O quarto ainda carregava o calor do que haviam feito. Melina estava deitada de lado, com os olhos abertos, observando as sombras que a madrugada projetava no teto. O corpo de Kauan ainda colado ao seu, o ritmo da respiração dele aos poucos voltando ao normal. O silĂȘncio entre eles nĂŁo era desconfortĂĄvel. Era cheio.â Isso foi... â ele começou, mas parou. O toque dos dedos dela ainda em sua pele.â NĂŁo diz nada â sussurrou Melina. â NĂŁo agora.Ela nĂŁo queria rotular o momento. Nem romantizĂĄ-lo. Era verdade que desejava Kauan hĂĄ muito tempo, mas agora havia mais â desejo, raiva, sede de justiça, e um medo crescente do que estava por vir.â Tudo bem â ele respondeu. â Mas a gente precisa conversar. Principalmente agora.Melina se sentou na cama, puxando o lençol contra o peito.â O celular da Amanda. As mensagens apagadas. A ligação com a firma de Miguel... Eu me recuso a acreditar que ela fez isso sozinha.Kauan tambĂ©m se sentou, passando a mĂŁo pelos cabelos.â Nem poderia. A Amanda nunc
Amanda fitava a tela do celular como se fosse uma armadilha prestes a explodir. A mensagem estava ali, clara, fria, quase militar:“Ela já sabe. O plano B vai ter que começar. Aguarde instruções.”Ela apagou a mensagem antes mesmo de pensar em respondê-la. A adrenalina correu por seu corpo como veneno. Caminhou de um lado a outro em sua sala, os saltos fazendo um som seco sobre o mármore escuro. A taça de vinho que segurava tremia levemente em sua mão.— Droga, droga, droga...Melina sabia. De alguma forma, ela tinha descoberto. Miguel devia ter falhado. Ou pior: Kauan.Amanda largou a taça na mesa de centro com violência. O vinho espirrou e manchou a superfície de madeira. Ela não se importou. Pegou o telefone fixo e discou com pressa.— Oi, é a Amanda. Preciso falar com ele. Agora.O homem do outro lado hesitou, mas logo
A primeira lição que ela aprendeu foi o silĂȘncio.Melina sentava-se Ă mesa da casa de Miguel todos os domingos, as mĂŁos sobre o colo, as costas retas como mandava o protocolo invisĂvel, e o olhar fixo no prato, mesmo quando seu estĂŽmago estava revirado. ObediĂȘncia era amor, ele dizia. E amor era sacrifĂcio. Ela repetia isso como um mantra, noite apĂłs noite, atĂ© que parou de ouvir a prĂłpria voz.Naquela manhĂŁ, o espelho refletia a mulher que ele moldara com esmero â salto alto, vestido vinho justo, cabelo perfeitamente alisado. Cada detalhe contava uma histĂłria que nĂŁo era sua. Seu reflexo, por um segundo, pareceu questionĂĄ-la. Mas ela desviou o olhar antes que a verdade gritasse.Miguel odiava desobediĂȘncia. E Melina era uma aluna exemplar.Desceu as escadas da mansĂŁo com passos firmes, como se cada degrau fosse uma sentença. A casa estava silenciosa, exceto pelo som distante de um saxofone vindo da sala de estar. Miguel gostava de jazz â dizia que era mĂșsica de homens inteligentes. O
NĂŁo era apenas a vista que a enjaulava. Era a ideia de que cada escolha que fazia nĂŁo lhe pertencia. O quarto em que Melina acordava todos os dias era amplo, luxuoso e sufocante como um caixĂŁo de veludo. O teto era alto, as janelas largas, os lençóis macios â mas tudo ali parecia feito para mantĂȘ-la confortĂĄvel na prisĂŁo que alguĂ©m construiu com muito dinheiro e pouco afeto.Ela acordou cedo, como sempre fazia, porque o corpo ainda carregava o instinto de agradar. Mas o coração... o coração estava mudando.Ela se sentou na beira da cama, sentindo os lençóis frios tocarem a pele nua. Miguel jazia ao seu lado, dormindo pesado, o peito subindo e descendo em um ritmo preguiçoso. Ela o observou por alguns segundos, como se buscasse alguma humanidade no homem que um dia acreditou amar. NĂŁo encontrou nada alĂ©m de controle. De medo. De poder mal distribuĂdo.Levantou-se em silĂȘncio, vestindo uma camisola preta de seda, e caminhou atĂ© a varanda. A cidade se estendia diante dela, com seus grito
A chuva caĂa pesada sobre a cidade quando Melina entrou no carro blindado, protegida por dois dos seus homens. Era dia de inspeção. O armazĂ©m novo estava em fase de consolidação, e ela fazia questĂŁo de estar presente em cada detalhe â algo que Miguel raramente permitia, mas que ela fazia mesmo assim. A diferença era que agora, nĂŁo mais pedia permissĂŁo. Apenas ia.O motorista seguiu silencioso, e os seguranças tambĂ©m. Todos sabiam quem ela era. E mais importante: quem ela podia se tornar.No banco de trĂĄs, sozinha, Melina olhava a cidade molhada por trĂĄs dos vidros escuros. Pensava na conversa do dia anterior. Em Kauan. Em sua resposta. "Ou me libertar."Era ousado demais para um homem recĂ©m-chegado. Mas era isso que a intrigava nele. Ele nĂŁo pedia espaço â ele tomava. E fazia isso com um olhar.No armazĂ©m, ela caminhou entre caixas, checando lacres, verificando registros. O cheiro de pĂł e madeira molhada tomava o ambiente, e seus saltos batiam contra o piso de concreto com autoridade.
