Parte 1
O céu estava encoberto, mas a lua cheia ainda conseguia rasgar o véu das nuvens com sua presença. Um brilho prateado e silencioso que parecia observar tudo. Julgar tudo. Hadassa acordou com um pressentimento pesado no peito. Ainda envolta nos lençóis da noite passada, o calor do corpo de Lee ainda impregnado em sua pele. Ele não estava mais ali. O travesseiro ao lado já havia esfriado. Por um segundo, pensou que talvez tudo tivesse sido um sonho. Uma fuga mental da pressão de sua alcatéia, do destino imposto, da guerra iminente. Mas então, ela moveu a blusa e viu a marca. Luz prateada, viva, correndo em espiral ao redor de sua costela, como uma tatuagem feita pela própria lua. Uma marca de união. Um laço entre lobos que ultrapassava os limites das alcateias. Um juramento silencioso entre duas almas. Ela se levantou, cada parte do corpo ainda sensível, como se tivesse sido reconfigurada. A sensação da posse dele ainda estava ali, misturada com o gosto amargo do medo. Porque ela sabia. Eles sabiam. O conselho já tinha conhecimento. Ela os sentiu observando. As sombras nas árvores. Os olhos refletindo a luz da lua. Sentinelas da alcatéia Luar Dourado. Hadassa não teve tempo de se preparar. Quando saiu da cabana, Elyan já estava ali com outros quatro guardiões. — Você desonrou o nome da sua linhagem — disse ele, voz fria, olhos dourados faiscando. — Você se deitou com o inimigo. Ela não negou. Não se encolheu. — Eu fiz o que meu coração mandou. Elyan avançou dois passos, mas Kaira, a anciã de olhos de prata e cabelos brancos como neve, ergueu a mão. — Tragam-na ao Círculo. Agora. --- O Círculo era um local sagrado da Alcatéia Luar Dourado, onde julgamentos eram realizados sob a presença simbólica da Lua. Um altar de pedra no centro, cercado por pilares esculpidos com runas antigas. Os membros mais antigos estavam ali — Kaira, Darek, Elyan e outros quatro anciãos. Uma multidão se reunia ao redor em silêncio tenso. Hadassa foi colocada no centro, os punhos atados com cordas de prata. Não para impedi-la de fugir — mas para rebaixá-la. Para lembrar-lhe de sua posição. Para mostrar ao resto da alcatéia que até mesmo a descendente do fundador poderia cair. — Hadassa do Luar Dourado — disse Kaira, a mais velha —, você foi vista com Lee, o Alfa da Noite. Está marcada com o laço de sangue e luz. Confirma isso diante de sua alcatéia? Ela olhou ao redor. Viu rostos conhecidos. Amigos de infância. Tios. Lobos que lutaram ao seu lado. Todos com expressões que misturavam choque e decepção. Mas ela não vacilou. — Sim. Eu o amo. Um murmúrio cortou a multidão. Elyan deu um passo à frente. — Isso é traição. Dormir com o inimigo é entregar-se à ruína. Quantos segredos você revelou em troca do prazer? — Nenhum. — Hadassa sustentou o olhar dele. — Eu não sou traidora. Sou livre. E amei com verdade. Kaira a observou com olhos sombrios. — O que sentiu foi desejo, não amor. A marca pode ser revertida. Ainda há tempo. Se você se submeter, se aceitar Elyan como seu companheiro, podemos curar essa ferida em sua alma. Hadassa sorriu, amargo. — A ferida seria fingir que eu não pertenço a Lee. Fingir que meu lobo não o escolheu. — O conselho pode decidir por você. — Então que decidam — disse ela, altiva. — Mas saibam que não me arrependo. --- Nos arredores da floresta, oculto pelas sombras, Lee observava tudo. Daron estava ao seu lado, nervoso. — É uma armadilha. Você entrar agora seria loucura. — Ela está sendo julgada por amar. — Ela quebrou o código. — Então que os códigos queimem. — Os olhos âmbar de Lee brilharam. — Se tocarem nela, haverá sangue. Daron segurou o braço do alfa. — Pense, Lee. Se invadir, será guerra aberta. Eles esperam isso. Querem que você ataque. Vão usar isso contra você e contra ela. Lee respirou fundo. As garras formadas, o peito arfando. — E se eu não fizer nada... ela será condenada. — Então que ela escolha. Se ela lutar por você, seu povo verá. E nós iremos atrás dela. Mas se ela se curvar... — Daron abaixou a voz. — Então