Mundo de ficçãoIniciar sessãoA ÚLTIMA CARTA do motorista abriu a porta traseira do carro preto e silencioso, um veículo que parecia mais um caixão funerário do que uma simples máquina de transporte. Opal entrou devagar, segurando a bolsa contra o peito como se fosse um escudo ineficaz, um símbolo de proteção que agora lhe oferecia apenas uma segurança ilusória. O carro partiu e ela começou a chorar, incapaz de conter as lágrimas que escorriam pelo seu rosto. Não era um choro discreto — era o lamento de alguém cuja esperança havia sido arrasada com a brutalidade de uma tempestade. As lágrimas continuavam a escorregar, como se algo dentro dela tivesse se quebrado de vez, revelando a fragilidade de sua alma. O motorista, treinado para não se envolver, permaneceu em silêncio, obedecendo ao protocolo: nunca falar, nunca consolar, nunca se manifestar. Ele mantinha os olhos fixos na estrada, como se a ignorância desse momento pudesse aliviar a pesada carga emocional que pairava no ar.
Quando atravessaram a ponte iluminada, Opal enxugou os olhos com a manga da blusa, ciente de que as lágrimas voltariam com a mesma intensidade. As palavras do advogado, o frio e cruel Árticos, ressoavam em sua mente como correntes forjadas em ferro: “Minha propriedade.” “Transferência de tutela.” “Escrava.” Essas sentenças não eram apenas palavras; eram sentenças de morte simbólica – a morte de sua liberdade e da infância que costumava ter. Ela pressionou a testa contra o vidro gelado, tentando recuperar o ar e filtrar o barulho ensurdecedor de seus pensamentos turbulentos. Meia hora depois, o carro parou em frente ao pequeno prédio antigo onde morava. A escada externa, com seu concreto frio e pintura descascada, parecia desafiadora, oferecendo apenas uma luz fraca que mal iluminava a escuridão da situação em que estava inserida. O motorista saiu primeiro e, de forma formal, disse: — Tem dez minutos. Pegue somente o essencial. Não toque em mais nada. As palavras soaram como um último aviso, uma bondade irônica em meio a um caos total. Opal assentiu, sua voz quase inaudível, sufocada pela dor e incredulidade. Subiu as escadas, quase tropeçando em seus próprios pensamentos confusos. Ao abrir a porta, a pequena sala parecia mais triste do que nunca, como se o ar estivesse impregnado de nostalgia e desespero. A ausência do pai, sua figura agora tão distante, era um golpe devastador, um vazio que ecoava em cada canto do apartamento. Caminhou até o quarto e pegou a mochila azul da época escolar, um relicário de tempos passados e inocência perdida. — Roupas… — sussurrou para si mesma, como se recitar um feitiço que pudesse amolecer a dureza da realidade. Enquanto folheava o guarda-roupa, suas mãos pareciam agir por conta própria; escolheu algumas calças, três camisetas simples e o casaco que a mãe havia comprado no último Natal, antes que a depressão a consumisse como uma sombra voraz. — Guardou tudo de forma mecânica, com cada peça de roupa representando não apenas os últimos vestígios de sua infância, mas também a dor da transição que estava prestes a acontecer. — Depois, abriu a gaveta mais baixa e encontrou uma caixa branca com uma fita azul desbotada: o álbum. — Suas mãos tremiam ao pegá-lo, e o cheiro do papel guardado a envolveu como um abraço nostálgico que a fazia sentir-se em casa, mesmo que essa casa estivesse desmoronando ao seu redor. As fotos a golpearam como ondas de um mar revolto: — sua mãe sorrindo na praia, as duas abraçadas no aniversário de Opal, a mãe segurando a boneca favorita da infância, uma testemunha silenciosa da alegria que agora parecia tão distante. — Cada imagem era como uma faca, concentrando-se em memórias que pareciam longínquas e, ao mesmo tempo, intensamente presentes. — Apertou o álbum contra o peito e soltou outro soluço, uma combinação de amor e dor que a fez sentir-se ainda mais sozinha. Ao voltar à mesa da cozinha, encontrou um bloco de papel, um simples objeto que agora carregava o peso de suas emoções. — Sentou-se, respirou fundo e, com a mão trêmula, escreveu: — "Pai, a última coisa que eu esperava na vida era me tornar uma moeda de troca das suas dívidas. Você matou a mamãe de desgosto. — Primeiro tirou dela a paz, depois o orgulho e, por fim, a vontade de viver. — E hoje… você tirou de mim qualquer escolha sobre o meu futuro. — O senhor vendeu sua própria filha. — Fui entregue como escrava a um homem que não conheço. Não sei o que ele fará comigo. Não sei que vida terei daqui para frente. — Só espero que Deus tenha misericórdia de mim… e que você viva o suficiente para se arrepender de todos os seus pecados. — Eu te amei, pai, mesmo quando você não merecia, espero que seja feliz, pois eu não sei o meu futuro. — Agora, acabou," ela dobrou a carta e a colocou sobre a mesa, embaixo do saleiro, evitando que o vento a levasse como uma folha solta na tempestade de sua vida. Antes de sair, olhou o apartamento pela última vez: a casa simples, o sofá velho e a chaleira da mãe… tudo que ela conhecia. —Não mais, desceu as escadas com lágrimas renovadas, segurando a mochila e o álbum contra o peito, como se aquelas recordações pudessem oferecer-lhe algum consolo na escuridão que a aguardava. O motorista abriu a porta para ela e perguntou: — Acabou? — Ela apenas assentiu, um movimento que carregava um mundo de dor e resignação. —Ele fechou a porta atrás dela e o carro deslizou suavemente pela rua escura, como um barco à deriva em um mar tempestuoso. — Opal não olhou para trás, não porque não quisesse, mas porque sabia que, a partir daquele momento… não havia mais volta, e a única coisa que tinha eram as memórias e a esperança de que um dia, mesmo que à distância, pudesse redescobrir a luz que agora parecia tão inatingível.






