece que compartilhamos um bom gosto.

Dei uma risada seca. Tão seca quanto meu coração pós-traição.

— Ou talvez você esteja apenas me seguindo. O que seria meio assustador, mas muito eficiente como tática de marketing pessoal.

Keny, o secretário, tentou não rir. Tentou. Mas falhou miseravelmente, soltando um som abafado e desviando o olhar. Aposto que ele estava se perguntando se podia trocar de mesa com o casal atrás da gente que só queria comer seu croissant em paz.

Leon arqueou uma sobrancelha.

— Agora fiquei curioso. Você sempre foi assim... desafiadora?

— Só com gente bonita. E chefes. E ex-amantes secretos que não sabem seguir o código básico da decência interpessoal. — Dei um gole no cappuccino. Espuma perfeita. Pena que não me anestesiava o cinismo.

Houve um breve silêncio. Daqueles cheios. Recheados. Como um bombom que você não sabe se vai ter recheio de licor ou uma granada emocional.

— Stella... — ele começou, voz suave, como se eu fosse um animalzinho assustado prestes a fugir.

— Leon. — Interrompi, levantando a mão. — Vamos fingir, só por hoje, que somos dois adultos civilizados que não transaram sem saber que estavam dentro de uma hierarquia profissional.

Ele riu. Claro que riu. Sempre rindo quando eu queria esganá-lo. Era quase um dom.

— Civilizados. Sim. Isso é... ambicioso da sua parte. — Ele apoiou o cotovelo na mesa e me observou como se eu fosse uma peça de arte moderna que ele não sabia se era um vaso ou uma armadilha.

— Eu sou feita de ambição, sarcasmo e uma quantidade insalubre de cafeína — respondi, sorrindo como quem sabe que está vencendo por pontos.

Antes que a situação implodisse com mais ironia, Keny pigarreou.

— Sr. Leon, temos a reunião com o departamento financeiro em quinze minutos.

— Ah, claro. — Ele se levantou, ainda com os olhos presos aos meus. — Stella, boa noite. Tente não derrubar ninguém com sua língua afiada enquanto isso.

— Só se merecerem — pisquei.

Assim que ele e Keny saíram, senti como se tivesse sobrevivido a um terremoto emocional com salto alto e batom intacto. Meu cappuccino estava frio, mas meu sangue fervia. Talvez fosse adrenalina. Ou raiva. Ou o resquício de uma química que me recusava a admitir.

Continue lendo este livro gratuitamente
Digitalize o código para baixar o App
Explore e leia boas novelas gratuitamente
Acesso gratuito a um vasto número de boas novelas no aplicativo BueNovela. Baixe os livros que você gosta e leia em qualquer lugar e a qualquer hora.
Leia livros gratuitamente no aplicativo
Digitalize o código para ler no App