Aisha chegou à mansão com o coração em chamas. Correu direto para o escritório do pai faria o que ele quisesse, se ajoelharia, lamberia o chão, qualquer coisa para proteger Vherla.
Empurrou a porta com força. O homem estava ali, limpando as mãos com um lenço branco. Ela soube imediatamente: era sangue.
Ele sorriu.
— Aisha, fico feliz que chegou.
Desgraçado. Aquele sorriso parecia o de um demônio satisfeito.
— Pai, por favor… eu te imploro. Tire a Vherla daquele lugar.
Aisha rezava para que a amiga estivesse viva, que tivesse sido levada apenas para o mesmo depósito onde seu pai punia os que o desobedeciam. Ela conhecia aquele lugar. Já havia sido quebrada lá.
— Assim que eu gosto, Aisha. Bem submissa. É isso que espero de você.
— Pai, eu faço o que quiser. Qualquer coisa.
— Cumpre o seu papel nesta família. Apenas isso. Mas não ache que vai terminar com palavras. Vá até a sala.
Ela estremeceu.
— Não… por favor.
— É isso ou mando a Vherla para você em pedaços.
O ar saiu dos pulmões. Aisha apenas acenou com a cabeça, obedecendo.
Abriu a porta do corredor e começou a caminhar. Ela conhecia cada pedra daquele percurso, era o caminho que levava ao inferno pessoal dela, onde o pai a trancava sempre que precisava lembrá-la do lugar dela no mundo.
O chão era áspero, difícil. Seus pés quase não respondiam. E, quando chegou ao anexo, o coração pareceu querer escapar da caixa torácica.
Homens armados guardavam a entrada. Não disseram nada. Apenas abriram passagem.
Ali estava o prédio que Aisha chamava de Inferno na Terra.
A porta de metal era pesada. Com as mãos trêmulas, empurrou até que cedeu. Um cheiro de sangue e sujeira tomou seu nariz e enfiou-se na garganta como uma faca fria.
O pai apareceu logo atrás.
— Boa menina. É assim que quero você. Ultimamente sua insolência vem passando dos limites. Eu só quero o seu bem.
Ela mordeu por dentro a vontade de chorar.
— Agora solte a Vherla. Eu fiz o que pediu.
— Ainda não.
— O que mais quer de mim?
— Obediência. Você nasceu para isso. Neste mundo, mulheres são moeda de troca. Sua irmã fugiu, e você sabe o destino que ela teve. Agora, cabe a você tomar o lugar dela.
Aisha baixou os olhos.
— Sim.
— Ótimo. Entre. Seu lugar é lá dentro.
Ela encarou a sala, o conhecido abismo que tantas vezes a engolira. O que seria daquela vez?
— Ajoelhe.
No chão, pequenas pedras se misturavam à terra. Quase invisíveis. Mas ela sabia o que aquilo significava.
— Pai… eu não quero.
— Se quer que aquela criada continue inteira, ajoelhe. Não me faça repetir.
Aisha desceu lentamente. Assim que o joelho tocou o chão, a dor explodiu. As pedras rasgaram a pele delicada, penetrando como espinhos de ferro.
Ele atirou uma Bíblia aos seus pés.
— Leia.
Seu pai era o pior tipo de homem: o que cometia atrocidades em nome de Deus.
A voz dela saiu tremida, falhando com a dor que subia pela perna.
— Colossenses 3:20… “Filhos, obedeçam a seus pais em tudo, pois isso agrada ao Senhor.”
— Ficará aqui até cumprir os mandamentos, Aisha. Enquanto isso, vou descobrir como minha doce filha fugiu da minha casa como um ladrão.
Ele se aproximou, passou a mão pelos cabelos prateados dela como se fosse carinho.
Aisha continuou repetindo o versículo. Não era a primeira vez, sempre que ela o afrontava, ele a trazia ali. Vherla sempre dizia para ela controlar o temperamento. Mas agora, Vherla podia estar ferida. Ou morta.
O pai deixou a sala. Assim que a porta se fechou, Aisha se levantou com dificuldade. Os joelhos sangravam em filetes grossos, manchando a pele branca. Aquilo demoraria a sarar.
Encostou-se à parede fria e abraçou a Bíblia contra o peito.
— Por quê, Deus? Por que eu tenho que passar por isso?
Queria uma saída daquele inferno. Queria seguir os passos de Cassandra. Queria viver.
Horas se arrastaram. A luz apagou-se. O ambiente ficou úmido, sufocante. Ela sentiu o corpo falhar, sem água, sem comida, frágil, prestes a desabar.
Passos ecoaram.
Provavelmente o pai, como sempre. Torturava, depois vinha como salvador oferecer a porta de saída. Sem culpa. Sempre culpando Aisha.
A porta se abriu. Ela encolheu o corpo, pequena no canto.
— Pelo visto, pensou no que eu disse. Está na hora de ir. Venha.
Ele estendeu a mão. Se recusasse, voltaria para o chão cheio de pedras.
Ela aceitou. Os joelhos queimaram como álcool em ferida aberta.
Voltaram para a mansão em silêncio. Aisha percebeu o brilho satisfeito nos olhos castanhos do pai, aquela destruição o agradava.
Na porta do quarto dela, ele simplesmente a soltou, como um saco de batatas.
Com esforço, ela entrou e se jogou na cama. Cada parte do corpo doía como se tivesse sido pisoteada por horas.
A porta abriu novamente.
Vherla apareceu, chorando, e correu até ela.
— Senhorita, eu estava desesperada! Pensei que ele tivesse…
Aisha analisou o corpo da amiga. Nenhum roxo. Nenhum arranhão. Nada.
— Eu achei que o papai tivesse feito algo com você.
— Não, senhorita. Ele só me trancou no quarto. Usou meu celular para te ligar.
Aisha sentiu o chão desaparecer. O pai mentiu. Manipulou. Só para vê-la destruída.
— Seus joelhos — Vherla sussurrou, horrorizada.
— Não se preocupe. Vai passar.
Puxou o lençol, escondendo o sangue.
Algo nela apertou. Era estranho, o pai nunca deixava nada escapar. Nunca havia clemência. Mas Vherla estava perfeita… perfeita demais.
— Vherla, estou cansada.
— Claro, senhorita. Vou deixar você descansar.
Aisha ficou sozinha. Cobriu o rosto com as mãos. O corpo tremia. Não queria acreditar que sua amiga pudesse estar envolvida. Era impossível.
Mas naquele mundo, nada era realmente bom.
Nada.