Fiorella
Quando entrei na casa da minha tia, encontrei minha mãe ao telefone. Pelo tom de sua voz contido, provavelmente estava falando com o meu pai. Ele era o único que a colocava no lugar. — Ah, graças aos santos, ela acabou de chegar! Fiorella, filha, fale com o seu pai... ele está aflito... Minha mãe estava trêmula; se eu não a conhecesse bem, até acreditaria que o seu desespero era real. — Papai, eu estou bem... — falei assim que peguei o telefone, mas ele logo alterou a chamada para uma ligação de vídeo. Depois de convencê-lo de que eu realmente estava bem, agora ele queria saber como aquilo havia acontecido. Mas como eu poderia dizer que suspeitava da minha própria mãe? Assim como não fazia ideia de quem era o homem bonitão que havia me salvado. Meu pai deu a ordem para que a gente ficasse na casa da minha tia e disse que faria contato com “os gringos” e que eles iriam nos escoltar de volta para a Itália em um jato particular. Encontrei minha mãe na sala, sendo amparada pela minha tia Elena. — Papai vai mandar “os gringos”, vamos voltar para a Itália. — Espero que cheguem logo — ela bufou nervosa e se levantou agitada demais pra ficar sentada. Apesar de ainda sentir o corpo flutuando pelo excesso de pílulas, parte da minha mente estava afiada, afetada pela adrenalina. — QUAL É O PROBLEMA COM VOCÊ? — gritei, cansada de vê-la fingindo. Ela me olhou espantada, porque eu nunca havia gritado com ela antes, e ela simplesmente ficou imóvel me encarando como se eu tivesse ficado louca de vez. — Fiorella, sua mãe está tão assustada quanto você. Sei que você está com medo, mas acalme-se — minha tia interveio, mas eu estava com muita raiva entalada na garganta por aquela mulher que se dizia minha mãe. — Vai negar que inventou essa viagem pra tentar me matar? Como foi me ver entrando por aquela porta? Ficou decepcionada outra vez? — cuspi as palavras na cara dela. — Cale essa boca, garota — ela travou o maxilar; o rosto tremia de raiva. — Fiorella, acalme-se... — minha tia tentava inutilmente remediar a situação. — Calma? — rebati, furiosa. Sabia que havia chegado a um ponto em que não havia mais como retornar. — Eu escutei você tramando a minha morte, mamãe! O primeiro estalo que eu ouvi foi o tapa em meu rosto — estranho ouvir o barulho antes de sentir a ardência na pele — provavelmente havia exagerado nas pílulas. O segundo estalo que eu ouvi fez o meu corpo estremecer por dentro. Foi uma pancada na porta. Minha tia Elena, que não estava acostumada com o estilo de vida da irmã, foi em direção ao som com o semblante tranquilo, como se aquilo fosse apenas um inconveniente. — Fiorella, precisamos nos esconder — minha mãe sussurrou pra mim. — Fale pra eles recuarem, mamãe. Foi você que os contratou... — minha voz saiu esganiçada, enquanto eu lutava pra não chorar. Não é hora pra lágrimas, Fiorella. Não é hora pra chorar. — Você está errada. Eu não contratei ninguém — minha mãe baixou o tom, suas palavras saindo cheias de veneno — Acha que eu seria tão estúpida a ponto de mandar te eliminar em uma viagem que só veio nós duas? Menina burra! Quem eu iria culpar se você desaparecesse nesse fim de mundo? O som do primeiro tiro me fez saltar, e o entorpecimento se dissipou completamente. E então o som de rajadas de tiros tomou conta do ambiente. — Fiorella — vi o terror pela primeira vez na face da minha mãe — foge! Olhei com um pouco mais de atenção e vi o motivo de ela não conseguir sair do lugar, um filete de sangue escorria pela lateral do seu casaco grosso. — Mamãe... Peguei o braço dela para que se apoiasse em mim, mas eu não tinha força suficiente para mantê-la de pé. O corpo dela escorregou para o chão, e eu a arrastei como pude, toda torta, para um vão debaixo da escada, deixando um rastro de sangue pra trás. Sabia que não estava sendo sensata, mas não podia deixá-la. A casa continuava sendo bombardeada por todos os lados. Era um ataque covarde, porque estavam disparando de uma distância segura. Podia ouvir o vidro das janelas estalando e quebrando, mas ninguém ousou se aproximar demais. Os sons foram ficando mais espaçados, e tive medo de que alguém viesse conferir se o trabalho estava completo. Puxei o corpo da minha mãe para mais perto de mim. Ela estava tão pálida e eu me vi implorando pra que ela aguentasse. O socorro está vindo, meu pai vai mandar os gringos, eles vão chegar a tempo de te salvar. Eu pensei