Caine
Chego à escolinha e, honestamente, o ambiente já me deixa em alerta. As paredes externas são pintadas com desenhos de mãos coloridas e bichinhos felizes. Há um vento leve soprando bolhas de sabão pelo pátio — bolhas de sabão! — e uma trilha sonora suave com músicas infantis. Falta só uma alpaca vestida de jardineiro e essa cena vira um pesadelo psicodélico.
O motorista estaciona, então saio do carro e respiro fundo. Força, Caine. Você enfrentou reuniões com acionistas furiosos, uma sabotagem em campo de petróleo no Golfo e um almoço com a sua mãe perguntando se você vai morrer solteiro. Uma professora sorridente não pode ser pior.
Cruzo o portão e caminho até a entrada principal. Elijah já me viu da porta da sala e corre na minha direção com os braços abertos como se eu fosse o próprio Buzz Lightyear.
— Tiooo Caine!
Ele se agarra à minha perna como um polvo. Me abaixo, ajeito o cabelo bagunçado dele e tento ignorar o olhar encantado de uma senhora com um crachá escrito “Vó voluntária”. Ela sorri com um “Awn” irritante.
— Pronto para ir? — pergunto.
— Espera! Precisa falar com a professora Laura. — Ele já me puxa pela mão, como se eu não fosse um adulto com vontade própria.
— Eli, não precisamos...
— Você tem que conhecer ela tio!
Droga. Eu sei.
Sou conduzido pela pequena criatura de um metro e meio até uma sala que parece uma explosão de arco-íris em overdose. Cartazes de cartolina espalhados pelas paredes, frases motivacionais em letras saltitantes e... glitter. Muito glitter. Demais. Está no ar, nas mesas, grudado nas cadeiras. O chão inteiro brilha como se fosse encenado para um comercial de detergente. Inaceitável. Um ambiente de trabalho não deveria brilhar.
E então, ela aparece.
Miss Laura. O tal “raio de sol ambulante” de que tanto falaram.
E, para meu completo desgosto, Nathan não estava exagerando.
Ela surge com um vestido amarelo claro — gritante demais para os olhos de qualquer adulto equilibrado — o cabelo preso de forma displicente, como se arrumação fosse opcional, e na cabeça... uma tiara com orelhas de coelho. Ridículo. Ou pelo menos deveria ser. O problema é que nela, de alguma forma, nada disso parece fora de lugar. Pior: parece que é ela quem manda em toda aquela bagunça.
Ao me ver, o sorriso dela cresce de imediato, tão rápido e amplo que beira o absurdo. É quase teatral. Ninguém sorri assim sem esforço.
— Você deve ser o famoso tio Caine! — ela diz, como se estivéssemos numa sitcom da tarde. — Que bom que veio buscar o Elijah pessoalmente. Ele falou de você o dia inteiro.
Ela se aproxima com uma energia desconcertante. Não estende a mão, ela me oferece um abraço. Um abraço!
Eu travo. Isso é um teste?
— Eu... não sou muito de contato físico. — informo, dando meio passo para trás.
Ela dá uma risada leve.
— Tudo bem! Eu abraço por nós dois. — E, de fato, me abraça mesmo assim. É uma versão de sequestro educado. Ela cheira a lavanda e bolacha caseira.
— Ele teve um ótimo dia hoje. Pintou, cantou, e me contou tudo sobre o seu carro de luxo que virou nave espacial. — Ela pisca para mim.
— Ele contou? Ótimo. Já posso virar piada nacional.
— Não seja tão sério, Sr. Walker. Criança feliz é criança criativa. E Elijah é uma das mais doces.
Ela agacha na frente dele e segura suas mãozinhas.
— Amanhã tem o ensaio para o piquenique anual, lembra? Vamos praticar a dança! E o Sr. Walker está mais do que convidado para participar.
— Eu não danço. — respondo de imediato.
Ela se levanta e coloca as mãos na cintura.
— Todo mundo dança, Sr. Walker. Uns melhor, outros com mais... coragem.
— Você quer dizer vergonha alheia.
Ela ri. De novo. Como alguém consegue rir tanto sem se engasgar?
— Elijah, vá pegar sua mochila — ela pede ao menino, que dispara para fora da sala.
Agora somos só nós dois. O ar parece mais apertado.
— Olha, Miss Laura...
— Laura. Pode me chamar só de Laura.
— Certo. Laura. — Repito como se estivesse mastigando caco de vidro. — Eu não sou bom com isso. Crianças. Escolinhas. Esse teatro colorido que chamam de educação.
— Percebi. — Ela sorri. De novo.
— Então já sabe que não vou aplaudir suas canções, nem entrar em roda de histórias, nem fingir que glitter faz parte de uma vida equilibrada.
— Não quero fingimento. Quero presença.
— Presença? — solto um riso curto, seco. — Estou aqui, não estou? Isso é mais do que muita gente teria feito.
Ela não recua, não pisca. Apenas ergue o queixo, firme.
— E ainda assim, você pode ser mais. — Os olhos dela brilham com uma confiança que me irrita. — Em três semanas, você vai rir, dançar, pintar alguma coisa e sair daqui menos cinza do que entrou.
Dou um passo para mais perto, deixando minha voz pesar.
— Rir? Eu rio quando quero, não quando alguém me dita.
— Dançar? Prefiro quebrar um osso do que passar vergonha.
— Pintar? Não gasto tempo rabiscando quando tenho papéis demais para assinar .
O sorriso dela não vacila. Isso me incomoda mais do que qualquer resposta.
Ela estende a mão. Outra vez.
Cruzo os braços, firme. — Você insiste nesse gesto como se fosse resolver alguma coisa. Aperto de mãos não transforma ninguém.
— Não. Mas transforma intenções. — Ela segura meu olhar, desafiadora.
Ficamos em silêncio. É quase um duelo. A sala, com seus cartazes coloridos e chão brilhante, parece se contrair ao redor. Eu sei que deveria ignorar, virar as costas, encerrar essa cena ridícula. Mas não.
Estendo a mão, devagar, como quem aceita entrar numa guerra sabendo que não sairá ileso. Seguro a dela com firmeza excessiva, deixando claro: não é rendição, é confronto.
— Certo, Miss... Laura. — Pauso antes do nome. Carrego o peso na voz. É um aviso, não uma concessão.
Nesse momento, Elijah volta com a mochila nas costas, as bochechas rosadas e um desenho na mão.
— Fiz para você, tio Caine!
Ótimo. Agora sou parte de alguma arte da criança.
Mas ao olhar o desenho — rabiscos, papel amassado e uma estrela gigante — algo em mim amolece um pouquinho.
Três semanas.
Acho que posso sobreviver.
Talvez.
Ou morrer coberto de papel de todos os tipos.