O Beijo Acidental
Acordei com o barulho do sino do convento, mas não porque ele tivesse me despertado de verdade — eu já estava acordada havia séculos (ou pelo menos parecia). Encostada na janela do dormitório, observava a chuva fina caindo no pátio e pensava: sério, quem inventou que a vida de freira era emocionante?
— Bom dia, mundo! — exclamei, espreguiçando.
O gesto, claro, derrubou um cálice de água. Ótimo começo de dia.
As outras meninas suspiraram. Sempre suspiram. Sempre. Eu sobrevivia rindo até da minha própria desgraça.
—Lua, você não vai para a reza? uma das meninas que dormia do lado da minha cama perguntou.
— Não quero ir.
— Você sabe que as irmãs são muito rígidas- ela disse preocupada.
— Não se preocupe! deixa que com elas eu me entendo, agora vai você- Não sabendo ela que meu plano era fugir dali, eu só sei de uma coisa...minha vocação não é ser freira, não que isso seja um problema meu Deus.
— Lua! — ralhou a irmã superiora.
Lua narrando
Meu nome é Lua. Desde que me entendo por gente, vivi no convento. Quer dizer… “me entendo por gente” é modo de falar, porque eu nem sei de onde vim de verdade. Só sei que, numa noite de chuva, bateram na porta do convento e lá estava eu, enfiada dentro de um cesto. Pois é. Nada glamuroso. Cresci cercada de rezas, silêncio e regras chatas. E, sinceramente? Nunca fui boa em seguir nenhuma delas. Sempre dava um jeito de escapar, explorar a cidade, sentir o mundo além daqueles muros. Claro, sempre voltava para os castigos. (Já dava pra carimbar uma carteirinha de “detenta vitalícia”).
Mas aí veio a parte que ninguém te conta: o convento não era só rezas e castigos. Era… assustador.
As meninas sumiam. Uma noite estavam lá, na cama ao lado da minha, e na manhã seguinte… nada. As freiras inventavam desculpas, mas eu não nasci ontem. Descobri que elas eram vendidas. Sim, vendidas, e a menina que dormia ao lado da minha cama simplesmente sumiu, foi aí que eu resolvi bancar a detetive e acabei descobrindo uma lista de nomes e adivinha quem estava na lista? Isso mesmo: euzinha aqui.
Agora, me diz, o que você faria?
Ficaria de braços cruzados, esperando o momento de ser levada, ou correria?
Exato. Eu corri.
Chovia, trovejava, e eu agarrada no meu crucifixo, repetindo baixinho:
— O sangue de Jesus tem poder… o sangue de Jesus tem poder…
Era isso ou desmaiar de medo.
E no meio da fuga, encontrei uma mansão. Enorme, silenciosa, com portas que mais pareciam cochichar: “não entre”.
E eu pensei:
“Lua, você vai mesmo entrar aí? Essa casa parece a cada do Diabo!”
E no mesmo instante respondi pra mim mesma.
“Pois é. Mas entre o convento e o Diabo, eu fico com o Diabo.”
Entrei.
O piso rangeu sob meus pés, teias de aranha balançaram, e no fundo havia um caixão escuro, trancado por correntes enferrujadas. Cada instinto gritava para correr, mas a curiosidade venceu. Abri a tampa um relâmpago iluminou o quarto. Assustada, tropecei e… caí para frente.
Meus lábios encostaram nos dele, da pessoa que estava dentro do caixão, ele abriu os olhos. Negros. Intensos. Como se atravessassem minha alma, e mesmo assim continuamos ali com nossas bocas coladas até que afastei-me num pulo, o coração martelando. Ele se ergueu. Alto, pálido, imponente. E me observava em silêncio.
— Claro, Lua. Parabéns. Você podia tropeçar em qualquer canto do mundo… e escolheu tropeçar em cima do Diabo — pensei, em tom de desespero.
— Que criatura é você? — a voz grave dele ecoou.
— Quem permitiu que um ser tão desprezível invadisse minha nobre mansão ? — ele arqueou a sobrancelha, a voz carregada de julgamento e autoridade.
— Nobre mansão? Tá mais pra espelunca! — rebati, gesticulando nervosa. — E peraí… você me chamou de ser desprezível?! Quem você pensa que é?!