tudo isso, mas não fui capaz de pronunciar uma só palavra, enquanto assistia à minha mãe morrer diante dos meus olhos. Quando o som de tiros parou completamente, ouvi passos pesados invadindo a casa. Olhei pra minha mãe e murmurei um “sinto muito”. Queria ser forte o suficiente para nos proteger. Se ele estivesse com o Dominic, com certeza suas chances seriam melhores. Por um momento me peguei pensando que ela tinha motivos pra me odiar. Eu era pateticamente fraca demais. As lágrimas escorriam sem parar pelo meu rosto, enquanto eu contemplava o rosto dela quase sem vida diante de mim. Os passos se aproximavam de onde estávamos. Como costumava fazer desde pequena quando tinha medo, fechei os olhos, tapei os ouvidos com as palmas das mãos. Foi quando ouvi: — Encontramos elas! Senti o meu corpo sendo puxado, e alguém passava a mão grosseiramente pelo meu corpo, de forma impaciente. — Fiorella Salvatore, está ferida? — a voz era grossa, sem uma entonação que deixasse claro se eu deveria dizer que sim ou que não. Me forcei a abrir os olhos e me deparei com um soldado. Vestido como um homem preparado para a guerra, o loiro de voz sem emoção só podia ser um dos “gringos”. Um dos homens do grupo mafioso que comandava o tráfico dentro dos Estados Unidos. — Estou bem — respondi atordoada — minha mãe precisa de ajuda! — Don Salvatore, lamento dizer, mas temos um código cinza evoluindo para código preto. — Não! — me surpreendi com o meu próprio grito. Eu conhecia os códigos. Cinza significava que alguém estava gravemente ferido ou quando não tinha certeza se a pessoa estava morta ou não. Minha mãe estava sendo socorrida por um homem que parecia saber o que estava fazendo, e mesmo assim ela estava evoluindo para um código preto. Eu sabia o que isso queria dizer. Ela estava morrendo. Preto significa morte. Preto significa luto. Escapei das mãos que me examinavam e me ajoelhei diante do corpo da minha mãe, as lágrimas jorrando feito cachoeira. — Mamãe — eu precisava dizer, precisava confessar que era minha culpa. Se eu fosse forte e esperta como o meu irmão Dominic, isso não teria acontecido. Talvez se eu não tivesse tomado as pílulas, nós teríamos nos escondido a tempo. — F-Fiorella... — a voz rouca e fraca atingiu os meus sentidos — Filha... você está bem e é isso o que importa. — Por favor, não... não se despeça... — segurei as suas mãos, enquanto o meu corpo e o dela tremia sem parar. Embora o tremor no corpo dela fosse muito diferente do que eu sentia. Era o tremor da vida se esvaindo. — Eu te amo, Fiorella — uma lágrima volumosa escorreu pelo rosto perfeitamente desenhado da minha mãe. E o meu coração pareceu se rasgar em dois. Ela olhou para os homens ao nosso redor, como se quisesse dizer algo, mas não quisesse que eles ouvissem. Eu me debrucei sobre ela, deixando o meu ouvido próximo dos seus lábios. — Não confie nele... — ela sussurrou tão baixo que eu custei a entender. Ainda assim, não sabia de quem ela estava falando. Segurei as suas mãos entre as minhas. O homem que tentava estancar o sangue que jorrava do corpo dela e parecia ser um médico balançou a cabeça pra mim, desistindo. Eu não queria que ele desistisse, mas até eu sabia que não tinha como sobreviver àquilo. Não havia percebido a gravidade antes, mas agora, sem o casaco, era possível ver que ela havia tomado dois tiros na barriga. — Me deixe ao menos me despedir... — minha voz saiu embargada, um som perturbador até para os meus ouvidos, mas serviu. Os homens se afastaram. Todos se afastaram. — Mamãe, isso não teria acontecido se Domi tivesse vindo conosco. O lábio dela se repuxou lateralmente em um sorriso esquisito, dor misturada com algo mais. — Não confie nele, Fiorella — ela repetiu as mesmas palavras de antes, um vinco se formando em sua testa. — De quem você está falando? Eu não entendo... — falei baixo, com medo de que alguém mais nos escutasse. — Fiorella, tudo o que fiz... foi pra te proteger... — pela expressão dela, sabia que o nosso tempo estava acabando. Ela estava com dor. O mínimo que podia acontecer era que a minha mãe desmaiasse pela dor ou pela perda de sangue. — Eu não consigo entender, mamãe — as lágrimas escorriam do meu rosto e caíam sobre o dela — Em quem eu não devo confiar? — Não confie em seu pai!Olá, queridos leitores. Iniciando as postagens diárias aqui, espero que gostem dessa história tanto quanto eu. Beijinhos bombásticos 😽💣