O brilho das velas tremulava sobre os rostos enlutados, como se o fogo também hesitasse em arder naquela noite.
Dante Bellandi virou-se para eles.
Homens marcados pelo sangue, pelas balas e pela lealdade comprada com medo. Seus rostos eram uma galeria de cicatrizes, rugas e suspeitas. E todos o olhavam da mesma forma: esperando para ver se ele cairia… ou se se ergueria como seu pai.
Não havia espaço para dúvidas. Nem tempo para chorar.
Com passos lentos, Dante aproximou-se do caixão. Cada passo era uma sentença, cada olhar um julgamento silencioso. Ao chegar, olhou para ele. Para o titã caído. Para o monstro. Para seu pai.
Vittorio Bellandi repousava entre as sombras, olhos fechados como se estivesse apenas dormindo. Mas já não era temível. Não mais.
Dante engoliu em seco.
O silêncio era denso. Cortante.
Então, falou.
—Meu pai foi um homem de ferro —disse, sem tirar os olhos do cadáver—. O que ele construiu foi mais que um império. Foi uma maldição. Um legado de poder, sim... mas também de morte.
Alguns homens trocaram olhares. Outros baixaram a cabeça. Mas ninguém interrompeu.
—Não vou repetir o caminho dele —continuou Dante, a voz crescendo a cada palavra—. Não porque o despreze, mas porque eu não sou ele. Esta família precisa de mais que medo para se manter em pé. E eu… seguirei minhas próprias decisões. Meu próprio caminho.
A sala tremeu no silêncio.
A frase não foi apenas uma declaração.
Foi uma ameaça.
Dante deu um passo para trás.
Um dos capos —um veterano com o rosto marcado pela guerra— fez o sinal da cruz. Outro levou um cigarro aos lábios com as mãos trêmulas.
Não o viam mais como um menino.
Não agora.
Agora o viam como algo mais perigoso: um Bellandi que pensa.
Dante girou nos calcanhares. O mármore frio do mausoléu rangeu sob suas botas enquanto ele se afastava. Mas em sua mente, uma voz o perseguia como um eco amaldiçoado.
“O poder não se herda, Dante. O poder se toma.”
As palavras de seu pai ainda cravadas no peito, como uma faca que ainda sangrava.
E agora, ele sabia o que precisava fazer.
Tomar tudo.
Mesmo que tivesse que arder para isso.
★★★★★
A vila Bellandi dormia.
Ou pelo menos fingia.
Lá fora, os jardins se estendiam como uma pintura em sombras: ciprestes podados com precisão cirúrgica, estátuas nuas sob a lua e uma fonte que sussurrava como se soubesse mais do que devia. Dentro, o mármore branco respirava silêncio como um segredo. As lâmpadas, escassas e tênues, mal ousavam iluminar o corredor principal.
Tudo estava em calma.
Tudo estava em pausa.Até que não estava.
Fabio, ereto junto à janela do escritório, inalava lentamente o aroma do ar noturno: lavanda, madeira velha... e pólvora adormecida. A fumaça de cigarro ainda impregnava o ambiente, como se o fantasma de Vittorio —o velho chefe— se recusasse a abandonar seu trono.
Fabio não sentia falta dele.
Lealdades novas. Jogo novo. Regra nova.A porta rangeu com um lamento sutil. Um homem robusto cruzou o umbral. Camisa preta, barba por fazer, olhos de quem fez coisas que não se contam.
—Fabio —cumprimentou com voz rouca.
—Está feito? —perguntou, sem se mover, ainda olhando para a fonte.
—Sim. Ela já está a caminho. Ninguém perguntou. Ninguém olhou.
Um segundo de silêncio se esticou como um fio tenso antes de se romper com um sorriso torto nos lábios de Fabio.
O plano havia começado.
Ele avançou calmamente até o bar. Serviu uísque. O caro. O que Vittorio reservava só para fechar guerras.
—Quero que o signore Dante receba seu presente o quanto antes —disse, com a voz de quem sabe exatamente o caos que está prestes a soltar.
O outro homem franziu a testa.
—Não entendo... Por que ela? O que essa mulher tem?
Fabio olhou para ele. Uma centelha de algo além de estratégia acendeu em suas pupilas.
—Porque ele não parou de pensar nela desde a primeira vez que a viu.
Bebeu um gole lento, deixando que o ardor queimasse suas lembranças.
—Foi em Moscou. Dois anos atrás. Gala de Natal no Bolshoi. Ela dançava... e ele a viu. O resto do teatro desapareceu.
O silêncio caiu como uma laje. Ninguém mencionou o que aconteceu naquela noite. Ninguém falou sobre o cadáver.