A noite chegou mais densa do que o habitual. NĂŁo era sĂł o cĂ©u, carregado de nuvens escuras, ou o vento cortante que soprava pelas ruas da cidade. Era algo mais. Algo que vinha de dentro. E Kauan sentia essa sombra se espalhar por cada centĂmetro de sua pele.Ele estava no alto de um prĂ©dio abandonado na zona norte, observando a movimentação do galpĂŁo rival por trĂĄs de binĂłculos militares. Seu corpo, imĂłvel como o concreto sob seus pĂ©s, era pura tensĂŁo. Os olhos, atentos. A mente, agitada.Mas o que o atormentava nĂŁo era o galpĂŁo.Era Melina.Desde que cruzara o olhar com ela pela primeira vez, sabia que algo dentro dele tinha se partido. NĂŁo pela beleza, embora ela fosse devastadora. Mas pelo que ela escondia por trĂĄs daquele olhar duro. Pela maneira como falava com firmeza, mesmo quando estava prestes a desmoronar. Pela cicatriz invisĂvel que carregava e que, de alguma forma, ecoava as dele.Ele tentou afastĂĄ-la da cabeça. Sabia que nĂŁo podia se dar a esse luxo. NĂŁo naquele mundo. NĂŁ
Melina sentiu algo quebrar por dentro como um espelho estilhaçado. A mulher que ergueu um impĂ©rio com sangue, suor e silĂȘncio, nĂŁo era de se abalar facilmente. Mas aquela sensação â aquela intuição visceral de que algo estava errado â cravou fundo. Como uma adaga enfiada por alguĂ©m que ela nunca imaginaria.Tudo começou com um envelope, deixado sobre a mesa da sala da cobertura. Sem remetente. Apenas o nome dela rabiscado em tinta preta. Dentro, poucas pĂĄginas. RelatĂłrios. HorĂĄrios. Locais. Uma nota fiscal de hotel. E uma foto tremida, tirada de longe. Miguel, entrando num saguĂŁo luxuoso. Sozinho. Mas dias depois, a mesma rotina, no mesmo hotel. SĂł que dessa vez... acompanhado. A imagem nĂŁo mostrava o rosto da mulher. Apenas as pernas esguias e um salto vermelho que parecia ter sido escolhido para ser notado.Melina encarou aquela foto como se fosse uma sentença. NĂŁo havia beijo. NĂŁo havia nudez. Mas havia um cheiro de traição tĂŁo forte que o ar pareceu rarefeito. Ela sentiu as mĂŁos s
As flores no vaso da sala estavam murchas, mas Melina nem percebeu. Ela havia deixado de notar coisas assim fazia tempo. Agora, sĂł enxergava padrĂ”es. Erros. Riscos. Mentiras.A dor jĂĄ nĂŁo ardia como antes. Tinha se transformado em algo mais Ăștil. Frio. CirĂșrgico. Ela era boa nisso â transformar desgraça em arma. Mas ainda assim, algo dentro dela estava diferente. A mulher ferida começava a morrer. E em seu lugar, surgia algo pior.No espelho, ela observou os prĂłprios olhos: escuros, insones, intensos. Como se carregassem um cemitĂ©rio inteiro atrĂĄs deles.No celular, a mensagem de Kauan:âTem alguĂ©m dentro do seu cĂrculo. AlguĂ©m que fala demais.âEla nĂŁo respondeu. Mas aquilo acendeu uma nova linha de fogo dentro dela.Era mais do que Miguel. Era mais do que sexo. AlguĂ©m estava minando seu impĂ©rio por dentro. E ela precisava descobrir quem.Na sala de reuniĂ”es, os lĂderes de suas operaçÔes estavam reunidos. Jonas lia relatĂłrios. Kauan permanecia calado, no fundo da sala, como uma sombr