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"Saia, mendiga."

O cabo da vassoura cutucou o ombro de Delancy com força, fazendo-a estremecer. 

Ela acordou com um sobressalto, o corpo encolhido sobre o banco gelado do terminal. 

O zelador, um homem de meia-idade com cara de poucos amigos, já passava o esfregão no chão ao lado, bufando.

Ela piscou várias vezes, tentando entender onde estava. A luz fria do amanhecer entrava pelas janelas sujas do terminal de ônibus, tingindo o chão de um cinza pálido. A calça jeans colava nas pernas por causa do orvalho que entrara durante a noite pelas frestas. 

A mochila ainda abraçada contra o peito, como se aquilo fosse tudo o que ela tinha… e era.

Delancy se sentou devagar. Cada osso doía, a nuca latejava e os olhos ardiam. Ela estava exausta, faminta, e a vergonha parecia impregnada na pele. 

Um homem dormia encostado na parede. Uma mulher tossia sem parar no canto. O zelador continuava limpando e reclamando. Ninguém olhava para ela, e isso doía mais do que qualquer tapa.

Ela puxou o celular do bolso da jaqueta e ligou a tela. A bateria já estava baixa. Uma enxurrada de notificações a atingiu de uma vez: 13 chamadas perdidas de Peter e 1 mensagem de Isla.

Delancy olhou para a primeira notificação com o coração disparado. Peter, seu namorado. Ela ainda usava o colar que ele tinha lhe dado: um pingente pequeno em forma de raio, pendurado sob o zíper do moletom. 

Ela apertou o metal com os dedos, mas não teve coragem de abrir as mensagens dele. Como explicar aquilo? Que dormiu num banco? Que foi chamada de “mendiga”? Que o pai a jogou para fora como se fosse um saco de lixo?

Abriu apenas a mensagem da mãe.

ISLA: “Cheguei. Estou no carro, em frente à saída principal.”

O nome dela no celular ainda parecia estranho. Mãe e filha não tinham contato há anos. Mas aquela mãe distante e uma bolsa suja eram tudo que Delancy tinha em Los Angeles.

Delancy se levantou devagar. As pernas tremiam. Ela jogou a mochila nas costas, puxou o capuz sobre o rosto e seguiu em direção à saída puxando a mala. Lá fora, o vento da manhã cortava a pele. 

Atrás dela, a mala suja, rasgada e com o zíper quebrado rangia enquanto era arrastada pelo chão áspero do terminal de ônibus. 

A menina havia usado todas suas economias para comprar uma passagem de ônibus para Los Angeles após ligar para sua mãe e implorar por estadia. Não havia sobrado dinheiro para uma mala nova… ou para comida.

Do outro lado da rua, um carro preto a esperava. Longo, luxuoso, com vidros espelhados que refletiam sua silhueta. 

Tênis encardidos, uniforme amarrotado, cabelo preso num rabo de cavalo torto. Era assim que ela havia saído da casa do pai no dia anterior.

A viagem de ônibus atravessara a noite, e quando chegou ao terminal de madrugada, ela só pôde dormir no banco mais distante das janelas. Sua mãe só lhe buscaria de manhã, então ela não tinha onde dormir.

Quando Delancy se aproximou, a porta do carro se abriu com um clique suave, elegante demais para ela. 

E então, Isla apareceu.

Isla desceu do carro com passos apressados, e, por um segundo, hesitou, como se estivesse decidindo se aquilo realmente estava acontecendo. Os olhos dela correram por Delancy de cima a baixo, fixando-se no rosto pálido, lábios rachados e pele marcada por olheiras fundas. 

E então algo dentro dela pareceu ceder. "Meu Deus, Delancy..."

Antes que a filha dissesse qualquer coisa, Isla a alcançou e envolveu num abraço apertado, quase sufocante. 

Delancy não a via desde o aniversário de dez anos. Ainda tinha o cabelo ruivo impecável e os olhos verdes iguais aos dela, mas só na cor. Os olhos de Isla eram mais experientes e duros, frutos de uma vida não muito fácil. O rosto era bonito e anguloso.

Delancy ficou imóvel no início, surpresa. O calor do toque materno contrastava com o frio cortante da manhã e com os anos de distância entre as duas. Mas, aos poucos, seu corpo cedeu. 

O queixo tremeu. A respiração falhou.

Ela deixou-se ir.

A mala caiu no chão com um baque surdo. As mãos de Isla acariciaram os cabelos embaraçados da filha, os dedos tremendo levemente ao sentir quão magra ela estava, como se, naquele instante, percebesse de verdade o que Delancy havia vivido.

