Capítulo 5 — Entre Feridas e Flores
A noite mal tinha começado e Eloise já revirava na cama, os olhos abertos no teto do quarto escuro. Não era insônia, era preocupação. A pensão do pai havia baixado mais uma vez. O valor mal cobria os remédios, e a cirurgia... Ah, a cirurgia. Duzentos mil reais. Era esse o preço para continuar tendo o homem mais importante da sua vida por perto. Desde que soube que ele precisava de uma válvula no coração, ela não descansava. Pegava todos os extras possíveis, recusava convites, cancelava folgas, tudo para ver aquele dinheiro acumulando — mesmo que fosse em passos de formiga. O sistema era cruel, e seu pai não tinha tempo. O cansaço pesava nas suas costas, mas ela sustentava o sorriso como uma armadura. O encontro inesperado aconteceu logo cedo, no hospital. O médico havia chamado para falar sobre um exame, e ela correu para lá. No corredor, esbarrou com a tia e, claro, com a prima. A mesma que agora exibia um anel de noivado digno de capa de revista, o mesmo anel que, meses antes, era dela. — Que surpresa ver você por aqui, Eloise — disse a tia, com aquele tom que tentava soar gentil, mas que escorria veneno. — A vida é cheia de surpresas — respondeu, mantendo o rosto firme. — Estamos aqui para uns exames de rotina. A Nicole tem sido um exemplo, não é? Tão dedicada, noiva de um homem tão estável. Uma benção para nossa família. Eloise sorriu de lado, cruzando os braços. — Imagino. Pena que estabilidade e caráter nem sempre andam juntos. Mas pelo menos ela ficou com o que sobrou. Espero que cuide bem. Nicole arqueou a sobrancelha, mas não respondeu. A tia bufou, mas Eloise virou as costas antes que a discussão escalasse. No entanto, quando se afastou, a máscara caiu. O peito doía. A ferida não cicatrizava — e talvez não cicatrizasse nunca. --- Augusto estava em casa, mas a mente não estava ali. A imagem dela saindo apressada da empresa no dia anterior o incomodava mais do que gostaria de admitir. Não explicou, não pediu licença. Apenas disse que precisava ir com urgência. E ele queria saber. Desde quando se importava? Desde nunca. Mas agora... --- No dia seguinte, Eloise chegou pontualmente. Um conjunto bege bem cortado, terninho justo que valorizava sua silhueta. O batom nude realçava a firmeza dos lábios, e o coque alto deixava claro: ela estava ali para o que precisasse. Augusto a esperava com a pasta na mão. — Vai me acompanhar em todas as reuniões hoje. Preciso que preste atenção e anote tudo — disse, sem tirar os olhos dela. — Claro, senhor Monteiro. — respondeu com firmeza enquanto pegava uma caneta e um bloco de notas, seguindo ao seu lado com passos decididos. A Monteiro Tech era a maior empresa de tecnologia da Cidade Norte, referência em inovação. Estavam desenvolvendo um produto revolucionário: um óculos de realidade aumentada com comandos por voz e leitura de retina, voltado para o setor da educação. Uma aposta ousada que exigia um marketing afiado. Na sala de reuniões, o diretor de marketing expunha a proposta em slides, com gráficos e projeções que, apesar de bem apresentados, careciam de estratégia. — Acreditamos que o público jovem vai se interessar pela estética futurista — disse o diretor. Eloise pediu licença, hesitante. — Com licença... — disse Eloise, interrompendo com firmeza. Todos os olhares da sala se voltaram para ela. Augusto girou lentamente a cadeira, voltando-se em sua direção com uma sobrancelha arqueada. — Posso comentar algo? - disse ela Augusto fez um sinal com a cabeça. — A estética futurista é boa, mas o marketing para esse tipo de tecnologia precisa conversar com a utilidade. Mostrar como vai facilitar o aprendizado, como vai impactar positivamente. O público jovem está saturado de promessas visuais. Eles querem transformação. Silêncio. — Pode continuar — disse Augusto. — Sugiro uma campanha mais emocional, com vídeos mostrando alunos usando os óculos em diferentes contextos. Mostrar acessibilidade, inclusão, usabilidade. Humanizar a inovação. Augusto não disse nada. Apenas olhou para o diretor. — Refaça a proposta com base no que ela disse. Eloise disfarçou o impacto daquilo com um aceno discreto. Seguiu com ele em mais duas reuniões, calada, atenta. Só às 14h ele finalmente disse: — Está liberada para o almoço. Volte às 15h. Quando ela virou de costas, ouviu a voz grave dele, sem nem olhar para ela: — Boa sugestão, aliás. Só não se acostume com elogios. Eles costumam sumir quando erram. Ela riu, saindo da empresa. A primavera vestia a Cidade Norte com tons vivos. As árvores floridas pintavam o céu, e o vento suave acariciava seu rosto enquanto ela caminhava até a lanchonete na esquina. O cheirinho de pão fresco se misturava ao perfume das flores nas sacadas. Por um momento, Eloise deixou a preocupação de lado. Respirou fundo e pensou: talvez estivesse, aos poucos, entrando em uma nova estação da vida também.