Mundo de ficçãoIniciar sessãoEle se afastou da poltrona onde estivera sentado a noite toda, espreguiçando-se com um suspiro exagerado, o som de seus ossos estalando no silêncio da manhã.
Ela desviou o olhar, procurando algo ao redor.
— Meu telefone celular não te enlouqueceu? — perguntou, movendo alguns papéis sobre a mesa. — Deve ter apitado a noite inteira. E, considerando o sumiço, devem estar nos procurando como loucos...
— Ah, o seu celular... — disse com um leve aceno, apontando para a mesinha ao lado da cama. O aparelho estava lá, intacto, sobre um lenço dobrado com cuidado. — Eu dei um “jeitinho”. Silenciei e deixei no modo avião. Achei melhor não acordar você cada vez que alguém decidisse entrar em pânico.
Em seguida, caminhou até a janela e puxou levemente a cortina. A luz da tarde iluminou metade de seu rosto, destacando os olhos azuis brilhantes que agora a observavam de relance.
— Você tem razão. Devem estar enlouquecendo atrás de nós — sua expressão ficou um pouco mais séria, mas sem perder o charme despreocupado. — Quer que eu cuide disso? Posso levar você até a direção... ou sumir com a gente por mais algumas horas — um sorriso preguiçoso se formou novamente. — Admito, gostei da paz que tive essa noite. Você dormindo foi a primeira vez que o mundo pareceu... calmo.
— Também me senti bem essa noite... foi muito acolhedor. — disse ela, um tanto constrangida, desviando o olhar.
Pegou o celular sobre a mesa — a tela acendeu, revelando cento e vinte e sete chamadas não atendidas.
— Ah... minha nossa! — exclamou, arregalando os olhos. — Espero que o meu sumiço não tenha causado nenhum infarto por aí — comentou em tom leve, mas com um toque de preocupação genuína. Em seguida, notou Voss encostado à janela e, movida pela curiosidade, aproximou-se para observar a vista.
— Parece um lugar tranquilo... — murmurou, observando o pátio e o movimento dos alunos ao longe. — Há muitos estudantes aqui.
Então a consciência da situação a atingiu: estava lado a lado com um homem solteiro, à janela do dormitório dele, à plena luz do dia.
A expressão dela se contraiu brevemente. Fingindo naturalidade, deu dois passos para o lado, saindo discretamente do campo de visão da janela.
— Senhor Voss... — começou, tentando soar calma. — Poderia verificar se o corredor está vazio?
Fez uma pausa, a voz quase tropeçando. — Vai ser um tanto... estranho, se sairmos juntos do quarto e alguém nos vir, não acha?
Eiran não conteve uma risada baixa, quase um suspiro divertido, ao perceber o jeito súbito com que ela se afastou da janela. Ele se virou devagar, o corpo ainda relaxado, mas o olhar claramente se divertindo com o embaraço dela.
— Hm... — ele cruzou os braços e inclinou um pouco a cabeça, como quem avalia uma situação “complexa”. — Realmente, professora Yaskara, as más línguas por aqui são mais rápidas do que desastres de nível especial. — O tom foi leve, mas o sorriso denunciava o quanto ele achava tudo aquilo engraçado.
Deu alguns passos até ela, parando a uma distância respeitosa — mas próxima o suficiente para que a diferença de altura entre eles ficasse evidente.
— Então você quer que eu... ele gesticulou com as mãos, fazendo aspas no ar “verifique se o campo está limpo”? — um estalar de dedos e, por um instante, o ar pareceu ondular diante da porta. Ele inclinou a cabeça, ouvindo algo invisível. — Ninguém nos espera no corredor. Nem mesmo os curiosos. — sorriu, satisfeito. — Acho que podemos sair sem causar escândalos.
Ele então deu um passo para o lado, segurando a maçaneta com um gesto teatral e se curvando levemente, num ato exageradamente cortês.
— Depois de você, professora. Prometo que não deixarei que os rumores comecem antes do jantar. — Seus olhos azuis brilharam com malícia contida. — A não ser, claro, que você queira que pensem que passamos a noite juntos.
Ela ignorou sua última provocação, apenas existindo com sua postura firme e frieza elegante. Enquanto saiam do quarto para o corredor ela sentiu falta de algo — Ah! Você viu a minha mala?
Ele ajeitou os óculos escuros de lentes arredondadas — o reflexo suave ocultou-lhe o olhar por um instante — e, com a outra mão, balançou a mala rosada como se fosse um troféu.
— Procurando isto? — disse com aquele sorriso brincalhão. — Achei que fosse parte da decoração do meu quarto, combina com o ambiente.
Yaskara suspirou com um meio sorriso, aliviada, e pegou a mala das mãos dele. Os dois seguiram lado a lado pelos corredores de madeira polida. O som distante de estudantes treinando ecoava do pátio principal. Ele a olhou de soslaio pensando: “Ela é diferente… e muito mais interessante do que imaginei. Não é o tipo que se quebra fácil. Mas por que eu quero ver até onde ela aguenta?”
