Capítulo 3

A noite parecia pesar sobre os telhados da cidade, silenciosa, exceto pelo ronco distante dos carros que cortavam a rua lá embaixo. Quando cheguei em casa, tudo ao redor parecia mais vazio do que nunca.

Deitei na cama, os olhos fixos no teto, como se as manchas de luz e sombra pudessem me dar respostas. Mas só encontrei mais perguntas. Dois dias haviam se passado desde a última visita ao hospital, e Lily continuava igual: imóvel, respirando apenas porque as máquinas se recusavam a deixá-la ir.

Era como se minha vida tivesse congelado naquele instante — o dia do acidente dela. Antes, eu tinha planos, sonhos pequenos, distrações cotidianas que pareciam importantes. Agora, tudo isso era irrelevante, reduzido a nada.

As pessoas que estavam com Lily naquela noite me assombravam como vultos. Sombras sem rosto que a abandonaram na porta do hospital, covardes demais para encarar as consequências. Nunca consegui entender o que se passava na cabeça deles. Nunca consegui perdoar.

Fechei os olhos por um instante, tentando afastar essas imagens. Mas logo outra lembrança tomou espaço: Dylan Wilson.

A proposta dele ainda ecoava na minha mente, como uma promessa distante. Tornar-me sua sócia era mais que um elogio. Era um futuro inteiro colocado em minhas mãos, uma oportunidade que qualquer garota de dezenove anos aceitaria sem pensar duas vezes. Mas eu? Eu só conseguia pensar em Lily.

Como construir algo enquanto ela permanecia presa a um limbo, vivendo por fios e tubos?

Quando recusei, Dylan não discutiu. Apenas me olhou com aquele jeito sereno, como se entendesse mais do que dizia.

— Eu entendo. Fique com sua irmã. Quando estiver pronta, a proposta ainda vai estar aqui.

Essas palavras caíram sobre mim como uma âncora. Ao mesmo tempo em que me libertavam da pressão, me prendiam ao peso da escolha. Será que algum dia eu estaria pronta? Ou eu já havia perdido a mim mesma junto com Lily?

Um som suave interrompeu meus devaneios. Três batidas leves contra a porta do meu quarto.

Meu coração deu um salto, quebrando o ritmo lento do desespero. Respirei fundo antes de responder:

— Entre.

Meu pai entrou devagar, a porta rangendo o mesmo suspiro que eu já conhecia — um som familiar que vinha carregado de noite após noite daquele ano. O rosto dele trazia as marcas de preocupação que o tempo esculpiu: olheiras discretas, os cantos da boca cansados, o mesmo ar de quem aprendeu a disfarçar o desespero com rotina.

— Você precisa comer — disse ele, com voz baixa. — Não pode continuar desse jeito. Desça para o jantar.

Desviei o olhar para o travesseiro, procurando um ponto imóvel no teto que não me lembrasse do hospital.

— Não estou com fome, pai — respondi, sem conseguir disfarçar o peso na voz.

Ele aproximou-se e colocou a mão no meu ombro, um toque simples, firme, que trazia mais conforto do que qualquer palavra.

— Você fala isso todo dia — rebateu ele, gentil —, mas seu corpo precisa de energia. E sua cabeça precisa descansar. Lily precisa de você forte, não assim, se consumindo por dentro.

A verdade nas palavras dele feriu mais que qualquer acusação. Eu sabia que ele tinha razão; sabia também que a culpa era uma presença constante, sentada ao meu lado em cada refeição que eu pulava, em cada noite que passava acordada. Tudo parecia um fardo maior do que meus ombros de dezenove anos podiam suportar.

Ainda assim, havia algo no olhar dele — uma mistura de cansaço e amor incondicional — que tornava impossível manter a resistência. Aquelas linhas no rosto do meu pai eram a prova de batalhas silenciosas que ele travava por nós; eram também um espelho das minhas próprias falhas.

— Tá bom — murmurei finalmente, rendendo-me. — Vou descer.

Ele soltou um pequeno suspiro de alívio e estendeu o braço para me acompanhar. Não falou mais nada, apenas caminhou ao meu lado, passos lentos pelo corredor. O ambiente cheirava a sopa esquecida no fogão e a lençóis lavados; o som do relógio na parede marcava segundos que pareciam medir um tempo mais pesado que o habitual.

Enquanto descíamos as escadas, um nó de culpa apertou meu peito. Percebi, com dor, que vinha me afastando dele desde o acidente. Meu pai sempre se esforçou para ser o porto seguro — o braço forte que segurava as pontas —, mas eu, perdida numa chuva de lembranças e raiva, nem sempre via os sacrifícios que ele fazia.

Ele falava pouco sobre cansaço; preferia mostrar cuidado em pequenas ações: aquecer minha sopa, encher a garrafa de água, desligar as luzes do corredor. Aquilo, aos poucos, era o que restava de normalidade. E naquela normalidade frágil, entendi que aceitar o convite para jantar não era apenas obedecer a um pedido — era permitir que ainda existisse um fio de vida cotidiana que poderia, talvez, me puxar de volta.

Aos poucos, enquanto nos aproximávamos da cozinha, senti que aquele gesto simples — sentar à mesa com meu pai — era um começo. Não apagava a dor nem resolvia as perguntas sem resposta, mas era um passo tímido para fora do buraco onde eu vinha morando.

Meu pai estava de costas, ajeitando a travessa fumegante no centro da mesa. A toalha, esticada sem dobras, o prato bem alinhado, os talheres posicionados com o cuidado de quem acreditava que pequenos detalhes ainda podiam manter algo inteiro dentro de nós. O silêncio, quebrado apenas pelo tilintar da louça, parecia gritar dentro do cômodo.

— Você fez meu prato favorito... — minha voz saiu baixa, quase surpresa.

Ele se virou devagar. O sorriso que surgiu em seus lábios era cansado, mas havia nele uma ternura que me atingiu em cheio.

— Achei que talvez ajudasse a melhorar o seu humor.

Senti o peso da culpa me esmagando, ainda mais do que o cheiro familiar que enchia a cozinha.

— Pai... me desculpe. — A voz embargou, mas continuei. — Eu me afastei tanto de você desde que tudo isso aconteceu... Eu não sei como sair disso, como... como me sentir melhor.

Ele não respondeu de imediato. Apenas deu dois passos até mim. Depois, inclinou-se e encostou os lábios na minha testa, um gesto simples que carregava mais força do que qualquer promessa. Em seguida, me envolveu em um abraço firme, caloroso, que rompeu a muralha que eu vinha erguendo há meses.

— Vai ficar tudo bem — murmurou, a voz grave, mas cheia de convicção. — Nós vamos passar por isso juntos. Lily precisa de nós dois fortes. E eu tô aqui. Sempre.

Por um instante, deixei que aquele abraço me segurasse inteira. Foi como se o tempo parasse, como se finalmente houvesse uma pausa na tempestade que nos arrastava desde o acidente. Um respiro breve, mas real.

Antes que eu conseguisse dizer qualquer coisa, três batidas soaram na porta, firmes, quebrando o momento. Meu pai me soltou suavemente, e eu enxuguei as lágrimas apressada, tentando recuperar o controle.

— Eu vou ver quem é — disse, respirando fundo.

Quando abri a porta, congelei. Olivia estava na varanda, com o vento da noite bagunçando seus cabelos compridos. Seu olhar oscilava entre preocupação e hesitação, como se tivesse ensaiado mil vezes antes de aparecer ali.

— Oi... — disse ela, com a voz suave. — Desculpe aparecer sem avisar, mas... eu preciso falar com você.

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