"Você está gelada..." murmurou Isla, apertando-a com mais força. "Você... você dormiu aqui a noite toda?"

Delancy tentou responder, mas a garganta se fechou. Apenas assentiu com a cabeça, encostando o rosto no ombro da mãe. O cheiro de perfume suave e tecido limpo era ao mesmo tempo estranho e reconfortante… como sentir saudade de algo que nunca teve.

O perfume de Isla Devin era diferente do fedor de cigarro de Brenda.

"Isso não devia ter acontecido," Isla sussurrou. "Eu devia ter chegado antes”

Delancy fechou os olhos. Ninguém nunca falava assim com ela. Ninguém dizia que "devia ter sido diferente" em sua casa. A menina comparou aquele pequeno momento com sua mãe com os dezessete anos com seu pai.

Isla a afastou só o suficiente para olhar em seus olhos. Havia culpa ali, escondida atrás da maquiagem sutil e da postura contida. Ela tocou o rosto da filha com cuidado, como se temesse quebrá-la. "Eu sei que... eu sei que não fui a melhor mãe. Eu não pensei que Michael fosse tratá-la assim."

Delancy respirou fundo, tentando não desabar. Ela queria tanto acreditar naquelas palavras, tão desesperadamente, que sequer lutou contra a vontade de aceitar sua mãe.

"Vamos sair daqui," disse Isla, pegando a mala rasgada com uma das mãos e guiando a filha até o carro com a outra. "Vamos te dar um banho quente e comida de verdade.” Isla fez um gesto com a cabeça e manteve a porta aberta. 

A menina entrou no carro com sua mochila nas costas. O banco era de couro claro, macio demais para quem havia passado a noite encolhida no banco de concreto.

O motorista a observava pelo retrovisor. Os olhos escureceram por um instante, e uma das sobrancelhas se ergueu. Talvez não esperasse que ela fosse tão parecida com Isla. Talvez esperasse alguém... mais derrotada.

"Srta. Devin." A voz dele a pegou de surpresa. Grave, arrastada, com um leve tom de malícia que arrepiou sua pele. Ele não sorriu, mas a estudou com lentidão.

Delancy apenas acenou, pois as palavras ficaram presas no estômago. Algo naquele olhar a fez querer encolher no banco.

Isla entrou ao lado dela e fechou a porta com força. "Vamos, Damon."

O carro partiu, mas outro som preencheu o espaço: o rádio aumentou, sintonizado numa estação esportiva. O narrador descrevia com entusiasmo a última corrida de Fórmula 1. Um mundo de velocidade e glória… e completamente inalcançável para alguém como Delancy.

A mãe manteve os olhos na estrada, mas lançava olhares curtos de canto de olho, como se checasse se Delancy ainda estava ali, como se tivesse medo de que a filha desaparecesse de novo. "Você comeu alguma coisa ontem?" perguntou.

Delancy balançou a cabeça lentamente. "Não tinha dinheiro sobrando."

"Devia ter me dito. Eu teria te mandado."

"Eu... não queria dar trabalho." Delancy olhou pela janela. O sol começava a subir, tingindo os prédios de dourado. Passavam por bairros que ela não conhecia, ruas largas, calçadas limpas, lanchonetes com toldos vermelhos e letreiros em neon. 

Isla respirou fundo. A resposta anterior parecia lhe causar dor. "Ele te machucou?" perguntou, com a voz mais baixa e tensa.

Delancy hesitou. A pergunta era pesada, mas o silêncio também. 

A menina olhou, por instinto, para o retrovisor. E se arrependeu. Os olhos de Damon estavam fixos nela outra vez. Dessa vez, ele não disfarçava. A boca se curvou num meio sorriso lento. Era como se soubesse que ela estava vulnerável… e estivesse se divertindo com isso.

O estômago de Delancy virou pedra. 

"Eu trabalho para Liam Russell. Ele está viajando a negócios, então não o conhecerá hoje.” Isla alinhou o vestido, embora ele já estivesse perfeitamente ajustado. “A casa é grande, há vários outros funcionários. Você ficará no meu quarto, comigo. Não é muito, mas é tudo que tenho para oferecer. Isso... e amor."

Delancy apertou o zíper do moletom com os dedos. O pingente de raio frio contra a pele a fez lembrar de Peter. Ela engoliu em seco antes de sussurrar, quase sem voz: "Amor basta."

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