Após chegarem ao pátio central.
— Bem-vinda oficialmente a Academia Arcana de Estudos Etéricos de São Paulo — anunciou Voss, abrindo os braços num gesto grandioso. — Aqui é onde o talento e a imprudência se encontram para criar catástrofes com estilo.
Ao passarem pelo jardim, alguns alunos cochicharam discretamente, curiosos com a mulher elegante ao lado do famoso professor Voss. Ele, claro, fez questão de acenar como se estivesse desfilando numa passarela.
— Ignore os olhares. Eles não estão acostumados com alguém que parece ter mais compostura do que eu — comentou em tom leve, abrindo a porta da coordenação.
Lá dentro, Gabriel Rocha — o coordenador responsável pelas designações de missões e autorizações externas da escola — levantou os olhos dos papéis, parecendo já exausto antes mesmo de o dia começar.
— Voss... o que aprontou agora?
— Nada! — respondeu ele com falsa inocência. — Só trouxe a nova professora pessoalmente. A “professora Yaskara Bohr”.
Gabriel olhou por cima dos óculos para ela, reconhecendo o nome no mar de documentos sobre sua mesa.
— Ah, sim. A transferência da organização especial... temos vários papéis pendentes, mas tudo certo para o início das aulas. Seu dormitório está na Ala Leste, quarto 12 e sua turma te espera depois das 13h na sala 322 pavilhão A. — abriu a gaveta pegando a chave numerada do dormitório e colocou sobre a mesa.
Eiran se apoiou no balcão, girando a chave entre os dedos antes de entregá-la a Yaskara.
— Ala Leste, hein? Boa localização. Longe o bastante para não ouvir meus alunos gritando e perto o suficiente para ouvir se eu fizer algo brilhante — provocou, sorrindo.
— Há também um café logo abaixo dos dormitórios, se quiser comer algo antes de arrumar suas coisas — acrescentou Gabriel.
Voss inclinou o rosto para ela, num tom quase conspiratório:
— O café daqui é decente, mas recomendo o da doutora Liza Soares. Se quiser sobreviver ao primeiro dia, comece com uma boa dose de cafeína.
Enquanto saíam da coordenação, Yaskara deixou escapar uma risada contida. Aproximou-se um pouco de Voss e comentou em tom leve:
— É interessante ver como você é... adorado pela administração.
Ele respondeu com uma risada baixa, as mãos nos bolsos e o andar despreocupado, enquanto deixavam a sala.
— “Adorado” é uma palavra forte, professora Yaskara. — comentou em tom teatral. — Prefiro pensar que eles apenas... toleram meu brilho. Vai ser difícil competir com alguém que faz tudo com perfeição, entende?
Virou o rosto em direção a ela, o sorriso torto brincando nos lábios.
— Tenho certeza de que você vai roubar um pouco dos holofotes agora. A administração adora quem fala pouco e faz muito. — fez um gesto breve com a cabeça, analisando-a de relance. — E você parece exatamente o tipo eficiente que eles tentam me fazer ser há anos.
Descendo a escada principal, em direção ao corredor que levava à ala dos dormitórios, completou com um toque de sarcasmo divertido:
— Aposto que, em uma semana, você vai ser o novo modelo de comportamento exemplar da escola. E então... vão me mandar “aprender com a professora Yaskara”.
Levou a mão ao peito, fingindo indignação.
— Uma tragédia institucional.
Ela arqueou uma sobrancelha, o olhar malicioso cintilando por um instante.
— Não se preocupe tanto, seu posto é inalcançável. E sobre as outras coisas, o senhor já não tem mais conserto, não é? — disse, com um sorriso breve e provocativo, antes de subir os degraus que levavam de volta à ala superior.
Fez uma pequena pausa, voltando-se para ele com expressão sincera.
— Então... obrigada por tudo. E, se quiser aprender algo novo, pode me procurar. — O sorriso agora era genuíno. — Prometo ser uma boa professora.
Ele levou a mão ao queixo, fingindo pensar profundamente, enquanto o sorriso se abria preguiçoso e divertido.
— Hm… sem conserto, é? Acho que já ouvi isso umas mil vezes, mas nunca de uma professora tão convincente. — disse, inclinando levemente a cabeça.
Antes de sair, ele deu um último passo para trás, o sorriso ainda no rosto.
— Pode deixar, professora Yaskara. Se eu aparecer pedindo aulas particulares, não diga que não avisei. — o tom era brincalhão, mas o olhar tinha um brilho genuíno de respeito.
Com um aceno descontraído, ele começou a se afastar pelo corredor.
— Ah, e não se atrase pro café da manhã, professora. Os velhotes ficam de mau humor quando alguém elegante chega depois deles.
Enquanto isso...
