O silêncio da madrugada pesa como concreto sobre a mansão escurecida. Nenhum som de motor na rua, nenhum latido distante. Apenas o tique-taque preguiçoso de um relógio antigo ecoa pela cozinha vazia, onde Alan Moretti, de olhos injetados e rosto abatido, encara o copo meio cheio de uísque como se pudesse encontrar ali respostas que a sua mente já não é capaz de fornecer. As luzes estão apagadas, um pedido mudo para que o mundo lá fora esqueça que ele ainda existe. Mas a verdade é que Alan não consegue esquecer. Nem por um segundo.Ele costumava ser alguém. Um Moretti. Um nome que inspirava respeito ou medo. O Grupo Moretti já foi símbolo de tradição, um império construído sobre décadas de prestígio e estratégias ousadas no meio farmacêutico. Agora não passa de uma lembrança empoeirada. Um papel velho em alguma gaveta do jurídico do Grupo Schneider. Vendido. Comprado. Engolido vivo.O telefone vibra sobre a bancada de mármore frio. Três vezes. E ele deixa tocar, hesitante, porque há al
Não precisa verificar o relógio, a madrugada avança quando Alan Moretti sente o mundo ruir de vez. A garrafa de uísque na bancada já perdeu o gosto, tornando-se um líquido morno e amargo como o arrependimento que corrói o seu peito. A casa está mergulhada em um silêncio artificial, sufocante, como se até as paredes aguardassem para ouvir o que vem a seguir. No andar de cima, Vivian dorme, ou tenta. Há noites em que o peso da vida acorda mesmo os que fingem dormir.Mas Alan não dorme. Há semanas que não conhece o verdadeiro descanso. Só pesadelos. E um deles caminha agora em sua direção agora.Vivian acorda com o barulho, os olhos turvos pelo sono interrompido. Ela vê Alan no quarto, com a expressão de um homem prestes a ser enforcado.— O que foi agora?Ele não responde de imediato. Vai até o armário e começa a empurrar roupas na mochila com movimentos duros, quase violentos.— Precisamos ir. Agora. — A voz é firme, mas arrastada. Tensa. Embriagada.— O quê? Por quê?Alan a encara. E
Jonathan Schneider nunca imaginou que poderia sentir paz no meio do caos, mas ali está ele, largado no sofá da sala, cabelos penteados, camisa branca alinhada, com o notebook no colo e Marta dormindo em seu peito. O mundo gira, empresas se movimentam, decisões urgentes aguardam sua assinatura e, mesmo assim, ele se recusa a sair de casa. Porque, pela primeira vez em anos, o caos corporativo parece pequeno demais diante da calmaria que encontrou nos braços dela.Ele trabalha de casa, participando das reuniões em chamadas de vídeo com os acionistas e conselheiros. O cenário atrás dele é sempre o mesmo: a sala ampla, bem iluminada, Marta andando de um lado para o outro distraída, às vezes com uma xícara de chá na mão, às vezes descalça, com os cabelos soltos. Quem presta atenção o suficiente percebe o quanto ele sorri diferente agora. Mas poucos têm coragem de comentar.Islanne, por outro lado, não tem tempo para sutilezas. Assume as responsabilidades do irmão com firmeza, como quem já n
Marta atravessa a rua com uma mão na barriga, protegendo as vidas que carrega. O suor escorre pela sua nuca, a vertigem ameaça dobrar os seus joelhos, mas ela inspira fundo. Falta pouco. Falta muito pouco.E então, tudo acontece.O som de pneus cantando invade o ar como um grito. Um carro desgovernado surge do nada, avançando na direção dela como um predador. O impacto é brutal. Marta é lançada para o asfalto, seu corpo se choca contra o asfalto quente, e a dor vem antes mesmo que a consciência se apague. Seu último pensamento é uma súplica silenciosa: "Por favor… meus bebês…"— Meu Deus! — exclama uma senhora de cabelos grisalhos, que assistiu a tudo da calçada. Sem hesitar, ela faz um gesto rápido para um homem ao seu lado. — Ajude-a! Ligue para a emergência agora!A mulher se ajoelha ao lado de Marta, segurando a sua mão fria, seus olhos percorrendo o rosto pálido da jovem e sua barriga grande.— Aguente firme, querida… — sussurra, apertando os lábios. — Você não pode desistir ag
