Coloquei o bolo de carne sobre a longa mesa de carvalho da sala de jantar, o aroma pairando no ar como uma promessa esquecida.
Risos ecoavam da sala de estar.
Pai, normalmente enterrado em reuniões do Conselho dos Alfas e na logística da Alcateia Véu de Cinzas, estava sentado confortavelmente, ouvindo com atenção enquanto Eris falava animadamente sobre seu tempo na Academia Acônito.
— Treinamos com o ancião da alcateia, Eldric. — Disse ela, os olhos brilhando. — Ele disse que eu tenho os instintos de uma Alfa nata — forte o suficiente para liderar qualquer alcateia.
Mamãe segurou a mão de Eris, os olhos marejados de emoção.
— Minha menina doce. Você emagreceu, não foi? Precisa descansar mais — muito tempo de treinamento enfraquece sua loba e embota seus sentidos.
Dax estava sentado ao lado delas, ainda descascando castanhas com diligência, como um servo de Beta.
Fiquei em silêncio no limiar entre a cozinha e a sala de estar — observando, nunca convidada.
Aquela sala era quente, iluminada, cheia de vozes e atenção.
Esta sala — a minha — era quieta, escura. Esquecida.
A voz de Eris se ergueu com uma doçura forçada.
— Vera, por que está só parada aí? Ainda está brava comigo por ter arruinado sua cerimônia?
A conversa parou bruscamente.
Três pares de olhos se voltaram para mim como se eu fosse um problema que tinha voltado.
A testa de pai se franziu.
— Vera, venha aqui. Não fique emburrada.
Mamãe me lançou aquele olhar impaciente — o mesmo que sempre surgia quando Eris chorava.
— Você foi quem escolheu aquela data infeliz. Eris tinha acabado de chegar, estávamos todos exaustos da viagem ao aeroporto. Você sabe disso, não sabe?
E então veio a punhalada.
— Se for agir com mesquinharia com sua irmã, então não é filha minha.
Eris arquejou, os olhos arregalados cheios de uma falsa preocupação.
— Mãe, não seja tão dura. A Vera vai se magoar…
Mas o sorriso dela dizia outra coisa.
Ela sabia a data da minha cerimônia. Eu avisei com uma semana de antecedência.
Ela até respondeu:
“Mal posso esperar! Preparei uma surpresa pra você.”
Surpresa, de fato.
Desde que éramos filhotes, Eris sempre dava um jeito de transformar cada situação em um teste — um em que a alcateia precisava escolher.
Eles sempre escolhiam ela.
Até o meu companheiro escolheu ela.
Eu deveria sentir alguma coisa — raiva, traição, tristeza.
Mas havia apenas… silêncio.
— Não estou com raiva.
Essas palavras cortaram a tensão como garras em casca de árvore.
Todos encararam.
Pai piscou.
Mamãe semicerrava os olhos.
Eris inclinou a cabeça, fazendo um biquinho fingidamente confuso.
Eles esperavam um chilique, não serenidade.
O que significava… que sabiam que o que fizeram me machucaria.
Só não se importaram o suficiente para evitar.
Pai soltou o ar e forçou um sorriso.
— Ótimo. Que bom. Somos uma alcateia. Não guardamos rancor.
— Claro. — Eu disse, assentindo com perfeita obediência.
Era a mesma voz que eu usava para falar com os lobos anciãos durante os rituais de lua cheia.
O alívio nos olhos deles foi instantâneo.
Voltaram a dar atenção para Eris.
O jantar começou.
A empregada havia preparado vários pratos além do meu bolo de carne — patas de caranguejo, vieiras ao alho e limão, todos os favoritos de Eris.
— Você está muito magra. — Murmurou pai, enchendo o prato dela.
— Coma mais. Vai precisar de forças antes da prova orquestral. — Completou mamãe, enxugando os olhos novamente.
Dax entrou na conversa com um sorriso.
— Não se preocupe. Se algum daqueles lobos da cidade te der trabalho, arranco a garganta deles.
Eris riu, seu cabelo prateado brilhando sob a luz.
— Não precisa. Eu dou conta.
Todos riram.
Eu comia em silêncio, o calor do bolo de carne fazendo pouco para aquecer o frio dentro de mim.
Então, pela primeira vez naquela noite, mamãe olhou para mim.
Hesitou. Pegou uma colherada do bolo de carne e colocou no meu prato.
— Prova. Não pense que não nos importamos com você só porque damos atenção à Eris. Eu me importo com você também.
As palavras soaram… ensaiadas. Como uma fala de um roteiro que ela já tinha usado muitas vezes.
Olhei para a comida, depois coloquei lentamente os talheres de lado.
— Não. Estou satisfeita.
A expressão dela mudou — primeiro surpresa, depois irritada.
— O que está acontecendo com você ultimamente?
Ela começou a dizer mais, mas Eris de repente levou a mão à garganta, os olhos arregalados.
— Mãe… Eu… Eu não consigo respirar…
A voz dela falhou, o ar faltando.
Cambaleou para trás, derrubando a cadeira.
O pânico tomou conta imediatamente.
— Eris! — Gritou mamãe.
— O que está acontecendo?! — Pai se levantou tão rápido que a mesa tremeu.
Dax já estava ao lado dela, farejando seu pescoço e rosto em busca de sinais de veneno, seus instintos de Beta em alerta total.
— O cheiro dela está disparando — tem algo errado!
Meu coração batia forte no peito, não de medo, mas por causa da ironia silenciosa e retorcida de tudo aquilo.
No meio do caos, ninguém notou que eu permanecia completamente imóvel — apenas observando.
A voz de Vespa sussurrou suavemente na minha mente.
“Ela não está sufocando, Vera. Ela está se transformando. Algo dentro dela está despertando.”