Horas depois, o barulho dos tiros começou a diminuir, e a tensão no ar parecia aliviar-se lentamente. Cecília observou, com uma mistura de alívio e impaciência, enquanto os policiais desciam com uma jovem mulher, filha de alguém influente, que havia se metido em problemas ao se emvolver com quem não devia e estava sendo resgatada.
A cena parecia um reflexo cruel da desigualdade: uma patricinha recebendo resgate imediato, enquanto os moradores do morro, cujas vidas estavam em constante risco, eram deixados à própria sorte. Mas, apesar de sua revolta pela desigualdade social, naquele momento ela só queria subir e verificar se seus avós estavam bem. Com o final do confronto, ela se aproximou dos policiais, tentando encontrar alguma informação sobre a situação no morro. Com um misto de nervosismo e determinação, ela avançou pelas barreiras policiais. Finalmente, com a permissão para retornar ao morro, Cecília subiu pelas ruas ainda desertas, com o som das sirenes cada vez mais distante. O coração batia forte em seu peito enquanto ela se aproximava do barraco. Cada passo parecia um teste de resistência, e a ansiedade se fazia presente a cada instante. Ao chegar em casa, Cecília encontrou seus avós, que pareciam aliviados ao vê-la, mas seus rostos revelavam um abalo profundo. Apesar de terem passado a maior parte de suas vidas no Morro Paraíso, a violência sempre era um golpe duro, como uma sombra constante que não se dissipava. Cecília sabia que, apesar de seu próprio sofrimento, a dor de seus avós era ainda mais intensa. Eles haviam perdido a única filha e o genro amado, vítimas de uma violência que parecia não ter fim. Essa perda deixou marcas profundas em suas almas, e mesmo agora, com a constante ameaça dos conflitos no morro, era difícil para eles se acostumarem com a sensação de insegurança e medo. O alívio imediato de vê-los bem misturava-se com a tensão acumulada durante aquelas horas. Com um profundo suspiro, ela os abraçou, agradecendo mentalmente por terem escapado ilesos mais uma vez.Naquele momento, o dia tumultuado finalmente parecia chegar ao fim. Cecília, exausta e com o coração ainda acelerado, decidiu que o melhor a fazer era focar em sua família e deixar os fantasmas do dia para trás. Ela precisava ser forte para eles, manter a rotina e garantir que, apesar das adversidades, a vida continuasse. A lembrança de Gael e o beijo perturbador ficaram de lado por ora, enquanto ela se dedicava a reconstruir a normalidade em meio ao caos. Cecília acordou com o coração acelerado, o corpo ainda quente pela lembrança do sonho que tivera. Gael. Seu nome ecoava em sua mente como uma sombra persistente, e por mais que tentasse afastar a imagem dele, ela não conseguia. Aquele beijo... Ele realmente havia mexido com ela de uma maneira que nenhum homem, em todos esses anos, havia conseguido. Ela balançou a cabeça, tentando se recompor. "Como um homem que só vi uma vez pode ter esse efeito sobre mim?", pensou, irritada consigo mesma. Além de tudo, ele era arrogante e abusado, achando que podia fazer o que quisesse só porque tinha dinheiro. Cecília odiava esse tipo de homem. E odiava ainda mais o fato de não conseguir parar de pensar nele. Olhando para o relógio, percebeu que já estava quase na hora de ir trabalhar. Sem perder mais tempo, levantou-se e foi direto ao banheiro, lavando o rosto na tentativa de despertar de vez e afastar aqueles pensamentos indesejados. Depois de sua higiene matinal, vestiu o de sempre: jeans, camiseta branca e o jaleco. Não havia espaço para vaidade em seu trabalho. Na cozinha, o cheiro do café recém-feito inundava o pequeno espaço. Sua avó, como sempre, já estava de pé. Mesmo Cecília dizendo que não precisava se levantar para fazer o café, que ela mesma faria, sua avó insistia em preparar o café da manhã para ela todos os dias. Seu avô estava sentado à mesa, os olhos fixos na xícara de café, com um semblante que Cecília reconheceu de imediato: preocupação. Ela se sentou à mesa, notando a troca de olhares entre eles. Algo estava errado. ___ Pela cara de vocês, sei que algo os está preocupando. Então, qual dos dois vai me dizer o motivo? — perguntou, com a voz cautelosa.Sua avó, Dona Lurdes, suspirou profundamente, tentando encontrar as palavras certas. Seu avô, Seu Joaquim, foi o primeiro a falar. ____ Cecília... — ele começou, hesitante. ___A gente não queria te contar isso logo cedo, minha neta, mas acho que você precisa saber. ___O que foi, vô? Fala logo. — Seu coração começou a acelerar novamente, dessa vez por uma sensação de alerta, não por causa de um sonho. ___ O Tiago... — disse sua avó, num tom baixo. — O sobrinho do Marcelo... Ele fugiu da cadeia. Voltou pro morro. Por um momento, Cecília congelou. A menção do nome de Tiago fez seu sangue gelar. Ela conhecia aquele nome muito bem. Tiago, o sobrinho do traficante que comandava o morro, sempre fora uma presença sombria em sua vida. Ele era obcecado por ela desde que eram adolescentes. A lembrança de seus olhares insistentes e perseguições a fez estremecer. Ela medo a pavor dele, e agora ele estava de volta.