ela nunca foi sua. Lee fechou os olhos por um segundo. Sentiu o laço em seu peito, pulsando. Sentia o medo dela, a dor, a coragem. Ela não havia se curvado. Ela era sua. E ele a protegeria. Mesmo que tivesse que rasgar o mundo ao meio. Parte 2 O silêncio do Círculo era opressor. Hadassa mantinha-se erguida diante dos anciãos, os olhos fixos na lua. Seu peito arfava, mas não era medo o que a dominava. Era revolta. Um sentimento antigo, pulsando sob sua pele como um trovão silencioso. Kaira deu um passo à frente, o cetro de prata em mãos. — Hadassa, última descendente direta da linhagem de Althar, fundador da Luar Dourado, está diante de um destino dividido. Você pode renunciar ao laço com Lee e aceitar o companheiro escolhido pelo conselho — Elyan. Se o fizer, restaurará a honra do seu nome e manterá a paz entre as alcateias. Se recusar, será exilada. Expulsa da matilha. Sem proteção. Sem direito à herança, à terra ou à forma de lobo. O impacto das palavras ecoou como um golpe. Expulsão. Ser renegada era pior que a morte para um lobo. Era perder a essência, a conexão com o clã, com as raízes. Tornar-se um espírito errante na floresta. Elyan se aproximou, impondo sua presença. Alto, de ombros largos e olhos frios. Ele se ajoelhou diante dela e, para surpresa de todos, pegou sua mão com gentileza. — Hadassa… sei que me rejeitou por anos. Mas a guerra pode ser evitada. Eu posso te proteger. Podemos unir nossas forças e deixar o que aconteceu com o Alfa da Noite para trás. Você terá uma vida segura. Será minha fêmea alfa. Terá filhos fortes. Um trono ao seu lado. Ela olhou nos olhos dele. E viu o vazio. — Você não me ama — sussurrou. — Só quer o que eu represento. — E Lee quer o quê? Ele é um animal. Um predador. Ele marca e destrói. — Ele me olhou… e me viu. — A voz dela agora era firme. — Não como herança, ou trono, ou poder. Ele viu minha alma. E me respeitou como loba. Como mulher. Elyan soltou sua mão com raiva. A multidão se agitou. Kaira ergueu o cetro. — Então escolha agora, Hadassa. Diante da lua, da alcatéia e do sangue de seus ancestrais. Renuncie ao laço ou seja exilada para sempre. O ar parou de se mover. Hadassa fechou os olhos. Sentiu o vento correr entre seus cabelos. O som das folhas. O bater do próprio coração. E a presença dele. Lee. Mesmo distante, ele estava ali. Ligado por algo maior que poder. Algo que nem mesmo o conselho poderia quebrar. Ela ergueu a cabeça e gritou: — Eu escolho Lee. Alfa da Noite. Meu companheiro. Meu lobo. Meu destino. Um rugido atravessou a clareira. — NÃO! Elyan se transformou diante de todos, seu corpo rasgando as roupas, os ossos moldando-se em um lobo dourado de olhos flamejantes. Ele avançou para ela, cego de ódio, tentando tomar o que não lhe pertencia. Mas não houve tempo. Antes que alcançasse Hadassa, um clarão rasgou a escuridão. Um rugido profundo ecoou da floresta. E então, ele apareceu. Lee. A transformação dele foi pura fúria. Um lobo colossal, de pelos negros como a noite, olhos âmbar faiscando com poder. Ele pulou sobre Elyan e os dois rolaram no centro do Círculo em um duelo de fúrias ancestrais. Garras cortando. Presas colidindo. O som de ossos batendo em pedra. A multidão recuou, chocada. Hadassa, com as mãos ainda presas, caiu de joelhos. — Não, Lee… Kaira se adiantou, mas foi interrompida por Daron, que chegou com outros três lobos da Noite. — Chega! — gritou ele. — Este julgamento foi forçado. Esta mulher tem o direito de amar quem quiser. Lee não cruzou o território. Ele veio pela alma que o escolheu. O chão tremia. Lee derrubou Elyan e cravou os dentes em seu ombro, subjugando-o. Kaira ergueu o cajado com força. — Basta! Uma energia prateada explodiu entre eles, separando os dois. O silêncio caiu, mais profundo que antes. — O sangue já foi derramado. O laço está selado. — Kaira olhou para Hadassa, que agora sangrava levemente nos pulsos. — Então que o Círculo ouça: Hadassa está exilada da Luar Dourado. Por escolha própria. Por seguir o coração e não o dever. Ela