A luz atravessava as cortinas pesadas do quarto de Miguel quando Melina abriu os olhos. Por um momento, ela se permitiu o engano: o cheiro dele, a textura dos lençóis, o calor do corpo ao lado. Mas a lembrança da noite anterior caiu sobre ela como um balde de água fria. Sentou-se na beira da cama, nua, abraçando os próprios joelhos.Olhou para ele. Dormia como se nada tivesse acontecido, como se eles fossem um casal comum, de volta ao começo. Idiota. Ela mesma se xingou em silêncio. Se deixou levar pela carência, pela carícia, pela boca mentirosa dele.Ela se levantou, pegou a calcinha e a camiseta que encontrou pelo chão, vestiu-se rapidamente. Abriu a bolsa e pegou os papéis do divórcio, que estavam amassados entre livros, recibos e maquiagens. Voltou para o quarto e os jogou com força sobre o peito dele.— Acorda, Miguel.Ele se remexeu, sonolento.— Que...?— Acorda. É sobre isso que você deveria estar sonhando. Divórcio.Miguel abriu os olhos devagar. Quando os viu, os papéis, e
Melina não sabia o que era mais insuportável: o silêncio ou o pulsar inquieto do celular em sua bolsa. Deixou-o vibrando sem atender, sem olhar. Cada chamada, cada mensagem, parecia mais um peso em seus ombros já cansados. Desde que deixara o apartamento de Miguel na noite anterior, o mundo parecia girar em um eixo de dor e incerteza.O café esfriava diante dela. A cafeteria quase vazia, com seus sons abafados de xícaras tilintando e conversas baixinhas, parecia um cenário surreal para a tempestade que se formava dentro dela.Respirou fundo e, finalmente, puxou o celular da bolsa. A tela iluminou seu rosto.Mensagem de número desconhecido:"Você realmente acha que sabe tudo? Pergunte a ele sobre a noite do acidente."O sangue gelou em suas veias.Acidente?Que acidente?O impulso de levantar e correr até Miguel era esmagador, mas ela se forçou a ficar sentada. Observou o café espesso no fundo da xícara e sentiu a garganta secar. Precisava ser racional. Precisava ser fria.Mas como ser
O vento frio da madrugada cortava como lâminas enquanto Melina atravessava o estacionamento do prédio. Cada passo ecoava entre os carros molhados pela chuva, e a sensação de ser observada cravava garras invisíveis em suas costas.Ela apertou o passo.Seu coração batia rápido, não apenas por causa da mensagem anônima, mas porque algo no ar parecia... errado.Um zumbido quase imperceptível, como se o mundo prendesse a respiração, rondava o ambiente.Melina chegou ao carro, destravou as portas com um clique rápido e entrou, trancando-as imediatamente. Só então permitiu-se respirar mais fundo.Mas a sensação de perigo persistia.Pegou o celular de novo.Nada além daquela mensagem:"Prepare-se para a verdade inteira."A tela apagou, mergulhando o carro em escuridão.Por um ins
A primeira lição que ela aprendeu foi o silêncio.Melina sentava-se à mesa da casa de Miguel todos os domingos, as mãos sobre o colo, as costas retas como mandava o protocolo invisível, e o olhar fixo no prato, mesmo quando seu estômago estava revirado. Obediência era amor, ele dizia. E amor era sacrifício. Ela repetia isso como um mantra, noite após noite, até que parou de ouvir a própria voz.Naquela manhã, o espelho refletia a mulher que ele moldara com esmero — salto alto, vestido vinho justo, cabelo perfeitamente alisado. Cada detalhe contava uma história que não era sua. Seu reflexo, por um segundo, pareceu questioná-la. Mas ela desviou o olhar antes que a verdade gritasse.Miguel odiava desobediência. E Melina era uma aluna exemplar.Desceu as escadas da mansão com passos firmes, como se cada degrau fosse uma sentença. A casa estava silenciosa, exceto pelo som distante de um saxofone vindo da sala de estar. Miguel gostava de jazz — dizia que era música de homens inteligentes. O
