Três dias se passaram desde que Delancy chegou à mansão Russell. Três dias em que ela mal saiu do quarto, como se a própria presença ali precisasse ser discreta. Ela ignorava as insistentes chamadas de Peter, pois não queria falar com ninguém.
Naquela noite, o ar parecia mais pesado. O relógio marcava algo perto das duas da manhã. Ela esticou o braço até a jarra de água sobre o criado-mudo, mas seus dedos encontraram apenas o vidro seco e vazio.
Um suspiro escapou de seus lábios. “Droga.”
Ainda relutante, ela empurrou as cobertas e saiu da cama. O chão de mármore estava gelado sob seus pés descalços, e o silêncio da casa soava espesso, quase opressor.
Ela ouvira dizer que Liam Russell era metódico e exigente, e tentava a todo custo evitar esbarrar com ele pela casa. Claro, era uma casa tão grande que talvez eles nunca se encontrassem.
A menina caminhou devagar, na ponta dos pés, vestida apenas com um robe amarrado na cintura. A luz fraca da lua que entrava pelas janelas recortava as sombras no corredor.
Quando ela virou à esquerda em direção à cozinha, parou subitamente. Duas mulheres estavam paradas diante da porta do quarto principal… o quarto de Liam Russell.
Uma delas era Isla.
A outra, uma loira de feições duras, corpo esguio, vestindo um sobretudo escuro sobre uma lingerie ousada. A cena tinha algo de clandestino, de estranho, e por instinto Delancy se encolheu no canto escuro do corredor, escondida pela sombra de uma estante.
Isla olhou para os lados com atenção exagerada. Então, tirou do bolso um maço de dinheiro e o entregou à loira. Esta contou rapidamente as notas com o polegar.
"Ele está dormindo?" Isla questionou.
"Está apagado", respondeu a mulher, retirando algo da bolsa. Era pequeno, envolto em papel alumínio. Entregou a Isla discretamente. "Feito."
Delancy franziu o cenho. Não conseguia ver o que era, mas algo em seu corpo se enrijeceu. Cada centímetro de sua pele pareceu pressentir um perigo silencioso. A mulher virou-se sem dizer mais nada e desceu as escadas com passos precisos.
Isla permaneceu por um tempo mais diante da porta do quarto de seu chefe. Delancy estudou a cena, mas não entendeu. Sua mãe parecia tão honesta e correta que a menina sequer conseguia pensar no que Isla estava tramando.
Delancy decidiu sair da sombra. "Mãe?" A palavra saiu mais forte do que ela pretendia.
Isla se virou num pulo, como se tivesse sido pega roubando. Seus olhos se arregalaram e o rosto empalideceu. "Delancy..."
Isla se aproximou de repente no corredor, os passos apressados ecoando como estalos secos no silêncio da madrugada. Ela agarrou o antebraço da filha com força, os dedos afundando na pele, e sussurrou entre os dentes: "O que está fazendo fora do quarto?"
Sem dar tempo para resposta, Isla começou a arrastá-la de volta pelo corredor, os olhos inquietos varrendo as sombras ao redor.
"Eu só queria água", disse Delancy, a voz ainda embargada pelo susto. "Mas o que aconteceu ali? Quem era aquela mulher?" Ela tentava acompanhar os passos da mãe, mas o coração acelerado a fazia tropeçar.
"Não foi nada", respondeu Isla, seca, como se quisesse encerrar o assunto ali. "Aquela moça... dormiu com o Sr. Russell. Eu só estava mostrando a saída pra ela."
"Não, mãe. Eu vi." Delancy parou de repente, forçando Isla a parar também. Seus olhos fixaram os da mãe com uma firmeza que não se via nela há dias. "Você deu dinheiro a ela. E ela te entregou alguma coisa. O que é isso na sua mão?"
Isla hesitou por um segundo, apenas um segundo, mas foi o bastante para Delancy entender que havia algo errado. A mãe tentou esconder o embrulho atrás do corpo, mas Delancy foi mais rápida.
A menina avançou, arrancou o pacote enrolado em papel-alumínio, e o abriu ali mesmo, sob a luz fraca do corredor. Seus olhos demoraram um segundo para entender o que viam… uma camisinha usada, ainda úmida, cuidadosamente embrulhada.
"Mãe..." A palavra saiu quase sem voz. Ela levantou os olhos, buscando uma explicação que não queria ouvir. "Não me diga que..."
Mas antes que pudesse terminar a frase, um arrepio percorreu a coluna de Delancy, como se alguém tivesse soprado sua nuca. Ela sentiu, mais do que ouviu, a presença às suas costas.