Diante de todas as adversidades, Marta não desiste. A fome a acompanha como uma sombra cruel dos últimos meses. O frio corta sua pele, os pés latejam, mas a necessidade de seguir em frente é maior do que o desespero.O dia inteiro foi assim, batendo de porta em porta, insistindo até o limite. Quando o cheiro de café quente invade suas narinas, Marta percebe o quanto está fraca. Seus bolsos vazios são a prova de que o pouco que tinha se esvaiu em uma passagem de ônibus, comprada com a esperança de um trabalho, onde a promessa de uma vaga de atendente evaporou assim que ela cruzou a porta e ouviu o gerente dizer:— Desculpe, a vaga já foi preenchida.Agora, ela vaga por ruas desconhecidas, sentindo o peso da cidade grande esmagá-la a cada "não" que recebe.— Só mais uma… só mais uma tentativa. — murmura para si mesma, tentando ignorar a dor latejante nos pés e a sensação de que está cada vez mais distante da vida que sonhou.Marta aperta o casaco surrado contra o corpo, mas o tecido fin
O som do despertador ecoa pelo quarto como um lembrete de que mais um dia começou. Mas Jonathan já está desperto há muito tempo. O teto acima dele é apenas uma prova em meio às sombras que nunca o deixam. Luxo, poder, sucesso... Nada disso tem efeito sobre ele. Porque, no fim das contas, nenhum império construído com suor e estratégia consegue preencher o vazio deixado por uma perda irreparável.Jonathan fechou os olhos, e a lembrança de Aira o envolveu como um abraço invisível. Eles eram perfeitos juntos, duas metades que se encaixavam sem esforço. O riso fácil, as conversas que varavam a madrugada, o simples toque dela incendiando a sua pele.Ele já havia tido inúmeras mulheres, mas nenhuma como Aira. O amor deles era palpável, intenso, uma força arrebatadora. No sexo, encontravam um refúgio onde tudo desaparecia, só existiam eles, ofegantes, consumidos por um desejo insaciável. Nunca, em toda sua experiência, conheceu algo tão avassalador.Com ela, conheceu o auge da felicidade. E
A tempestade ruge como uma fera descontrolada, e a noite é uma cortina negra cortada apenas pelos relâmpagos que rasgam o céu. A água da chuva não cai, ela despenca, formando rios que correm selvagens pelas ruas de paralelepípedo. Marta, encharcada e exausta, luta contra a correnteza que se forma ao longo da calçada, cada passo um desafio brutal. Seus pés escorregam, suas pernas fraquejam, e o peso da água a empurra, impiedoso.Um bueiro à frente é uma boca aberta, um abismo negro onde a enxurrada parece querer engoli-la viva. Marta tenta se segurar em um poste, mas seus dedos escorregam. O pânico a atinge como uma lâmina afiada, a ideia de ser tragada por aquela corrente furiosa a paralisa por um segundo eterno.— Não... não... — sua voz sai num sussurro abafado pela fúria da chuva.Quando está prestes a perder o equilíbrio, uma mão firme agarra o seu braço. Depois outra. Dois homens, vestidos com uniformes encharcados dos bombeiros, se esforçam para puxá-la de volta à calçada.— Te
MartaO estranho está ali, observando-a. Alto, imponente, com um terno impecável que denuncia o seu poder e riqueza. Os sapatos caros brilham sob a luz fraca da igreja. Mas o que mais a assusta são seus olhos, negros como a noite, penetrantes, porém vazios, sem qualquer vestígio de emoção. Um homem lindo… mas que aparenta não ter alma.— Você quer uma chance, garota? — a voz dele soa firme, inesperada no silêncio da igreja.Um arrepio percorre a espinha de Marta. Sua mente grita para ter cautela, mas há algo naquele homem… Algo que a faz acreditar que talvez essa seja a resposta que tanto pediu.— Sim… — sua voz sai hesitante, mas verdadeira. — Eu só preciso de uma chance, senhor.O homem cruza os braços e a encara por um longo momento, como se avaliasse algo dentro dela. Então, ele solta um leve suspiro e diz:— Venha comigo. Vamos conversar.Jonathan a estuda por um longo momento, seu olhar cravado nela, como se tentasse decifrar o que há por trás daquela jovem despedaçada. Há algo