Não era apenas a vista que a enjaulava. Era a ideia de que cada escolha que fazia não lhe pertencia. O quarto em que Melina acordava todos os dias era amplo, luxuoso e sufocante como um caixão de veludo. O teto era alto, as janelas largas, os lençóis macios — mas tudo ali parecia feito para mantê-la confortável na prisão que alguém construiu com muito dinheiro e pouco afeto.Ela acordou cedo, como sempre fazia, porque o corpo ainda carregava o instinto de agradar. Mas o coração... o coração estava mudando.Ela se sentou na beira da cama, sentindo os lençóis frios tocarem a pele nua. Miguel jazia ao seu lado, dormindo pesado, o peito subindo e descendo em um ritmo preguiçoso. Ela o observou por alguns segundos, como se buscasse alguma humanidade no homem que um dia acreditou amar. Não encontrou nada além de controle. De medo. De poder mal distribuído.Levantou-se em silêncio, vestindo uma camisola preta de seda, e caminhou até a varanda. A cidade se estendia diante dela, com seus grito
A chuva caía pesada sobre a cidade quando Melina entrou no carro blindado, protegida por dois dos seus homens. Era dia de inspeção. O armazém novo estava em fase de consolidação, e ela fazia questão de estar presente em cada detalhe — algo que Miguel raramente permitia, mas que ela fazia mesmo assim. A diferença era que agora, não mais pedia permissão. Apenas ia.O motorista seguiu silencioso, e os seguranças também. Todos sabiam quem ela era. E mais importante: quem ela podia se tornar.No banco de trás, sozinha, Melina olhava a cidade molhada por trás dos vidros escuros. Pensava na conversa do dia anterior. Em Kauan. Em sua resposta. "Ou me libertar."Era ousado demais para um homem recém-chegado. Mas era isso que a intrigava nele. Ele não pedia espaço — ele tomava. E fazia isso com um olhar.No armazém, ela caminhou entre caixas, checando lacres, verificando registros. O cheiro de pó e madeira molhada tomava o ambiente, e seus saltos batiam contra o piso de concreto com autoridade.
A noite chegou mais densa do que o habitual. Não era só o céu, carregado de nuvens escuras, ou o vento cortante que soprava pelas ruas da cidade. Era algo mais. Algo que vinha de dentro. E Kauan sentia essa sombra se espalhar por cada centímetro de sua pele.Ele estava no alto de um prédio abandonado na zona norte, observando a movimentação do galpão rival por trás de binóculos militares. Seu corpo, imóvel como o concreto sob seus pés, era pura tensão. Os olhos, atentos. A mente, agitada.Mas o que o atormentava não era o galpão.Era Melina.Desde que cruzara o olhar com ela pela primeira vez, sabia que algo dentro dele tinha se partido. Não pela beleza, embora ela fosse devastadora. Mas pelo que ela escondia por trás daquele olhar duro. Pela maneira como falava com firmeza, mesmo quando estava prestes a desmoronar. Pela cicatriz invisível que carregava e que, de alguma forma, ecoava as dele.Ele tentou afastá-la da cabeça. Sabia que não podia se dar a esse luxo. Não naquele mundo. Nã
Melina sentiu algo quebrar por dentro como um espelho estilhaçado. A mulher que ergueu um império com sangue, suor e silêncio, não era de se abalar facilmente. Mas aquela sensação — aquela intuição visceral de que algo estava errado — cravou fundo. Como uma adaga enfiada por alguém que ela nunca imaginaria.Tudo começou com um envelope, deixado sobre a mesa da sala da cobertura. Sem remetente. Apenas o nome dela rabiscado em tinta preta. Dentro, poucas páginas. Relatórios. Horários. Locais. Uma nota fiscal de hotel. E uma foto tremida, tirada de longe. Miguel, entrando num saguão luxuoso. Sozinho. Mas dias depois, a mesma rotina, no mesmo hotel. Só que dessa vez... acompanhado. A imagem não mostrava o rosto da mulher. Apenas as pernas esguias e um salto vermelho que parecia ter sido escolhido para ser notado.Melina encarou aquela foto como se fosse uma sentença. Não havia beijo. Não havia nudez. Mas havia um cheiro de traição tão forte que o ar pareceu rarefeito. Ela sentiu as mãos s