O relógio marcava exatamente oito horas da manhã quando a porta de seu escritório se abriu com um leve toque. Ela entrou com passos firmes, postura ereta e um ar de profissionalismo que destoava — e ao mesmo tempo intrigava — qualquer expectativa.
Ele levantou os olhos do notebook, pronto para avaliar com frieza a escolha que sua mãe havia feito. Mas no instante em que seus olhos encontraram aquela figura, por um breve segundo, ele perdeu o foco. Terno pink. Blazer impecavelmente cortado, abraçando as curvas com elegância ousada. Saia na mesma tonalidade, ajustada com precisão. Blusa branca com pequenos botões pink que capturavam a luz, como pequenos pontos de insistência no detalhe. Brincos pink, anel pink. O batom? Pink. A maquiagem era discreta, mas o batom... aquele batom era um protesto contra qualquer tentativa de invisibilidade. Até mesmo as unhas, cuidadas e firmes no toque do tablet que ela segurava, exibiam a mesma tonalidade vibrante, como se declarassem ao mundo que ali não havia espaço para a neutralidade. "Meu Deus", ele pensou, forçando-se a manter a expressão impassível enquanto ela se aproximava. "O que eu posso esperar de uma pessoa dessas hoje?" Ela abriu a agenda, já se preparando para ditar os compromissos com clareza e precisão. Mas ele mal conseguia prestar atenção nas palavras. Estava demasiadamente ocupado tentando entender como aquela mulher podia ser ao mesmo tempo um escândalo de cor e um monumento de controle. A escolha era clara. E ela não estava ali para pedir permissão. — Com licença, senhor Bellini Ferraro — disse Nicola, com a postura impecável e um sorriso sereno. — Sua agenda, conforme solicitado. Ela caminhou até a mesa com passos seguros, o salto branco ecoando com leveza no piso de mármore. Entregou a ele uma cópia impressa da agenda diária e manteve-se à sua frente, respeitando a hierarquia, mas sem perder a altivez. — Dentro de trinta minutos, o senhor tem uma reunião com acionistas do grupo corporativo internacional — continuou ela, consultando o tablet. — Estarão presentes representantes da Alemanha, da Espanha e da Rússia. A sala de reuniões será preparada agora. Assim que tudo estiver pronto, virei pessoalmente chamá-lo. Ela saiu da sala antes que ele respondesse. “Pontual, clara e objetiva, nada de floreios, vamos ver se a eficiência acompanha a pose de boneca de porcelana.” — pensou Luchero, com o cenho levemente franzido, curioso e desconfiado. Preparativos Impecáveis Nicola seguiu seu próprio cronograma como uma orquestra sinfônica. Entrou na sala de reuniões, ajustou as poltronas ao redor da imensa mesa de vidro, verificou os cabos do projetor, sincronizou os arquivos em três idiomas no notebook acoplado à tela principal. Imprimiu pastas para cada representante e organizou tudo com etiquetas: Deutsch, Español, Русский. Com o telefone interno, contatou a copa: — Bom dia. Preciso que preparem café italiano, chá verde, água mineral e petiscos leves — queijos, uvas e biscoitos amanteigados — para sete pessoas. Entregar discretamente na sala de reuniões em quinze minutos, por favor. Tudo em bandejas com arranjo floral discreto. Luchero ajeitou a gravata com um leve suspiro. Havia algo de diferente no ar desde que aquela mulher atravessara a porta da sua empresa. E agora, diante de mais uma manhã atribulada com acionistas internacionais, ele decidiu fazer seu primeiro teste. — Senhorita Nicola… minha agenda, por favor — disse com a voz firme, mas o olhar curioso por trás dos cílios. Ela, que já estava de pé a poucos metros da mesa, se aproximou com passos suaves, sem nenhuma pressa, mantendo a postura impecável. Com o tablet em mãos, consultou rapidamente os dados. — Dentro de trinta minutos, o senhor tem uma reunião com um grupo de acionistas da Alemanha, da Espanha e da Rússia. Já estou