A última taça

O jantar já havia terminado. As taças estavam vazias, mas Raphael e Emilly ainda conversavam animadamente, rindo baixo entre goles de vinho tinto. Cristal, ao lado, observava a cumplicidade entre os dois como quem assiste a um filme antigo que já não quer mais rever.

Ela olhou para o relógio. 22h47.

— Eu vou embora — disse, levantando-se com calma e pegando a clutch sobre a mesa.

Raphael franziu o cenho.

— Espera, a noite ainda está começando. Eu chamo o motorista.

— Não precisa. Eu quero ir sozinha — rebateu, com um sorriso polido e um olhar firme. — Você pode ficar… Aproveita a companhia da sua amiga.

Emilly soltou uma risadinha.

— Ah, Cristal, não seja dramática.

Cristal virou-se para ela, os olhos como lâminas sob a luz baixa do restaurante.

— Não é drama. É exaustão. E eu prefiro caminhar com meu silêncio do que me sentar para mais uma taça entre as suas lembranças com meu marido.

Ela se virou antes que Raphael ou Emilly pudessem responder. O salto dos sapatos dela ecoava firme no mármore, cada passo uma afirmação de que não era mais a mulher submissa que aceitava tudo em silêncio.

Ao sair do restaurante, a noite a abraçou com um vento fresco e cheiro de asfalto molhado. Cristal apertou o casaco ao redor do corpo, mas não parou de andar. Queria sentir o frio na pele, queria que ele levasse embora tudo o que ainda a segurava ali.

As calçadas da cidade estavam quase vazias. Ela caminhava sem rumo definido, apenas guiada pelo desejo de se afastar de tudo. O som de um motor ao longe se aproximou com força contida, até parar ao lado dela.

Era uma moto. E sobre ela, como se tivesse saído diretamente de seus pensamentos mais proibidos, estava Christopher.

Capacete preto, jaqueta de couro, e aquele olhar verde que a despia mesmo à distância.

— Tá andando sozinha pela cidade à noite agora? — ele perguntou, tirando o capacete. — Isso não parece coisa da Cristal que eu conheci.

Ela parou. O coração deu um salto desconcertado, misturado entre alívio e confusão.

— Talvez você não conheça a Cristal de verdade, Christopher.

Ele desceu da moto e se aproximou, olhando-a nos olhos. Estavam tão perto que o ar entre eles parecia elétrico.

— Tô tentando — ele respondeu, com a voz baixa, rouca. — Mas ela vive presa numa gaiola dourada.

— E o que você vai fazer? Vai quebrar a gaiola? — provocou, os olhos brilhando com um desafio novo, ardente.

Christopher deu um passo a mais, tão perto que ela podia sentir o calor do corpo dele.

— Não. — Seus olhos não deixavam os dela. — Mas se você sair por vontade própria… eu te levo pra qualquer lugar.

Cristal ficou em silêncio por um momento. O coração batia forte, desordenado. Pela primeira vez em muito tempo, sentia-se vista. Desejada. Livre.

— Então me leva — sussurrou.

E naquele instante, sem mais uma palavra, Christopher estendeu o capacete para ela. Cristal o pegou com um meio sorriso, os olhos ainda fixos nos dele, e subiu na garupa da moto como se deixasse para trás não só a calçada… mas toda uma vida.

A moto arrancou com um rugido suave, e Cristal sentiu o mundo recuar ao redor dela. Seus braços se fecharam ao redor do corpo de Christopher, e o calor dele atravessava a jaqueta de couro como se quisesse se fundir ao dela. O vento gelado batia no rosto, mas havia algo libertador naquela velocidade, como se, a cada quilômetro, ela deixasse para trás as amarras da esposa perfeita, da mulher invisível.

Christopher não disse uma palavra durante o trajeto. Apenas dirigia com firmeza, o corpo levemente inclinado nas curvas, como se conhecesse aquele caminho de cor — e talvez conhecesse mesmo.

Cristal não perguntou para onde iam. Não precisava. Confiava nele mais do que gostaria de admitir.

Cerca de vinte minutos depois, a moto parou diante de um mirante afastado, onde as luzes da cidade se estendiam como um mar brilhante lá embaixo. Não havia ninguém por perto. Era só o som distante dos carros, o vento e o bater apressado dos corações.

Christopher desligou a moto e virou-se devagar, tirando o capacete.

— Aqui é onde eu venho quando quero lembrar quem eu sou — disse ele, entregando o capacete para Cristal, que o retirou com cuidado.

— E quem você é, Christopher? — ela perguntou, a voz suave, mas cheia de curiosidade.

— Alguém que cansou de fingir que não sente.

Ele a olhou com intensidade, como se as palavras estivessem esperando há anos para sair.

— Eu tentei respeitar você. Respeitar ele. Mas toda vez que eu te vejo sendo deixada de lado como se fosse só um enfeite... eu perco o controle.

Cristal deu um passo mais perto, o cabelo sendo levemente bagunçado pelo vento.

— E o que você quer fazer com esse controle perdido?

Christopher riu baixo, a expressão entre a dor e o desejo.

— Te roubar. Nem que seja só por uma noite.

Ela não respondeu de imediato. Apenas olhou para ele, sentindo o peito apertado e quente ao mesmo tempo. Havia algo feroz e verdadeiro em Christopher, uma paixão crua que a chamava como nenhuma outra.

— Você já me roubou — confessou, com os olhos brilhando sob a luz tênue do luar. — No momento em que me olhou no jardim como se me enxergasse de verdade.

Christopher aproximou-se lentamente, como se cada passo fosse um teste de resistência para os dois. Quando finalmente estavam frente a frente, ele ergueu a mão e tocou o rosto dela com delicadeza.

— Me diz pra parar… — sussurrou.

Cristal encostou a testa na dele, o coração descompassado.

— Se eu dissesse, estaria mentindo.

E naquele instante, ele a beijou. Não com pressa, mas com a urgência de quem esperou tempo demais. Os lábios se encontraram como peças de um quebra-cabeça antigo, e tudo que era silêncio dentro dela se transformou em som.

Ela já não era mais a mesma.

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