Alguns dias passaram desde aquela primeira reunião. A Castellani Holdings havia oficialmente fechado contrato e desde então eu vinha vivendo em meio a prazos insanos, reuniões, brainstormings e apresentações que pareciam sugar cada gota da minha energia. Mas, no fundo, eu adorava. Era exatamente issó que me fazia sentir viva.
Estávamos no estúdio, finalizando a gravação de alguns anúncios para a nova campanha publicitária. As câmeras captavam os últimos takes, a equipe corria de um lado para o outro pra agilizar toda a operação, e Lorenzo — como sempre — estava ali, de braços cruzados, observando cada detalhe como se fosse um fiscal invisível da perfeição. Ele não era do tipo que deixava nada ao acaso. Tinha uma forma natural de se impor na sala, não pude deixar de reparar que sua mão vez ou outra subia até o queixo, avaliando, medindo. Às vezes, pegava o olhar dele pousado em mim e sentia como se o ar do ambiente ficasse mais pesado. E quando nossos olhos finalmente se encontravam, eu desviava antes que ele pudesse notar algo que nem eu mesma poderia distinguir direito. Então, como se obedecesse a um roteiro de drama mal escrito, a luz simplesmente apagou. Tudo. Num clique. Ficamos todos ali numa escuridão total. Me aproximei de uma das janelas olhando para fora, uma tempestade estava começando a se formar. Em questão de segundos, relâmpagos e trovoadas tomaram o espaço, tornando o estúdio um cenário tão sombrio como aqueles filmes de terror quando algo está prestes a dar muito… muito errado. Um trovão estourou tão forte que fez as paredes de drywall vibrarem. Logo em seguida, a chuva despencou lá fora, batendo contra as janelas com violência. O vento começou a uivar pelos corredores, derrubando coisas nas salas em que as janelas ainda estavam abertas, portas batiam, o estúdio parecia prestes a desmoronar do décimo andar. — Gente, calma! — gritei, tentando organizar o caos. — Sigam para a saída de emergência, rápido! Usem as escadas. A equipe se atropelava em meio à escuridão, tentando não tropeçar nos equipamentos de iluminação que estavam no meio do caminho, cada um tentando achar uma forma de se proteger e se afastar das janelas. As lanternas dos celulares iluminavam apenas pedaços do cenário, transformando tudo numa cena de suspense. Enquanto todos corriam para fora, eu fui na direção contrária. — Tem alguém aí? — chamava pelos cantos, certificando-me de que ninguém tinha ficado para trás. O coração acelerado, não pelo medo da tempestade naquele momento, mas pelo instinto de resolver aquele problema. Abri uma porta lateral e, quando entrei, ouvi o estalo dela batendo forte atrás de mim por causa do vento. — Droga! — murmurei, girando a maçaneta. Ou melhor, tentando girar. Ela girou uma vez, duas, mas parece que a batida brusca fez alguma coisa lá dentro se quebrar, e na terceira… ploc. Fiquei com a parte dela na mão. — Ah, não, não, não… isso não tá acontecendo. — Pelo visto, está. — A voz grave atrás de mim me fez congelar. Virei devagar. Ele estava ali. Lorenzo Castellani. Lorenzo estava encostado em uma cadeira, de braços cruzados, olhando pra tempestade como se o caos lá fora fosse apenas ruído distante. Ele parecia… imóvel. Quase indiferente. — Você? — soltei, incrédula. — Tá todo mundo correndo e você tá aí… parado? Ele ergueu uma sobrancelha, com uma serenidade irritante. — Pânico nunca me ajudou a tomar decisões sensatas. Revirei os olhos, agora um pouco mais irritada. Porque fazia sentido aquela observação. — Ah, claro. E ficar plantado aqui, no escuro, é a sua grande estratégia de sobrevivência? — E correr para o lado oposto à saída é a sua? — a resposta veio rápida, cortante. Cruzei os braços, sentindo a espinha arrepiar mais de irritação do que de frio. — Estavam todos agitados, eu só resolvi a questão. — bufei — Sabe… é incrível como você consegue ser arrogante numa situação dessas. — soltei sem pensar nas consequências do que eu acabara de falar. — E é incrível como você acha que sempre precisa salvar o mundo sozinha. — retrucou, dando um passo à frente. Olhei pra ele por alguns segundos, seus olhos escuros pareciam enigmáticos, com uma pitada de… diversão? Eu estava andando de um lado para o outro descrente da observação que ele acabará de fazer. Isso é tão na cara assim ou ele tem prestado tanto a atenção em mim a ponto de já ter percebido isso? — Ótimo. — soltei, tentando esconder o nervosismo na ironia. — Trancada no escuro com o cliente mais importante da agência. Nada mal, Mila. Realmente, você se supera. Ele arqueou uma sobrancelha e pude ver o esforço que fez para não rir. — Você sempre fala sozinha quando fica nervosa? — Só quando estou prestes a surtar. — rebati, cruzando os braços. Ele deu alguns passos até ficar mais perto, a luz da lanterna agora iluminando o chão entre nós dois. — Não tem por