providenciando tudo para o encontro — respondeu com voz doce, mas firme, como quem já fazia aquilo há anos. — Assim que a sala estiver pronta, eu volto para chamá-lo, senhor. Ela saiu da sala com a mesma suavidade com que entrou. Luchero a observou por alguns segundos. Os botões de rosa nos brincos ainda dançavam em leve balanço. O terno branco estampado com rosas parecia florescer sob a luz do escritório. “Impressionante”, pensou, “mas será que ela sustenta isso numa reunião de verdade?” Nicola não perdeu tempo. Com a eficiência de uma executiva experiente, imprimiu os relatórios prévios e os pacotes de apresentação em três idiomas. Anexou folhas de anotações e entregou tudo aos responsáveis pela logística da reunião, orientando sobre disposição dos lugares, materiais de apoio, e até mesmo a temperatura ambiente ideal para receber os convidados. Na copa, solicitou com educação que servissem chá de frutas, café italiano, água mineral com gás e petiscos refinados — queijo brie, tâmaras e biscoitos de parmesão artesanal. Cada detalhe era parte do cenário que ela estava desenhando para a reunião transcorrer impecavelmente. Vinte e cinco minutos depois, ela voltou à sala presidencial. — Senhor Luchero — anunciou com um leve sorriso —, a sala está preparada e os convidados já estão se acomodando. A reunião começa em cinco minutos. Ele assentiu, pegou seu paletó e a acompanhou. Mas ao abrir a porta da sala de reuniões, precisou conter o próprio espanto. A mesa estava perfeitamente organizada. Cada pasta com o nome do país correspondente, bandeiras em miniatura ao centro, o café ainda soltando fumaça em xícaras de porcelana. E ela… sentada ao seu lado, com um tablet em uma mão e um caderno elegante na outra. Quando todos estavam acomodados, Nicola se levantou discretamente e, com um sorriso profissional, iniciou a apresentação: — Guten Morgen. Ich begrüße Sie im Namen der Rosa Corporation. Der Präsident ist anwesend. (Bom dia. Dou as boas-vindas em nome da Rosa Corporation. O presidente está presente.) Virando-se então para os representantes espanhóis: — Buenos días. Es un honor recibirlos en nuestra sede. El presidente está aquí con nosotros. (Bom dia. É uma honra recebê-los em nossa sede. O presidente está aqui conosco.) E por fim, em russo: — Доброе утро. Добро пожаловать. Президент компании уже здесь. (Bom dia. Sejam bem-vindos. O presidente da empresa já está aqui.) Luchero ergueu discretamente as sobrancelhas, surpreso com a fluidez e a pronúncia perfeita de cada idioma. — Senhorita Nicola — murmurou ele, baixando o rosto para o dela —, diga que podem apresentar suas propostas, e agradeça pela presença deles em nome da diretoria. Ela acenou discretamente, levantou-se e, mais uma vez, em cada um dos três idiomas, traduziu com clareza, firmeza e charme. Ao final, sentou-se com um leve meneio de cabeça e digitou silenciosamente suas anotações em tempo real no tablet. Durante a reunião, Nicola passou documentos, apontou detalhes em gráficos projetados e organizou o tempo de cada fala. Nenhuma interrupção, nenhum ruído. Luchero apenas assistia, boquiaberto, cada movimento, como se estivesse diante de um concerto. E quando o último dos acionistas se retirou, elogiando a recepção e agradecendo à “rosa italiana” pela organização impecável, Luchero permaneceu imóvel por alguns segundos. Então, virou-se para ela e murmurou: — Senhorita Nicola… — Sim, senhor? — Isso foi um espetáculo. Ela apenas sorriu, guardando o tablet com precisão cirúrgica. — Obrigada, senhor. Eu fui muito bem treinada. — Sua madrinha a preparou para me surpreender? — Ela me preparou para ser excelente. O senhor é apenas um detalhe no meu caminho. A resposta foi elegante e audaciosa. Ele sustentou o olhar dela por um instante. Aqueles olhos verdes tinham brilho de desafio e doçura