Ele apenas me observava, braços cruzados, olhos negros atravessando minha alma. O contraste entre meu desespero e a calma dele me deixava à beira da histeria.
— Eu só queria me abrigar da chuva! — explodi, quase tropeçando numa cadeira.
Ele suspirou, impaciente.
— Você invadiu meu local de descanso eterno… por causa da chuva?
— Eu não invadi nada! — retruquei, exaltada. — Eu só entrei!
— Ah, não? — arqueou a sobrancelha, inclinando a cabeça com aquele ar julgador. — Então você simplesmente caiu em cima de mim, abriu meu caixão… e ainda teve a ousadia de me beijar.
Meu queixo caiu.
— B-b-beijei?! — gaguejei, quase engasgando com as próprias palavras. — Eu não beijei ninguém! Foi… acidente!
Ele manteve o olhar sério, mas havia algo ali, como se estivesse se divertindo com minha vergonha.
— Você tem um talento raro para transformar o silêncio de séculos em caos absoluto — murmurou, a voz grave e calma, carregada de autoridade.
— Quem você pensa que é pra falar comigo desse jeito? fica me chamando de ser desprezível e você que é um morto vivo, nunca vi alguém dormir em um caixão.
— Mo...morto vivo? sua Humana mal educada e estérica como ousar falar comigo dessa forma.
— Mal educada? você nem me conhece, você é...analisei ele de cima abaixo e caramba, meu Deus do céu.
— Morto vivo! você é o quê? o diabo ou um Vampiro porque que eu saiba quem dorme em caixão é Vampiro segundo o livro de romance que li. Espera uma mansão velha, um quarto com um caixão e um homem dormindo dentro, não acredito...ele é um Vampiro?
Parabéns, Lua — pensei. — Você tropeçou no caixão do Vampiro, caiu em cima dele, beijou o sujeito… e agora ele te olha como se fosse a primeira coisa interessante que surgiu em séculos. Palmas pra você.
O ar ficou pesado. Ele ergueu lentamente o rosto, e seus olhos se fixaram em mim de forma hipnótica. Um frio percorreu minha espinha.
Então, de repente, os olhos dele ficaram vermelhos, brilhando como chamas na penumbra.
— Sim… eu sou um vampiro — disse ele, a voz grave agora carregada de poder e desejo — e já que você me despertou, por que não se entrega a mim? Ele disse se aproximando de mim olhando fixamente nos meus olhos.
— Se entrava a mim, a mim...a mim- ele repetia e seus olhos brilhavam.
— Espera! Você tá tentando me hipnotizar?! — exclamei, balançando a cabeça. — Olha, sério… que clichê!
Até que ele foi se aproximando de mim e num impulso, acertei um tapa no peito dele.
Ele congelou, incrédulo.
— Você… me atacou?
— Sim! — respondi, ainda erguendo o crucifixo como se fosse uma espada. — E faria de novo, se fosse preciso!
O silêncio se estendeu. Então, devagar, o canto da boca dele se curvou. Não em raiva… mas em interesse.
E foi nesse momento que percebi: eu devia estar morta. Mas, pela primeira vez em séculos, ele parecia vivo.
E pior… interessado em mim.
Antes que eu pudesse me recompor, algo enorme atravessou o quarto: um rato do tamanho de um cachorro, isso mesmo! um rato enorme apareceu e pior...vinha em minha direção.
— Aaaah! — berrei, pulando em cima dele e derrubando-o no chão.
O rato escalava minhas pernas, depois meu cabelo. Eu gritava, chorava, rezava, e praticamente esmagava o vampiro embaixo de mim.
Ele, em contrapartida, apenas… observava. Como se estivesse assistindo a melhor comédia dos séculos.
Hoje é meu dia de azar primeiro beijo… é isso… e claro que tinha que ser com um morto. Perfeito, Lua, perfeito — pensei, e agora tem um rato enorme escalando meu corpo. Quando o bicho se enroscou no meu cabelo, ele finalmente se moveu. Estalou os dedos — e o rato desapareceu.
Engoli seco.
— Ele realmente é o Diabo…vampiro isso tudo misturado.
Ele massageou a têmpora, como se eu fosse a maior dor de cabeça da eternidade.
— Por que você grita tanto? Ele disse.
Ele veio andando de uma forma tão ameaçadora.
— Como você ousa me bater, e se jogar em cima de mim feito uma louca?