Mais tarde, quando o aroma do arroz soltinho e do feijão recém-cozido se espalhou pela cozinha da ala reservada do resort, acompanhado de filé ao ponto e uma salada fresca com azeite trufado, Isadora sentiu um calor estranho no peito — não era só fome, era saudade de um tempo mais simples.
Chamou Dona Cecília, que organizava a louça com esmero, e puxou gentilmente uma cadeira ao seu lado.
— A senhora não vai me deixar aqui sozinha, né? — disse, com um sorriso tímido, segurando a mão enrugada da funcionária com um carinho sincero.
Dona Cecília hesitou, surpresa com o convite, mas acabou aceitando com um sorriso doce. Sentaram-se juntas à mesa envidraçada, com vista para o jardim de hortênsias. Enquanto almoçavam, conversaram sobre amenidades — o tempo incerto, os hóspedes curiosos, histórias da juventude de Cecília que arrancaram gargalhadas sinceras de Isadora.
Foi uma pausa reconfortante em meio ao caos.
Depois do almoço, Isadora subiu para o quarto e buscou refúgio no silêncio. Deitou-se na cama com o celular nas mãos, tentando ocupar a mente. Navegou pelas redes sociais sem rumo, até que o coração afundou.
Lá estava ele: Rodrigo.
A foto mostrava-o num jantar de gala no Rio de Janeiro. Elegante, arrogante como sempre. Ao lado dele, a mulher da noite anterior que ela flagrou na sala dele — aquela mesma que a viu ali na porta e olhou com malícia. O sorriso de ambos era íntimo, e a legenda do evento, impessoal, só aumentava o impacto:
"Renomado advogado de São Paulo marca presença em evento beneficente no Copacabana Palace."
Mas o que feria mesmo era a seção de comentários:
— Quem será essa acompanhante?
— Casal lindos
— Casou será? Achei que fosse...
— Já virei fã
— Pensei que ele fosse solteiro nunca o vemos assim com mulher em público.
— Me lembro que ele estava ao lado de uma moça a um tempo no velório dos pais dela pensei que estavam juntos na época mais nunca o vi anunciar nada publicamente. Ela era tão linda...
E assim as opiniões se dividiram na Internet...
Isadora fechou o aplicativo com mãos trêmulas. Aquilo ainda doía, mesmo que já soubesse a verdade. Respirou fundo e forçou-se a mudar o foco. Precisava resgatar o que ainda era dela — sua inteligência, seus sonhos.
Abriu o navegador e digitou:
"Inteligência Artificial + curso gratuito + certificação."
Um anúncio da Duarte Tecnologia Global apareceu entre os primeiros resultados, promovendo uma parceria com uma plataforma de cursos online. Era simples, mas direto. Inscreveu-se em dois módulos introdutórios: Fundamentos de IA e Processamento de Linguagem Natural. Nada muito técnico — ainda — mas o suficiente para reacender algo dentro dela.
Pegou um caderno antigo, capa gasta de tanto tempo sem uso, e começou a anotar conceitos, termos, dúvidas. Enquanto escrevia, sentia-se mais viva. Mais dela. Como se cada linha fosse uma afirmação silenciosa: “Eu posso recomeçar.”
A vibração do celular interrompeu sua concentração. Era uma mensagem de Laura:
“Chego em 10 minutos. Pronta pra afogar essa mágoa num drink?”
Isadora sorriu. Respondeu:
“Só um banho rápido. Pode subir quando chegar.”
Pegou e ligou pra recepção do resort liberando a entrada de sua amiga:
— Boa tarde moça, minha amiga Laura Gomes está chegando. Por favor, pode liberar a entrada dela para a minha suíte?
— Ok senhorita anotado. Algo mais? — respondeu a atendente.
— Obrigada. Por enquanto é só — Disse Isadora desligando e indo a casa de banho.
Na casa de banho, deixou a água quente correr pelo corpo, tentando lavar os resquícios do dia. Não era só o cansaço — era o peso do que não disse, do que sentiu, do que viveu naquela noite com o estranho de olhos intensos e mãos firmes.
Vestiu uma calça jeans ajustada, uma t-shirt branca simples e um blazer de tricô cinza-claro. Passou um gloss rosado e ajeitou os cabelos no espelho. Ao encarar o próprio reflexo, sussurrou:
— Quem sou eu agora?
A batida na porta a trouxe de volta. Era Laura.
Entraram num abraço apertado, como se anos tivessem passado desde a última vez que se viram. E, de certa forma, dentro de Isadora, tinham mesmo.
Pegaram as bolsas e desceram. Avisaram Dona Cecília de que voltariam mais tarde e saíram rumo ao vilarejo próximo, onde um bar moderno e intimista havia sido inaugurado recentemente. O lugar era requintado, mas acolhedor, com luzes baixas, sofás de veludo e uma banda de jazz se preparando para tocar.
Escolheram uma mesa ao fundo, longe do burburinho dos casais e dos brindes ensaiados. O garçom se aproximou, e Laura foi rápida:
— Dois drinks, por favor. Um com morango pra ela, e um com kiwi pra mim. E manda petiscos caprichados!
— Hoje o dia é nosso, Isa. Diego vem buscar a gente depois, então relaxa.
Isadora sorriu. Ainda hesitante, mas grata.
— E agora, conta. Tudo. Desde a mensagem. Não me poupe.
Isadora respirou fundo. E falou. Do aniversário de casamento esquecido. Da ausência de Rodrigo. Da cena devastadora na empresa. Do homem misterioso naquela noite chuvosa. Do desejo inesperado. Do medo. Da fuga.
— Eu sei que parece loucura... mas foi tão diferente. Ele não tentou me consertar. Só... me viu.
Laura apertou sua mão com força.
— Isa... esse Rodrigo é um lixo. Um covarde. E o pior? Ele sabe que perdeu. Te deixou no dia do aniversário de vocês pra aparecer num evento público com a amante? Ele merece o esquecimento.
Isadora riu pela primeira vez em dias. Um riso curto, mas genuíno.
— Pena que eu não tenha nem o nome daquele homem. Só lembro do olhar. Parecia que ele via tudo o que eu escondia.
— Ai, amiga... e gostoso, né? Se vamos sofrer, que seja nos braços de um homem desses.
As duas caíram na gargalhada, aliviadas por um instante de leveza.
O garçom trouxe os drinks. Brindaram.
— A nós. À nova Isadora. — disse Laura.
— E ao recomeço. Mesmo sem saber onde ele vai dar.
O show começou. O piano preencheu o salão, as luzes diminuíram, e por um momento, Isadora esqueceu de tudo.
Ou quase tudo.
Porque no fundo da mente, entre o jazz suave e o gosto doce do morango, ela ainda sentia aquele olhar.
Aquele que talvez, sem saber, já tivesse começado a escrever a próxima parte da sua história.