virou para Lee. — E você, Alfa da Noite… será caçado se cruzar nossos domínios novamente. Esta noite é o limite da sua presença. Leve sua companheira. E desapareça. Hadassa se pôs de pé, as correntes caindo. Lee se aproximou dela, agora em forma humana, o corpo ferido, os olhos suaves. — Você tem certeza? — sussurrou. Ela não hesitou. — Não há mais caminho de volta. Eu sou sua. Ele a envolveu nos braços. Os dois, nus diante da multidão, mostravam uma verdade que nenhum decreto poderia apagar: estavam ligados. Para sempre. E enquanto a lua sangrava no céu, a história deles começava de verdade. Parte 3 A floresta parecia respirar com eles. Cada passo de Hadassa e Lee ecoava como batidas do coração da terra. A noite estava viva — mas não era hostil. O som dos galhos, o sussurro das folhas, até o uivo distante dos lobos… tudo parecia diferente agora. Eles estavam livres. Ou, ao menos, fora dos limites que os acorrentavam. Lee mantinha o braço ao redor de Hadassa, protegendo-a enquanto avançavam por trilhas ocultas. Daron e os demais lobos da Noite haviam se dispersado para despistar rastros. O cheiro de sangue ainda o acompanhava. As feridas da luta contra Elyan doíam, mas o que realmente doía… era vê-la assim. Silenciosa. — Você está com frio? — perguntou, tirando o sobretudo e cobrindo seus ombros. Hadassa não respondeu de imediato. Seu olhar parecia distante, fixo nas sombras adiante. Mas quando parou de andar, o silêncio se rompeu: — Eu enterrei minha vida hoje. Lee parou ao lado dela, sentindo o peso da escolha que ela fizera. — Você a trocou por algo maior. Ela riu sem humor. — Maior? Talvez. Mas e se for uma loucura? E se eu estiver fugindo de mim mesma? E se amanhã eu acordar e me odiar por ter confiado em você? Lee não respondeu de imediato. Se aproximou devagar, tocando o queixo dela, fazendo com que seus olhos se encontrassem. — Eu não vou prometer que tudo será fácil. Mas vou estar ao seu lado em cada maldito desafio. — Ele abaixou a voz. — E se um dia você acordar se odiando… vou passar o resto da vida lembrando o quanto você é forte. O quanto é bela. O quanto é minha. A respiração dela vacilou. E então ele a beijou. Diferente do primeiro beijo. Agora era dor e promessa. Fome e redenção. Ela retribuiu com a mesma intensidade, como se o mundo ao redor deixasse de existir. --- Horas depois, encontraram abrigo em uma caverna escondida, protegida por raízes e rochas antigas. Lee acendeu uma pequena fogueira improvisada com folhas secas e musgo. A chama tremulava, projetando sombras dançantes nas paredes. Um silêncio confortável se instaurou entre eles. Hadassa se sentou próxima ao fogo. O calor tocando sua pele. Observava a marca em seu corpo — a espiral luminosa agora brilhava mais intensamente. — Ela está mudando — murmurou. — Porque você aceitou o laço. — Lee sentou-se ao lado dela. — Agora ele cresce dentro de você. Está se unindo ao meu. — Isso dói? Ele olhou para ela, um leve sorriso nos lábios. — Só quando você se afasta. Hadassa se inclinou, tocando o peito dele com a palma da mão. O coração batia forte sob sua pele quente. Ela deslizou os dedos devagar, como se redescobrisse aquele corpo que agora era seu lar. — Você me viu no julgamento? — sussurrou. — Desde o momento que você saiu da cabana. — Ele segurou a mão dela contra o peito. — Cada batida sua, eu senti daqui. Cada palavra… cada medo. Você foi mais forte do que todos ali. Hadassa abaixou o olhar. — Eu tremi por dentro. Quis gritar. Correr. Mas algo dentro de mim dizia: não se curve. Ele vai vir. Ele sempre vem. Lee puxou-a para seu colo, envolvendo-a. — Sempre. Ela apoiou a cabeça no ombro dele. Por minutos, não falaram nada. Apenas ficaram ali, respirando juntos. Existindo juntos. Até que Hadassa ergueu os olhos e sussurrou: — Me toca de novo. Mas desta vez… não com raiva. Nem pressa. Quero que seja amor. Lee a encarou, com a mesma seriedade que teria diante de uma guerra. — Vai ser. E então, a noite os cobriu com seu véu silencioso, enquanto suas