A cirurgia daquela tarde era delicada: uma fratura exposta no fêmur, associada a múltiplas lesões vasculares. A sala estava cheia — dois anestesistas, instrumentadores, residentes, e os olhares atentos da comissão de avaliação interna do hospital, que observava os procedimentos em situações de alta complexidade.O ambiente era uma panela de pressão.Helena ajustava as pinças com precisão, mas seu coração batia rápido demais. Talvez fosse o cansaço acumulado. Talvez fosse o peso de tudo o que vinha carregando nos últimos dias — o afastamento de Rafael, a raiva contida, o reencontro com fantasmas antigos.Ela tentava se concentrar, mas havia uma tensão estranha em seus movimentos, uma hesitação mínima que não passou despercebida aos olhos atentos de Rafael.— Clamp vascular — pediu ele, com calma.Helena entregou, mas no instante seguinte, ao manipular o campo operatório, sua mão falhou — um deslize ínfimo, quase imperceptível, m
A sirene da emergência cortou o hospital como um trovão. Todos os profissionais do plantão se mobilizaram instantaneamente. Helena largou os papéis que preenchia na estação de enfermagem e correu para a sala de trauma.— Acidente grave na rodovia — informou um dos paramédicos. — Dois adultos, múltiplas fraturas e possível hemorragia interna.Helena nem teve tempo de respirar antes de ouvir a voz que ainda provocava arrepios em sua pele:— Ferreira, venha comigo — ordenou Rafael, já de luvas e máscara.Por instinto, ela obedeceu, os passos acelerados tentando acompanhar os dele. As luzes frias do hospital piscavam enquanto a tensão aumentava no ar como uma tempestade prestes a explodir.O paciente era um homem jovem, inconsciente, com ferimentos graves no tórax e na perna esquerda. O sangue escorria pela maca, tingindo os lençóis de vermelho escuro.— Preciso de acesso venoso agora! — Rafael gritou para a eq
A sala da comissão disciplinar parecia ainda mais fria do que os corredores do hospital. Helena se sentou na cadeira de frente para a longa mesa, onde três médicos — membros veteranos da diretoria — folheavam papéis com expressões carrancudas.O presidente da comissão, Dr. Álvaro Mendes, pigarreou antes de falar: — Enfermeira Helena Ferreira, estamos aqui para discutir o incidente ocorrido na sala de trauma ontem à noite. Sua falha em reconhecer os sinais iniciais do choque hipovolêmico no paciente quase comprometeu o procedimento.Helena manteve o rosto impassível, embora por dentro as palavras espetassem como facas.— Dr. Rafael Moretti assumiu a responsabilidade pela falha — continuou a Dra. Norma Vasconcellos, sem levantar os olhos dos documentos —, mas, revisando as imagens e relatórios, ficou evidente que o erro inicial foi seu.— Rafael Moretti foi suspenso — acrescentou o terceiro membro, Dr. Ernesto Lobo, como se aquilo f
O hospital seguia seu ritmo frio e impessoal, como se nada tivesse acontecido. Mas para Helena e Rafael, cada passo, cada olhar evitado, parecia pesar toneladas.Helena estava sentada no terraço dos fundos, o jaleco jogado ao lado, a cabeça apoiada nos joelhos. O céu noturno parecia pesado, tão pesado quanto seu peito.Ela pensava em tudo que havia dito — e em tudo que ficou entalado. Eles nunca tinham sido nada além de colegas. Nunca tinham cruzado aquela linha invisível. Mas bastava estar no mesmo ambiente para que a tensão entre eles fosse quase sufocante. Desejo, ressentimento, admiração... uma mistura tóxica que nem o tempo, nem a dor tinham conseguido dissolver.E ainda assim, lá estava ela — se doendo por alguém que nunca lhe pertenceu.Helena soltou uma risada seca. Talvez esse fosse seu erro desde o começo: esperar demais de quem sempre se manteve distante.Rafael caminhava sozinho pelos c