Na penumbra das torres do Conclave, as conversas não tinham leveza nem humor — apenas vozes veladas por protocolos e segredos.
No salão principal, magos e arquivistas se reuniam diante de um conjunto de documentos selados com cera roxa.
O mais recente deles trazia o selo da Torre do Véu e um título que poucos ousavam pronunciar em voz alta:
# RELATÓRIO CONCLAVISTA — CLASSIFICAÇÃO: SIGILO NÍVEL V
Documento nº 881-CV / Arquivo Torre do Véu
Assunto: O INCIDENTE DO HORIZONTE PARTIDO
Data de Registro: 14º Ciclo da 3ª Lua do Ano Etéreo 1274
Documento Complementar: Nº 388-B / Conclave Etéreo
Responsável de Campo: Arcanista Sábia Rutina Castro
Classificação: Restrita aos Círculos Superiores da Torre do Véu
Status: Concluído e lacrado
Sumário do Evento
Às 16:00h, durante uma manifestação anômala detectada sobre o setor oriental do Conclave, foi registrada a colisão direta entre dois Domínios Lendários:
Horizonte da Forma Silenciosa (Eiran Voss)
Fenda da Existência (Amaruq)
O impacto dimensional resultou em um corte transversal completo, partindo o corpo do Arquimago Lendário Eiran Voss em duas seções distintas, com perda temporária de coesão corporal e etérea.
A instabilidade dimensional fragmentou o espaço local, gerando anomalias vetoriais e pulsos etéreos equivalentes a uma catástrofe de Grau IX.
A reconstituição parcial da realidade foi concluída 28 segundos após o colapso, preservando os planos adjacentes.
Não houve perda de coesão global, porém a linha de causalidade local foi comprometida.
Interferência Externa
Durante a estabilização da área afetada, foram detectados resquícios de magia temporal não catalogados em nenhum registro ativo do Conclave.
As assinaturas correspondem a uma manifestação de Vontade Temporal pura, posteriormente identificada como pertencente à Arquimaga Yaskara Bohr, da família Bohr, conhecida por sua especialização em magias de fluxo e manipulação do tempo residual.
O envolvimento da agente externa estava autorizado em caráter excepcional, conforme acordo de contingência firmado com a Divisão de Defesa Etérea.
No entanto, a extensão de sua interferência superou todas as previsões teóricas, resultando na aniquilação parcial da assinatura vetorial de Amaruq e em um deslocamento temporal de 3,4 segundos no campo local.
III. Observações Pós-Operacionais
Durante o processo de contenção e estabilização da área:
O hospedeiro humano originalmente possuído pela Relíquia Echo Animae de Amaruq foi encontrado em estado de inconsciência profunda, sem sinais de corrupção etérea ou dano mental residual.
Após avaliação arcano-médica, constatou-se total reintegração da alma e ausência de fragmentos vetoriais, sugerindo que a expulsão do arquimago corrompido foi completa.
A relíquia lendária associada — Echo Animae de Amaruq — desapareceu integralmente do plano físico.
Leituras posteriores indicam que o artefato foi selado fora da linha de tempo, presumivelmente por intervenção direta da Arquimaga Yaskara Bohr, através de uma Bolha Temporal de Anulação.
O campo residual de Éter na área reforça a hipótese de extração cronológica total, tornando impossível qualquer rastreamento físico ou etéreo.
Indícios da presença anímica de Amaruq também desapareceram por completo.
A assinatura vetorial foi extinta, e não há registro de reverberação em planos adjacentes.
O Conclave, entretanto, mantém a hipótese de remanescências vetoriais latentes — pequenos ecos de Vontade que podem se reconstituir caso o selo temporal seja rompido.
Conclusões Técnicas
A intervenção de Yaskara Bohr impediu a desintegração completa de Eiran Voss e o colapso do campo de estabilidade do Éter.
O nível de poder manifestado pela Arquimaga é superior ao limite de contenção conhecido e permanece sem precedentes documentais.
Relatos de sobreviventes indicam que a Arquimaga foi responsável por regredir os afetados pelo incidente ao estado anterior ao impacto, restaurando corpos e mentes sem uso visível de canalização etérea.
O hospedeiro original da relíquia foi considerado clinicamente estável e liberado sob observação permanente do Conclave.
Recomendações do Conclave
Iniciar investigação formal sobre as atividades da família Bohr fora da jurisdição europeia.
Manter vigilância permanente sobre possíveis ressonâncias temporais residuais na área afetada.
Avaliar a real extensão da Vontade Temporal de Yaskara Bohr e determinar se suas habilidades representam risco potencial de colapso causal.
Atualizar o status da Relíquia Echo Animae de Amaruq para “Fora do Tempo / Objeto Irrecuperável”.
“O equilíbrio foi preservado, mas não por nossas mãos.”
— Arcanista Sábia Rutina Castro, 3ª Cadeira da Torre do Véu.