ao mesmo tempo. Um mistério perigoso. Mas ele gostava de perigos. E pela primeira vez em muitos anos… ele teve certeza de que a secretária dele não era apenas um ornamento cor de rosa. Era uma revolução perfumada entrando pela porta da frente. Depois, voltou à sala de Luchero. Bateu educadamente. — Senhor Bellini Ferraro, a reunião terá início em cinco minutos. Os representantes já estão na sala. Tudo pronto. Ele apenas assentiu, levantando-se e ajustando o terno. Quando entrou na sala de reuniões e viu tudo meticulosamente montado, com documentos organizados por idioma, os visitantes sentados confortavelmente e Nicola já posicionada à direita de sua cadeira com um tablet e um caderno de anotações ao alcance, seus olhos se estreitaram. “Ela fez tudo isso em vinte minutos?” O Show de Competência Começa Nicola levantou-se discretamente quando todos os presentes se acomodaram. Sua voz era suave, porém firme: — Guten Morgen. Der Präsident des Unternehmens ist jetzt anwesend. Wir danken Ihnen für Ihre Anwesenheit. Depois se virou para os outros: — Buenos días. El presidente de la empresa ya está presente. Agradecemos su presencia. E por fim, encarou os russos com postura solene: — Доброе утро. Президент компании присутствует. Мы благодарим вас за приезд. Houve um breve murmúrio de aprovação entre os empresários, e os olhares voltaram-se admirados para a secretária. Luchero quase sorriu, mas segurou. — Senhorita Nicola, por favor, traduza: “É uma honra recebê-los em nossa sede. Esperamos ouvir as propostas de cada grupo e avaliá-las com o máximo de atenção e imparcialidade.” Ela assentiu. — Es ist uns eine Ehre, Sie hier zu haben. Wir freuen uns auf Ihre Vorschläge und werden sie mit größter Aufmerksamkeit und Fairness prüfen. — Es un honor tenerlos aquí. Esperamos sus propuestas y las analizaremos con atención e imparcialidad. — Для нас честь принимать вас. Мы внимательно и беспристрастно рассмотрим ваши предложения. A Admiração Silenciosa Luchero passou a reunião inteiro observando cada gesto da secretária recém-chegada. Ela anotava tudo com agilidade. Quando os representantes falavam entre si, ela fazia breves observações e cochichava para ele o que diziam, sempre com discrição. Era como se ela fosse um tradutor simultâneo, uma sombra elegante e eficaz. “Se isso for o que ela chama de primeiro dia, como será no décimo?” Quando a reunião terminou, todos agradeceram efusivamente — inclusive aos cuidados da anfitriã. Um dos representantes espanhóis, um homem de cerca de 50 anos, aproximou-se dela: — Señorita Nicola, su profesionalismo es admirable. Espero que podamos trabajar juntos en muchas reuniones más. — Muchas gracias, señor Alvarez. Será un placer — respondeu ela com um leve aceno. Luchero agradeceu os convidados e os acompanhou até a saída. Assim que a porta se fechou, virou-se para Nicola e a analisou da cabeça aos pés por um segundo longo. — Me acompanhe. Entraram juntos em seu escritório. Ele fechou a porta. — Você é um espetáculo. Eu imaginei que você fosse apenas um capricho da minha mãe. — E eu sou — ela respondeu com um sorriso doce. — Mas não apenas isso. Ela me preparou para estar aqui. Eu sou sua filhada, senhor Luchero. E ela disse que devo ser tratada como uma pessoa da família. Ele respirou fundo, como se digerisse uma verdade inesperada. — Então se prepare para aguentar as exigências de um Luhcero. Aqui não há espaço para erros. — Eu não erro, senhor. Apenas aprendo rapidamente. Ele arqueou uma sobrancelha, um misto de provocação e admiração nos olhos. “Ela pode ser um problema, ou a solução que eu não sabia que precisava.” Luchero não conseguiu conter a curiosidade. Mesmo impactado com o desempenho da nova secretária — e, embora tivesse assistido à reunião inteiro como um CEO silencioso e estrategista — agora, dentro