O relógio marcava quase meia-noite quando Carly saiu da sacada e voltou para o sofá. Ainda restava uma fatia de pizza, na caixa aberta sobre a mesinha de centro, a garrafa de refrigerante pela metade. Serina já havia recolhido os pratos e Letícia secava os olhos, com o rosto ainda corado da emoção.— Eu não sei nem o que dizer — murmurou Carly, quebrando o silêncio.— Não precisa dizer nada. — Letícia respondeu, com a voz baixa, mas firme.— Mas eu quero — Carly insistiu. — Quero dizer que... sinto muito. Por tudo o que você viveu. Pela forma como ele te tratou. Por eu ter me envolvido nessa história. E... obrigada por ter me contado.Letícia assentiu, mordendo o lábio inferior, como se ainda lutasse contra as palavras que restaram engasgadas. Serina voltou à sala com um cobertor leve sobre os ombros.— Acho que ninguém aqui vai dormir tão cedo — disse, com um sorriso cansado.Carly olhou para as duas.— Sabe o que me dói? Não é só saber que ele foi capaz de fazer isso. É saber que, e
A manhã começava arrastada para Carly. Ela voltou para casa bem cedo. O celular vibrava em cima da mesa, e o nome que apareceu na tela fez seu coração pular uma batida. Ela ficou surpresa.Helena: “Oi, querida. Vamos manter nossa lição de discipulado hoje?”Carly ficou olhando para a mensagem por um tempo. Seus dedos pairaram sobre o teclado. Não esperava aquilo. Depois do término com Pedro, acreditava que Helena tomaria partido do filho e a ignoraria — ou, pior, a rejeitaria.Mas ali estava ela. Com sua suavidade habitual. Como se nada tivesse mudado.Carly respondeu:“Sim, claro. Podemos sim.”E logo em seguida, teve uma ideia. Algo que poderia soar loucura... ou coragem. Então, decidida, pegou sua bolsa e saiu para o trabalho. No hospital, o ambiente era silencioso, exceto pelo murmúrio distante de conver
A noite descia como um véu sobre a cidade, encobrindo as ruas num silêncio morno. Carly ficou na porta, observando o carro de Helena desaparecer na esquina, até que o último feixe de luz dos faróis sumisse. Suspirou profundamente. O discipulado daquela noite tinha mexido com ela. Mas agora, outra visita era esperada. E não era nada espiritual.Pedro havia mandado uma mensagem rápida: “Como pediu, vou passar já aí.” Foi até o banheiro, onde a água quente caiu sobre os ombros como uma cascata de memórias. Lembrou-se de Letícia. Do rosto molhado de lágrimas, da dor escondida por trás da compostura. Ela precisava ouvir o que Pedro tinha para dizer. Precisava saber se ele era realmente quem dizia ser… ou quem queria que fosse. Ao sair do banho, colocou o roupão azul felpudo, secando ligeiramente os cabelos úmidos com a toalha. Sentiu-se estranhamente confortável com o contraste entre das pantufas laranjas e o toque do perfume que espalhou pelos pulsos e pescoço. Um detalhe bobo, talvez,
O silêncio que caiu entre eles era espesso, quase palpável. Apenas os dois, frente a frente, envoltos pelas palavras que haviam dito, pelo passado que haviam rasgado em voz alta. A lasanha esfriava, esquecida sobre a mesa, mas a verdade... essa fervia.Carly se inclinou ligeiramente. Seus olhos, cravados nos dele, tinha algo de incômodo e hipnótico ao mesmo tempo.— Pedro... — sua voz saiu baixa, mas firme. — Você realmente me ama?A pergunta pegou-o desprevenido. Ele assentiu sem pensar, instintivamente, mas ela não sorriu.— Você me ama... mesmo — ela se levantou com calma, aproximando-se. — Ou ama a ideia de me ter?Pedro mordeu o lábio inferior. Um gesto automático, denunciando a culpa que lhe pesava no peito. Seus passos eram leves, quase silenciosos. Ele a seguiu com o olhar, tenso, como se esperasse que ela se transformasse a qualquer instante. Havia algo diferente nela, algo que ele não conseguia decifrar. Então, num movimento quase imperceptível, ela inclinou-se e o beijou.
