capítulo 2

Leonardo

Acordei antes do despertador. Era meu hábito. Disciplinado, metódico, previsível — três palavras que definem minha vida há décadas. Mas, naquela manhã, algo me escapava.

A casa não estava mais em silêncio. Havia passos no corredor. Leves. Cautelosos.

Ela estava ali.

Levantei, vesti minha camisa branca impecável, ajeitei os botões com calma. Passei pela porta do quarto, e meus olhos encontraram a porta dela entreaberta. Fechada à noite, agora com uma pequena fresta. Sinal de que ela se levantou cedo. Ou não dormiu.

Desci as escadas. A cozinha já estava com cheiro de café fresco. Não era o aroma preparado por minha governanta. Era outro. Mais forte, mais doce.

Ela estava lá.

Sentada à bancada, de pijama e moletom, os cabelos soltos caindo pelos ombros. Um rastro ainda visível de tristeza nos olhos inchados. Não me viu entrar. Estava alheia, mexendo o café devagar, olhando fixamente para a xícara como se ela pudesse responder alguma das perguntas que giravam em sua mente.

— Gosta de acordar cedo? — perguntei.

Ela sobressaltou-se. Virou-se rapidamente, sem sorrir.

— Me acostumei… na faculdade.

— Ainda está escuro lá fora.

— Eu sei.

Havia algo na sua voz… firme e contida. Como se cada palavra fosse cuidadosamente medida antes de sair. Nenhum excesso. Nenhuma lágrima. Era o tipo de controle emocional que eu respeitava — e temia. Porque, no fundo, era o mesmo tipo de controle que eu exercia. E saber que ela podia ser como eu me inquietava.

— Você preparou isso? — perguntei, pegando a xícara de café.

— Sim. Achei que fosse melhor do que esperar alguém levantar.

Tomei um gole. Estava forte. Forte demais. Mas não reclamei.

— Vai ser um problema para mim?

Ela ergueu os olhos.

— Vai depender do senhor.

— Não gosto de adolescentes rebeldes.

— Eu também não gosto de homens que me tratam como um fardo.

Silêncio.

Ela não baixou o olhar. Não se curvou. Isadora era feita de uma coragem silenciosa. De um orgulho quase delicado. E isso me atingia como uma pancada silenciosa no estômago.

— Entenda uma coisa — disse, aproximando-me da bancada. — Você está aqui porque seu pai confiava em mim. Eu sou o tutor legal até que você encontre um rumo. Isso não significa que teremos uma relação próxima. Você terá seu espaço. E eu terei o meu.

— Ótimo. Prefiro assim.

Ela pegou a xícara e subiu. Sem dizer mais nada. Sem hesitar.

E eu fiquei parado ali, observando as marcas de seus passos descalços no chão de mármore.

Pela primeira vez em muito tempo… percebi que minha casa já não era só minha.

E pior: percebi que aquela garota era mais perigosa do que eu imaginava.

Horas depois, já no meu escritório, tentei focar nos contratos que exigiam minha assinatura. Mas a concentração não vinha. Os papéis estavam perfeitamente alinhados sobre a mesa, o sol batia no vidro blindado, a cidade acordava aos poucos lá fora… e mesmo assim, minha mente se prendia no segundo andar.

Nos passos que ouvi antes do café.

No jeito que ela segurava a xícara.

Na firmeza com que respondeu à minha provocação.

Isadora não era uma adolescente qualquer. E talvez por isso me incomodasse tanto. Eu estava acostumado a ser obedecido, temido, respeitado. Ela, por algum motivo, não parecia se impressionar comigo.

Como se eu fosse só mais um homem velho cuidando de uma garota que não queria estar ali.

E isso me corroía.

Chamei Marcos e pedi o histórico completo da faculdade dela. Cursos, notas, atividades. Queria entender o tipo de mulher que eu tinha dentro da minha casa. Não por precaução… ou era isso que eu tentava me convencer. Na verdade, eu queria saber mais. Queria decifrá-la.

O dossiê chegou minutos depois. Engenharia Civil. Bolsista. Notas altas. Discreta. Sem redes sociais públicas. Nenhum namorado registrado. Apenas um nome: Lucas Mendes. Um colega de classe que fazia constantes visitas ao hospital quando o pai dela estava internado. Talvez um amigo. Talvez algo mais.

Revirei os papéis. Por quê? Por que me incomodava tanto imaginar alguém se aproximando dela?

Fechei a pasta com mais força do que o necessário. Me levantei e fui até a janela. Lá embaixo, vi Isadora no jardim. Estava sentada na grama, de pernas cruzadas, com um livro no colo. Os cabelos soltos, a camiseta branca agora trocada por um vestido simples, mas justo o suficiente para chamar atenção. Não era intencional. Era natural.