da própria sala, ele precisava compreender quem era aquela mulher que tomava a sala com a segurança de uma veterana e falava três idiomas com o tom de uma diplomata. — Senhorita Nicola, — disse ele, com as mãos entrelaçadas sobre a mesa. — Sente-se, por favor. Ela o fitou com firmeza, como quem conhece bem o peso dos olhares que tentam decifrá-la. Estava com os ombros retos, postura impecável, e um brilho discreto nos olhos que parecia desafiar qualquer julgamento. — Pois não, senhor Luchero? — Ontem, quando meus pais a apresentaram, a senhorita estava com um terninho branco, estampado com rosas em botão. A blusa era rosa-chá. Hoje, no seu primeiro dia de trabalho, veio de pink. Para uma reunião internacional. Isso é... curioso. Ela não desviou o olhar. Apenas ergueu ligeiramente o queixo, com um pequeno sorriso nos lábios. E então, falou com uma firmeza delicada que contrastava com a doçura da cor que usava. — E algo deu errado, senhor? Luchero arqueou uma sobrancelha. O tom dela não era insolente, mas também não era submisso. Era um tom que ele não estava acostumado a ouvir. Um tom que contava história. Ela continuou. — Quando eu vivia no orfanato, antes de conhecer a minha madrinha, as únicas roupas que eu tinha eram pretas, cinzas... ou, como chamávamos entre nós, cor de asfalto molhado. — Asfalto molhado? — ele repetiu, curioso. — Sim, senhor. — Ela assentiu. — É quando a roupa já foi tão usada por outras crianças, lavada mil vezes, que já perdeu a cor original e parece aquela mistura opaca entre sujeira, abandono e tentativa de dignidade. Luchero silenciou. — Naquele dia, as outras crianças estavam rindo de mim. Disseram que eu parecia um pneu velho. Porque, além da cor da roupa, eu... bem, como o senhor pode ver, eu nunca fui magra. Nunca tive o “padrão ideal” que as pessoas esperam. Sou o que hoje chamam de plus size. E naquela época, era só motivo de piada. Ela deu uma pausa, olhando para as próprias mãos, e depois voltou a encará-lo. — E então, a madrinha chegou. Ela se abaixou na minha altura. Olhou nos meus olhos. E no dia seguinte, ela voltou ao orfanato com um pijama cinza com pequenos botões cor-de-rosa. Foi a primeira coisa que ganhei que não era de alguém que morreu, ou doada sem alma. Aquilo era só meu. Com detalhe rosa. E ali, com cinco anos de idade, eu fiz uma promessa. Ela respirou fundo. — Eu disse a mim mesma que, por mais amarga que a vida fosse, eu encontraria uma forma de torná-la cor-de-rosa. E desde então, eu tenho cumprido isso. Não importa se estou sangrando por dentro, se a vida me arranca pedaços. Por fora... eu escolhi florescer. Luchero permaneceu em silêncio. Não de arrogância, mas de respeito. — Então, sim. Hoje estou de pink. E amanhã, senhor, eu posso vir de rosa bebê, ou fúcsia, ou salmão. Mas sempre haverá rosa em mim. Porque esse é o meu manifesto. Essa é minha maneira de dizer ao mundo que ele não me quebrou. — E... — ela sorriu, agora com ironia suave — se isso ofende o dress code da sua empresa, posso ir embora agora mesmo. Mas o senhor deve saber que, mesmo do lado de fora, minha essência vai continuar sendo cor-de-rosa. Ela se levantou devagar, pegou a pasta com os papéis que precisava revisar e completou: — O senhor deseja mais alguma coisa? Porque tenho documentos para redigir, atas para finalizar e dois contratos em inglês que precisam de revisão técnica. E, francamente, minhas flores não se plantam sozinhas. Ele ficou um segundo calado. Depois balançou levemente a cabeça, em sinal de rendição. — Não, senhorita Nicola. Pode, pode ir. Ela fez um leve aceno com a cabeça e saiu da sala com a mesma serenidade firme de quem carrega o próprio jardim no peito. Quando a porta se fechou atrás dela, Luchero recostou-se na cadeira e exalou um longo suspiro. Aquela mulher, era um vendaval de pétalas.