O fim da tarde tingia o céu com tons suaves de laranja e dourado, enquanto Carly e Serina dividiam uma taça de sorvete, sentadas em uma mesa próxima à vitrine da sorveteria favorita da infância. Os avós moraram ali por anos, a mãe tinha crescido naquela rua.O lugar não havia mudado tanto, o letreiro "Gelato Kadosh" ainda piscava em azul neon. As mesas redondas com cadeiras coloridas, o som suave de um sax ao fundo. O aroma de casquinhas frescas misturava-se com risadas de crianças, e a sensação era reconfortante.Carly deu uma risadinha leve, o olhar perdido na rua.— Acabei falando sobre aquele assunto com Pedro. — Suspirou, como quem tira um peso dos ombros.Serina levantou os olhos, com espanto.— Carline, você foi atrás dele? — Indagou, enquanto pegava uma colherada de sorvete. — Quer dizer, você ama ele mesmo.A irmã passou o dedo pela lateral do copo onde derretia a combinação clássica: chocolate, baunilha e creme. O trio que nunca falhava.— Apesar de tudo... ainda gosto muito
O carro deslizou pela estrada de forma quase imperceptível, como se os faróis fossem os únicos olhos atentos naquele fim de noite. Carly mantinha as mãos no volante com firmeza, mas a sua respiração denunciava a preocupação. Ao lado, Monteiro mantinha-se sereno, como um pilar silencioso.Nenhum dos dois falava. O rádio estava desligado. Por fora parecia tudo tranquilo, mas por dentro inquietante. Aquele silêncio que antecede um mergulho.— Ainda dá tempo de voltar? — Murmurou, com os olhos fixos na estrada.— Quer dar para trás? Acredito que se formos, vai me agradecer depois... — respondeu Monteiro.Ela estava olhando de relance para ele, indignado. Acrescentou: — Poxa Carly, você já foi até aquele fim de mundo procurar ela. Agora vai desistir?— É, mas agora não sei se quero continuar com isso.— Tenha coragem. Estamos chegando. — Ele apontou com o dedo, onde deveria estacionar. — Para perto daquela viela. Carly estava a alguns metros de distância. Ficou parada, encarando o própri
A madrugada parecia mais silenciosa do que nunca quando Carly e Monteiro voltaram para o carro. O vento leve batia nos cabelos dela enquanto caminhavam, sem pressa, como se ambos quisessem esticar o pouco tempo que ainda tinham juntos.Monteiro, sempre atento, abriu a porta do carro para ela, com um sorriso de canto, quase despreocupado, mas seus olhos não negavam o cansaço e a tensão contida pela noite intensa. Seus olhos pesavam, só queria chegar em casa e dormir.Então, Carly acomodou-se no banco e fechou os olhos por um instante, sentindo a vibração suave do motor ligando. Monteiro soltou um suspiro, ligou o farol e partiram, deixando para trás a penitenciária feminina e a figura sombria de Marta, que ainda ecoava em sua mente.No interior do carro, era nítida a sonolência em meio a um silêncio denso pela estrada. De repente Carly se espantou.— Você está bem? — Monteiro perguntou, mantendo os olhos na estrada.Ela assentiu, olhando para a janela, onde as luzes de uma vila começav
A noite começava a ganhar vida no salão principal do El Dourado, cenário da tradicional cerimônia anual do hospital. Era o ápice do ano para os profissionais da saúde, um momento de reconhecimento pelas batalhas diárias e pelas vidas transformadas ao longo do caminho. Luzes sofisticadas refletiam nos lustres de cristal, enquanto uma música suave preenchia o ambiente.Os convidados trocavam sorrisos, brindes e abraços calorosos, celebrando com entusiasmo. E ali, em meio ao brilho da festa, estava a deslumbrante fisioterapeuta Carly Ramires. Seu nome ecoou pelos alto-falantes, chamando-a ao palco.Ela caminhou sob os holofotes com um sorriso mecânico, recebendo o prêmio de excelência profissional. O troféu nas mãos não suavizava o incômodo em seu peito. "O que eu estou comemorando, afinal?", pensou. Enquanto descia os degraus, os cumprimentos pareciam distantes.— Parabéns, Carly. Você merece! — diziam os colegas.Mas por dentro, ela sabia: aquele reconhecimento não era suficiente.À mar