E isso tornava tudo pior.

Ela não precisava tentar. Ela era.

E esse "ser" estava começando a tirar minha paz.

No fim da tarde, decidi encontrá-la para uma conversa formal. Era o certo a fazer. Estabelecer limites. Definir regras. Proteger a estrutura da minha casa e o pouco de ordem que ainda me restava.

— Isadora — chamei, ao encontrá-la na biblioteca.

Ela ergueu os olhos devagar. Estava lendo um livro grosso de arquitetura. Um dos meus, aliás. Especificamente da minha coleção particular.

— Sim?

— Posso?

Ela assentiu, fechando o livro com cuidado.

— Achei que essa ala fosse restrita — comentou.

— É. Mas você já está aqui mesmo.

Ela sorriu. Pela primeira vez, sorriu. E isso… foi perigoso.

— Vim conversar sobre sua permanência — comecei. — Quero que se sinta confortável, mas há regras. Eu prezo pelo silêncio, ordem e rotina. Você terá horários para refeições, saídas precisam ser avisadas, e visitas não serão permitidas sem autorização.

— Visitas?

— Amigos. Colegas. Namorados.

— Não tenho namorado.

Fiquei em silêncio.

— Mas e se tivesse?

— Não discutiremos hipóteses — respondi, seco.

Ela respirou fundo e se recostou na poltrona. Com aquele movimento, o vestido subiu alguns centímetros. Minúsculos. Mas meus olhos foram até lá antes mesmo que eu percebesse.

Ela percebeu também.

— Acha que estou aqui para causar problemas?

— Não. Acho que você está perdida. E pessoas perdidas tendem a cometer erros.

— E o senhor vai me proteger de mim mesma?

— Se necessário.

Ela me encarou por longos segundos. Seus olhos castanhos se estreitaram como se tentassem ler algo que ainda não estava claro.

— O senhor tem alguém?

— Não. Nunca quis ter.

— Por quê?

— Não sou homem de laços.

Ela se calou por um momento. Então, murmurou:

— Meu pai dizia que o senhor era o homem mais correto que ele conheceu. Mas também dizia que o senhor era o mais solitário.

Aquilo me atingiu como uma lâmina.

— Seu pai era um homem leal. E justo. — respondi, com firmeza. — Não vamos misturar o que ele foi com o que eu sou.

Ela voltou os olhos para o livro, mas não retomou a leitura. Ficou em silêncio, pensativa.

— Não estou tentando invadir nada, senhor Ferraz. Só estou tentando sobreviver.

Essa frase… ficou na minha mente o resto da noite.

Era quase meia-noite quando a vi novamente. Desci para tomar água e vi a luz do hall acesa. Ela estava lá, deitada no sofá com um cobertor sobre as pernas, assistindo a um filme antigo em preto e branco. Silenciosa. Atenta.

— Não consegue dormir? — perguntei.

— Pesadelos. Vêm todas as noites. Desde o acidente.

— Nunca tentou remédio?

— Nunca quis me entorpecer.

Ela se virou no sofá e fez um gesto.

— Quer sentar?

— Esse é o meu sofá favorito.

— Então sente. Não estou ocupando tudo.

Relutante, me sentei. Havia distância entre nós. Física. Mas a tensão preenchia cada centímetro daquele espaço. O filme seguia na tela, mas nenhum de nós prestava atenção.

Eu observava o brilho da pele dela sob a luz fraca.

Ela parecia frágil. Mas era só uma impressão. Havia aço por trás daquela doçura.

— Está pensando em voltar para a faculdade? — perguntei, tentando distrair a mim mesmo.

— Talvez no próximo semestre. Se eu conseguir me adaptar aqui.

— Adaptar-se?

— A viver com o homem que meu pai mais admirava, mas que não sabe lidar com sentimentos.

— Isso foi uma provocação?

— Foi só uma constatação.

Olhei para ela.

— Tome cuidado com o que diz.

— E o senhor com o que sente.

Silêncio.

Ela se levantou logo depois, enrolada no cobertor.

— Boa noite, senhor Ferraz.

— Boa noite, Isadora.

Ela subiu devagar. Cada degrau que ela pisava parecia ecoar em mim. Como se marcasse uma contagem regressiva para algo inevitável.

Eu não era um homem que se envolvia. Não era alguém que se deixava afetar.

Mas pela primeira vez em anos…

Senti que o perigo dentro da minha casa não era externo.

Era ela.

E pior ainda… era o que ela começava a despertar em mim.

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