que surtar. É só esperar a energia voltar. — Claro. Se não fosse o fato de que eu acabei de prender a gente aqui dentro — disse mostrando o pedaço da maçaneta em minhas mãos. — Fácil falar quando você tá acostumado a controlar tudo ao redor. — a frase escapou antes que eu pudesse frear a língua. O silêncio se alongou. Eu quase me arrependi da ousadia do que saiu da minha boca, até que percebi o canto da boca dele se curvar, quase um sorriso. — Então você já percebeu. Revirei os olhos, acreditando que ele não poderia ver por conta da escuridão, mas por dentro meu coração batia de uma forma descompassada. — Difícil não perceber. Você está sempre observando tudo como se pesasse cada ação numa balança invisível da perfeição. O senhor entra em qualquer sala como se fosse dono dela. Ele aproximou-se mais um pouco, até o ponto em que a lanterna não fazia mais diferença, era perto o suficiente pra sentir o cheiro do seu perfume, seus olhos eram penetrantes, fixados aos meus, eu queria desviar mas era quase impossível. — Eu sou dono, Mila. De salas, de empresas, de responsabilidades que a maioria das pessoas nem imagina carregar. Mas… — sua voz ficou mais baixa, quase um sussurro. — Isso não significa que eu tenha controle de tudo. A confissão inesperada me pegou desprevenida. Fiquei em silêncio por alguns segundos, tentando decifrar se aquilo era vulnerabilidade ou apenas mais uma jogada calculada de um homem como ele. Um barulho forte ecoou do lado de fora — o vento derrubando algo pesado. Por reflexo, me encolhi, o que diminuiu o espaço entre nós significativamente, senti um arrepio percorrendo minha espinha. Dava pra sentir o calor do seu corpo agora tão perto do meu. — Assustada? — ele perguntou, sério. — Só um pouco… esse barulho me pegou desprevenida. Seus olhos escuros brilharam como se lessem além da minha resposta. Seu rosto contraiu levemente. — Sabe… Até os mais fortes têm medo de alguma coisa. — disse, ajeitando uma mecha do meu cabelo atrás da orelha. O silêncio que veio depois foi carregado. Ele me olhava como quem desmonta peça por peça um quebra-cabeça. Devagar, levou a mão ao queixo, aquele gesto típico que eu entendi ser algo que ele faz quando estava analisando algo a fundo. — Você é diferente. — disse, baixo, quase para si mesmo. Meu peito apertou. Tentei rir, mas sem humor. — Diferente como? Ele se aproximou um pouco mais. A lanterna do celular agora iluminava só parte de seu rosto, projetando sombras que o deixavam ainda mais intenso. Estava tão perto que precisava abaixar o rosto pra poder me encarar. — Não finge. Todo mundo se transforma quando está perto de mim, como se a todo momento houvesse segundas intenções pela minha posição aqui dentro. Você não. Engoli em seco. Uma parte de mim queria desviar o olhar e me afastar. Outra parte queria mergulhar naquela intensidade. — Mas você mal me conhece, foram poucas as palavras que trocamos desde nossa primeira reunião. — sussurrei, sem perceber, levando minha mente para aquele dia na cafeteria. Ele arqueou um leve sorriso de canto, como se tivesse gostado do desafio. — Talvez eu queira conhecer. A frase ficou suspensa no ar, carregada de possibilidades perigosas. Por alguns segundos, só havia o som da chuva, o estalar do vento e o peso da respiração quente entre nós. Eu abri a boca para responder. Ia dizer alguma coisa, qualquer coisa que pudesse quebrar aquela linha tênue entre o profissional e o… inominável. Mas as palavras simplesmente se recusaram a sair. Meus olhos agora estavam fixos nos seus lábios. Tão perto… E se tudo aquilo que eu havia pensado desde nosso primeiro encontro — o inusitado encontro. Se não fosse apenas um delírio da minha mente? E se Lorenzo Castellani realmente tivesse deixado alguma coisa transpassar daquela máscara inabalável de homem de negócios? Senti meu rosto esquentar, meu coração batia tão rápido que eu jurava ser capaz de ele ouvir — Você… Eu… — comecei a falar com minha voz baixa, embargada por uma emoção que eu não sabia como nomear. Mas, antes que eu pudesse terminar, uma voz ecoou pelo corredor: — Mila? Senhor Castellani? Onde vocês estão? Alguém aí?! A batida forte contra a porta nos trouxe de volta à realidade. Eu recuei um passo, ajeitando a postura como se fosse possível desfazer o que tinha acabado de acontecer ali. Lorenzo, no entanto, manteve-se exatamente onde estava, só desviando os olhos para a porta por um instante antes de voltar a me encarar. — Estamos aqui Júlio! Tivemos um pequeno incidente com a maçaneta da porta, estamos trancados aqui dentro. — respondeu Lorenzo de uma forma firme, sem tirar seus olhos do meu. — Vamos tirar vocês daí em dois minutos. Vou chamar ajuda. — disse Júlio, se afastando. — Não sairemos daqui. A tensão entre nós foi se dissipando, o momento havia passado. Mas algo tinha mudado entre nós