Natan não respondeu, mas sua expressão endureceu, revelando uma teimosia que Kael reconheceu em si mesmo. A discussão continuou, e Kael sentiu um misto de desconforto e fascínio. Aquele mundo, tão diferente do seu, revelava camadas de complexidade e sofrimento que ele, em sua bolha de privilégio, raramente tinha a chance de vislumbrar. Ele não era mais apenas o magnata; era um observador forçado a testemunhar a realidade nua e crua de uma vida que existia muito além de seus relatórios financeiros.
Cássia e Natan continuaram a discutir por mais alguns minutos, com a voz dela subindo e descendo entre o desespero e a raiva, a dele, um lamento constante de tédio e frustração. De repente, Cássia olhou para o céu, um sol tímido despontando no horizonte.
— Chega, Natan! Chega! Eu preciso ir trabalhar. Se eu não for, eles me mandam embora. E aí sim, a gente vai ver o que é passar fome, passar necessidade de verdade. — Ela disse, com a voz embargada, mas com uma determinação.
— Você fica aqui, tenta arrumar o que puder. Eu volto assim que conseguir. Atende as pessoas direito, se eu receber uma reclamação, você vai ver só.
Com um suspiro pesado, Cássia pegou uma mochila, se virou e, sem olhar para Kael, começou a caminhar em direção à pousada, a figura curvada pelo cansaço e pela preocupação. Kael a observou, a amargura habitual em seu semblante suavizada por uma nova camada de reflexão. A dor em seu dedo era um lembrete físico de sua própria vulnerabilidade, algo que ele raramente experimentava.
Natan ficou ali, chutando a areia, as banquetas, resmungando em voz baixa. Kael, vendo a oportunidade, se aproximou.
— Ei, Natan. Sua irmã está certa. É melhor começar a limpar tudo. Eu posso ajudar.
O adolescente o olhou com desconfiança.
— Ajudar? Nem te conheço. Quem é você?
— Eu estava aqui, ajudando as pessoas. Sou o Kael, colega dos caras do surf. — Kael disse, com uma determinação que surpreendeu a si mesmo.
— Martelei o dedo, ajudando com as tábuas ali. E agora que o dedo está com gelo, talvez eu seja menos desastrado. Ainda caí da escada.
Relutante, Natan aceitou. As horas seguintes foram uma surpresa para Kael. Ele, o magnata que liderava reuniões de diretoria e fechava negócios de bilhões, estava ali, sob o sol forte da ilha, movendo escombros, catando madeira, e tentando, com alguma dificuldade, pregar tábuas. Natan, a princípio ressabiado, aos poucos foi se abrindo. O ajudou a reparar o teto, juntos foram organizando tudo.
Em um momento de descanso, enquanto jogavam os lixos, Natan desabafou, sem nem perceber a quem estava falando.
— Minha irmã é muito esforçada, nossa mãe é drogada, nunca cuidou da gente. Cássia trabalha demais, mas não adianta nada. Ela vive para esse quiosque falido e para faxinar a pousada. Ser humilhada pelos ricos, eles olham a gente como se fôssemos merda. E ela diz que ama morar aqui.
Kael o incentivou.
— E ela é feliz? Casada?
Natan deu uma risada sem humor.
— Feliz? Minha irmã não sabe o que é isso, eu acho. Ela vive para trabalhar. Cuida da nossa avó, que é doente, e de mim. Não tem tempo para nada. Nem para ela mesma. Desde que meu pai foi embora, ela assumiu a casa, nossa mãe sumiu.
— Ela não tem sonhos? — Kael perguntou, com a imagem da própria ex, com seus sonhos e ambições, vindo à mente.
— Sonhos? Acho que não. — Natan balançou a cabeça.
— Ela só pensa em pagar as contas e não deixar a gente passar necessidade. Diversão? Esquece. Ela não vai a festas, não tem hobby, não sai com os amigos. E namorados? Ah, isso é lenda. Ela diz que não tem tempo e que nenhum homem presta. Ela nunca amou.
Kael sentiu um aperto no peito, um eco de sua própria solidão, mas também uma nova perspectiva. Cássia, com toda a sua aspereza e a vida difícil, era um contraste gritante com as mulheres com quem ele havia se relacionado. Ela o conheceu sem pedir nada, não o bajulou, não se importava com seu status ou dinheiro, por não saber da realidade. Ela era genuína, e a infelicidade dela, tão intensa, era um espelho da própria amargura que Kael carregava.
Horas se passaram no quiosque, e o herdeiro, pela primeira vez em muito tempo, estava empenhado em algo que não era puramente lucrativo, algo que o conectava a uma realidade brutalmente honesta e humanamente complexa.
Enquanto Kael e Natan suavam no quiosque, Cássia passava o dia imersa na rotina exaustiva da pousada. O trabalho de faxineira, já pesado em dias normais, tornara-se ainda mais insalubre após a tempestade. Ela passou horas na lavanderia úmida, saiu com cada fibra de seu corpo doendo com o esforço repetitivo de lavar e passar. A gerência, como de costume, não ofereceu sequer uma palavra de agradecimento, apenas a cobrança silenciosa por mais e mais trabalho.
A noite caiu, e a ilha, ainda sem internet ou telefonia, parecia ter voltado no tempo. As luzes simplórias iluminavam suavemente algumas áreas, e um som de pagode, vibrante e contagiante, começou a ecoar da orla da praia. Os hóspedes, e até alguns dos funcionários, aproveitavam a desconexão forçada para se divertir à moda antiga. Sem telas para distrair, as pessoas se reuniam, conversavam, riam e dançavam com uma liberdade que havia sido esquecida.
No final do expediente, Cássia caminhou para o alojamento dos funcionários, decidida a não ceder completamente ao cansaço. Quando reapareceu na beira da praia, a transformação era notável. Cássia era uma mulher de beleza natural, o cabelo molhado agora solto emoldurava seu rosto em um halo de beleza selvagem. Passou rímel nos olhos, que contrastava lindamente com seu tom de pele e olhos verdes. Ela vestia um shorts jeans curto e um cropped pink tomara que caia, o look revelando suas pernas torneadas. Ela estava de tênis, ter um toque de glamour era algo que raramente se permitia. Não estava arrumada, mas estava radiante. A fadiga do dia parecia ter se dissipado, substituída por uma energia cativante.
Cássia saiu da pousada exausta, com o corpo moído, mas uma centelha de algo novo a impulsionava. Talvez fosse a música vinda do pagode, talvez a atmosfera de espontaneidade no ar, ou talvez a conversa com Natan, que a deixou se sentindo mal o dia todo. Seus olhos, antes tão cheios de cansaço e frustração, agora brilhavam com um misto de desafio e uma alegria recém-descoberta. Cássia, a faxineira exausta e a mulher amargurada do quiosque, havia se transformado em uma figura deslumbrante, pronta para se entregar à música e à liberdade da noite, sem se preocupar com as obrigações que a aguardavam no dia seguinte.