Algo se abateu sobre seu rosto com brutalidade súbita: um pano áspero, úmido, pressionado com força. O cheiro era insuportável, acre, químico, como uma queimadura entrando pelo nariz e rasgando seus pulmões.
“Socorro…” Delancy engasgou, os olhos arregalados de pavor.
Ela tentou se soltar, mas braços fortes a imobilizaram.
Seu grito morreu abafado no tecido. O mundo girou e suas pernas falharam como se o chão tivesse desaparecido. Ela se debateu uma última vez, desesperada, antes que a escuridão a engolisse inteira.
**
3 da manhã…
No primeiro andar da mansão, em um dos antigos quartos da criadagem, o cheiro de mofo pairava como uma nuvem sufocante. A lâmpada no teto piscava com um zumbido irritante, lançando sombras dançantes nas paredes descascadas.
Quando Delancy abriu os olhos, seu corpo já sabia que algo estava errado… seus pulsos estavam presos com tiras de couro à cabeceira enferrujada da cama de ferro, e as pernas amarradas em abertura forçada por lençóis torcidos.
Um pano grosso, enfiado à força entre seus dentes, impedia qualquer grito.
A porta do quarto tinha um cobertor escuro pregado por dentro, abafando qualquer som, pois o mundo lá fora não devia saber o que acontecia ali.
Isla estava de costas, enfiando algo em uma gaveta com movimentos apressados.
Damon também estava no quarto…
O homem encostava casualmente na parede, ao lado da porta, tragando um cigarro como se tudo aquilo fosse apenas uma pausa entre tarefas. Seus olhos semicerrados não saíam de Delancy, fixos, impassíveis, como se ela não fosse uma pessoa, mas um recipiente à espera de uso.
Delancy tentou se mexer, mas o colchão murcho rangia com cada tremor do seu corpo. O frio das correntes cortava sua pele.
Ela grunhiu atrás da mordaça, os olhos arregalados de pavor.
Isla virou por um momento, com o rosto tenso, pálido, e olhos vermelhos. Mas não disse nada. Nem se aproximou.
Damon soltou uma última baforada de fumaça e pisou o cigarro no chão de madeira rachada. “Isla sempre trabalhou para os Russell,” começou, a voz tão mansa que doía mais do que se gritasse. “Foi empregada do velho Charles e da madame Antonietta desde que mal tinha saído da adolescência. Ela trabalhava dia e noite, se é que me entende” ele piscou com malícia. “Isla tentou o golpe da barriga antes. Se enfiou na cama do patriarca, sim. Algumas vezes. Achava que podia seduzi-lo e garantir uma vida melhor. Mas, bem... putas não costumam ter finais felizes. E ele era esperto demais pra cair numa armadilha tão barata.”
Delancy, amarrada na cama diante dele, não conseguia se mover. O sangue congelava a cada palavra.
Damon continuou. “Agora, anos depois, ela começou a trabalhar para o herdeiro da família. Fingiu humildade, servidão. Mas eu via como ela olhava pro Liam. Aquela mulher... parecia uma onça faminta. Não era desejo. Era obsessão. E quando ela me contou que pretendia engravidar dele... eu gargalhei.”
Ele parou diante da mesa e pegou a camisinha entre dois dedos, erguendo-a como um troféu nojento. “Eu disse: ‘Isla, você não é mais uma jovem. Liam nunca vai te querer. Seu tempo passou.’ Mas ela não precisava ser desejada. Não precisava da cama dele. Só precisava... disso.” Ele chacoalhou a camisinha no ar, o látex ainda úmido. “Tudo estava preparado. Hoje à noite seria o momento certo.”
Damon virou o rosto em direção a Delancy, e seus olhos brilharam com algo entre triunfo e desprezo. “Mas três dias atrás... você ligou. Chorando. Desesperada. Pedindo abrigo. E eu olhei pra Isla e perguntei: ‘Por que não usar o útero jovem e fértil da sua própria filha?’”
Delancy arquejou. O mundo girava ao redor dela, as bordas da realidade se distorcendo.
Damon se aproximou lentamente, abaixando-se para ficar na altura do rosto dela. “Você achou mesmo que ela te recebeu de volta por amor?” ele sussurrou. “Depois de te abandonar naquela cidade de merda como lixo? Não, querida. Nós temos um plano, e você... você é a peça mais valiosa.”
Isla apareceu atrás dele, fria como uma parede. Ela já usava luvas cirúrgicas. Na mesa, ao lado da camisinha, repousava uma seringa preparada.
“Você vai gerar o herdeiro Russell que vai nos tirar da miséria,” completou Damon, com um sorriso satisfeito.