peles se encontravam outra vez — não como predadores, mas como duas almas seladas sob o julgamento da lua. Parte 4 O luar filtrava-se pelas frestas da caverna, banhando os corpos nus de Hadassa e Lee com uma luz prateada. Ela se encontrava aninhada sobre o peito dele, os cabelos espalhados, a pele ainda quente e sensível após o amor feito com lentidão e reverência. Nenhuma palavra fora dita depois. Mas não era necessário. O laço que agora os unia era mais do que físico — era ancestral. Uma ligação forjada não apenas pelo desejo, mas pela escolha consciente de enfrentarem juntos o destino. Lee acariciava os cabelos dela com dedos suaves, o olhar fixo no teto da caverna, onde sombras dançavam como se os espíritos antigos os observassem. — Há algo que você precisa saber — disse ele, por fim, a voz grave, mas carregada de ternura. Hadassa ergueu-se lentamente, apoiando o queixo no peito dele. — Sobre o quê? — Sobre por que eu nunca aceitei uma companheira antes. Por que eu resisti ao chamado da Lua por tanto tempo. Ela se sentou, os lençóis improvisados escorrendo por seus ombros. Havia uma curiosidade nova em seu olhar. E algo mais… uma pontada de medo. — Estou ouvindo. Lee inspirou fundo. — Minha mãe era uma loba da sua alcateia. Da Luar Dourado. Hadassa o encarou, surpresa. — Como assim? — Foi por isso que meu pai foi exilado. Ele a sequestrou, sim… mas ela foi com ele por vontade própria. Só que a história foi distorcida, apagada. Ela morreu quando eu tinha dez anos. Eu só soube a verdade anos depois, quando encontrei os antigos registros dela, enterrados com sua pedra lunar. A respiração de Hadassa acelerou. — Então... você carrega sangue das duas alcateias. Lee assentiu. — E o conselho da sua alcatéia teme isso. Eles sabiam. Kaira sabe. É por isso que o laço entre nós é perigoso. Não só porque você me escolheu, mas porque nós dois representamos algo que eles não podem controlar: a possibilidade de união. E de poder. Hadassa levou as mãos à boca. — Por isso o julgamento foi tão rápido. Por isso eles estavam dispostos a me forçar a aceitar Elyan. Lee segurou suas mãos com firmeza. — Eles temem o que podemos despertar. O equilíbrio entre luz e escuridão. A união entre os lobos solares e noturnos. Ela ficou em silêncio por um tempo. Depois disse, com firmeza: — Então talvez seja hora de reescrever a história. Mas antes que pudessem se aprofundar na conversa, um som cortou o ar. Um uivo longo, arrastado. Diferente de tudo o que já haviam ouvido. Lee levantou-se num salto, os músculos em alerta, os olhos âmbar varrendo a escuridão da entrada da caverna. — Isso não é nenhum dos nossos. Hadassa também se pôs de pé, já puxando a roupa. Seus instintos gritavam. O uivo repetiu-se. Mais perto. — Não parece um lobo — sussurrou ela. Lee rosnou. — Porque não é. É algo... corrompido. Eles correram para fora da caverna, os corpos já assumindo a forma lupina no caminho. Quando chegaram à clareira abaixo, a floresta estava tomada por um silêncio antinatural. Nenhum grilo. Nenhuma coruja. Apenas o cheiro acre de sangue velho e terra amaldiçoada. Foi então que viram. No centro da clareira, uma criatura grotesca. Metade lobo, metade sombra. Os olhos vermelhos brilhando como brasas. Os pelos desgrenhados, retorcidos, como se a própria natureza tivesse desistido de moldá-lo. — O que... é isso? — perguntou Hadassa em pensamento, usando o canal mental dos companheiros lunares. Lee não respondeu de imediato. Mas seus pelos se arrepiaram. — Isso é o que restou dos que desonraram o laço lunar. Um espírito corrompido. Um antigo alfa banido por ter matado sua companheira. Ele foi engolido pela própria fúria. Dizem que caçará eternamente qualquer casal que ouse desafiar as leis do Círculo. A criatura avançou. Hadassa ficou ao lado de Lee. Pronta. Firme. — Então vai ter que passar por nós. E enquanto a noite ruía ao redor deles, o Alfa da Noite e a Luna Proibida se preparavam para sua primeira batalha como um. Não contra lobos. Mas contra o próprio passado.