—Ele tentou se aproximar —continuou Fabio—, mas tivemos que voltar para a Itália às pressas. Ele não a viu novamente.
—E você... dá ela a ele como um presente?
Fabio assentiu, o cristal do copo tilintando contra a madeira.
—Homens como Dante não pedem o que querem. Eles tomam. Eu só estou facilitando o trabalho.
—E se ela não quiser? Se ele odiá-lo por isso?
Uma risada seca escapou dos lábios de Fabio. Sem humor. Sem piedade.
—Que odeie. O ódio é melhor que a indiferença. Que grite, que o morda, que o amaldiçoe... —os dedos deslizaram lentamente pela borda do copo—. Mas que sinta. Porque isso é o único que importa: que ele sinta algo real.
Lá fora, um trovão rasgou o céu.
A tempestade ainda não chegara.
Mas já estava a caminho.
Como ela.
Como o desejo.
Como o começo de algo... irreversível.
★★★★★
O frio a despertou. Não aquele frio de inverno que se infiltra sob a pele. Não. Este era diferente.
Era o frio do metal.
Do medo.
Svetlana piscou. A luz era tênue, dourada, estranhamente quente para um inferno. Mas o zumbido constante a ancorava na realidade: estava presa. Atordoada. O corpo pesava como se cada músculo estivesse encharcado em chumbo. Ao seu redor, as sombras dançavam sobre painéis de madeira polida. Um luxo que parecia sujo.
Tentou se levantar. A tontura a golpeou com violência.
E então ela lembrou.
Os homens.
A van. A droga. O lenço encharcado. A luta inútil.O pânico a estrangulou.
—Socorro! —gritou, com a voz áspera, partida. Bateu na porta com os punhos, uma, duas, dez vezes.—Deixem-me sair, seus malditos!
Mas seu desespero bateu contra as paredes, tão inquebráveis quanto sua condenação.
O quarto parecia uma cela disfarçada de suíte: mesa, cadeira, uma bandeja com água... e silêncio. Nada mais. Não havia janelas, nem relógios. Apenas o eco da sua respiração acelerada.
Isso não é um sequestro qualquer.
O estômago encolheu. Fechou os punhos. O medo era real. Mas também a raiva.
—Quando eu o vir... —murmurou entre os dentes—, vou cuspir na cara dele. Seja quem for. Vou fazê-lo sangrar.
O clique da fechadura a interrompeu.
A porta se abriu.
Um homem entrou. Alto, ombros largos. Camiseta preta justa. Músculos tensos como cordas. Seu rosto era uma máscara de mármore. Sem emoção. Sem pressa.
Svetlana recuou imediatamente. Costas contra a parede. O coração batendo com força brutal.
Ele deixou um prato sobre a mesa e foi embora sem olhar para ela, fechando a porta com um golpe seco que reverberou em seus ossos.
Ela ficou ali, ofegante, como uma fera encurralada.
O prato continha pão, queijo, fruta. Comida simples. Quase terna. Mas aos seus olhos era veneno disfarçado.
—Vão se foder! —gritou, jogando a bandeja contra a porta. O metal ecoou, o pão rolou pelo chão como se também quisesse fugir.
Lágrimas quentes turvaram sua visão. A raiva a consumia, mas o medo se infiltrava por cada fissura.
E então, a voz.
Uma voz masculina, grave, tingida por um sotaque estrangeiro. Saiu de um alto-falante invisível, e seu tom era como uma faca deslizando pela garganta.
—Chega de gritar. Ninguém vai vir te ajudar. Você está muito longe de casa, russa.
Svetlana ergueu o olhar. Uma câmera girava lentamente no teto, apontando para ela como o olho de um deus cruel.
—Quem é você? O que querem de mim? —rugiu entre soluços, a voz se partindo em pedaços.
A única resposta foi silêncio. O zumbido do motor. A vibração constante sob seus pés.
Então ela entendeu.
Não era um quarto.
Era um avião.
Sua mente conectou cada sensação: a pressão nos ouvidos, o ar reciclado, o leve balanço.
—Estão me tirando do país —sussurrou, em russo, tremendo. Deixou-se cair no chão, abraçando os joelhos.—Por que eu?
Mas ninguém respondeu.
Nem a câmera.
Nem o alto-falante.
Nem Deus.
Apenas o som leve... do gás. Uma fumaça branca começou a infiltrar-se sob a porta. Espessa. Adocicada.
—Não... não de novo... —ofegou, tentando se levantar. Mas suas pernas não obedeciam mais. Os olhos ardendo.
O mundo girou.
As luzes se apagaram.
E antes de afundar na escuridão, só pôde pensar em uma coisa:
«Vou vê-los de novo? A Anya? A mamãe? Ao papai?».