O aviso veio como um golpe seco, inesperado, que atravessou o hospital inteiro.Rafael Moretti fora oficialmente reintegrado. A notícia se espalhou rápido, trazendo alívio entre os profissionais da emergência. Ele era, afinal, o melhor cirurgião que já passara por ali — e mesmo seus colegas mais competitivos sabiam que o hospital não sobreviveria ao caos sem ele.Mas a segunda parte do comunicado caiu como uma bomba.Helena Ferreira seria desligada.A alegação era "conduta inadequada e interferência em processos administrativos". Nada além de uma desculpa bonita para encobrir a sede de punição da comissão.Assim que recebeu a informação, Rafael sentiu o estômago se revirar. Não pensou. Não hesitou.Largou o que estava fazendo, tirou as luvas cirúrgicas ainda sujas de sangue e saiu do centro cirúrgico, atravessando os corredores com passos firmes e perigosamente silenciosos.Pegou o celular, o númer
Assim que a porta se fechou atrás de Rafael, Helena deslizou pela parede até sentar-se no chão frio do vestiário. Sua cabeça girava, os lábios formigavam como se ele realmente a tivesse beijado — mas ele não beijou.O que doía mais: o fato de ele ter se afastado ou o fato de ela ter desejado que ele não tivesse?Ela apertou os joelhos contra o peito, respirando fundo, tentando ignorar o calor persistente que invadia seu corpo, o desejo latente que nenhuma quantidade de lógica conseguia apagar.Não era só atração física. Era o peso de tudo o que tinham passado, de todas as coisas não ditas, dos olhares, dos silêncios carregados.E agora... agora era tarde demais para fingir que nada existia.Helena fechou os olhos e encostou a cabeça nos joelhos, tentando se recompor.Tentando, inutilmente, esquecer o quanto queria sentir de verdade a boca dele na sua.Rafael atravessou o corredor feito uma tempestade sile
Helena Ferreira passou pela porta do centro cirúrgico com os nervos à flor da pele. O hospital tinha sido seu novo lar nos últimos seis meses, mas a unidade de cirurgias era um território desconhecido para ela. Ela já tinha lidado com emergências e situações de risco, mas trabalhar ao lado de um cirurgião tão renomado e meticuloso quanto o Dr. Rafael Moretti, com sua reputação impecável, era uma realidade desafiadora.Ela ajustou a máscara sobre o rosto, sentindo o cheiro característico de álcool e antisepsia no ar, e seguiu para a mesa de operações. A sala estava fria, iluminada por lâmpadas fluorescentes que faziam a pele pálida dos pacientes refletir de forma quase fantasmagórica. Helena passou a mão pelos cabelos presos em um coque e olhou para a figura que dominava o ambiente.Dr. Rafael Moretti estava de pé, como uma estátua de pedra, com as mãos cruzadas sobre o peito, observando a equipe se preparar para a cirurgia. Sua postura era rígida, impecável, e seus olhos pareciam afia
Helena não conseguiu tirar Rafael Moretti da cabeça, mesmo após o término da cirurgia. Ela havia entrado naquele centro cirúrgico com a confiança de quem sabe o que está fazendo, mas sair dali com o peso da frustração e da irritação foi algo novo para ela. Ele não havia sido rude, exatamente, mas seu tom autoritário e sua falta de reconhecimento a deixaram desconfortável. Ela estava acostumada a trabalhar com médicos exigentes, mas havia algo no jeito de Rafael que a fazia sentir como se fosse invisível, como se fosse só uma peça no quebra-cabeça da sua grandiosidade.Ela estava no vestiário do hospital, ainda com o avental de cirurgia, lavando as mãos com mais força do que o necessário, tentando descarregar a raiva que começava a se acumular. A água fria estava lhe dando um pouco de alívio, mas a irritação em seu peito não desaparecia. Ao olhar para o espelho, viu o reflexo de si mesma: seus cabelos castanhos, agora molhados, e o olhar cansado. Ela nunca fora de se deixar abalar por