Quando volto para o porão, Long está ao celular. Ele para de murmurar algo assim que me vê e, com um “nos falamos mais tarde”, desliga o telefone, se aproximando de mim.
— Volto amanhã para sedá-lo de novo — diz, apontando para a cesta no canto do colchão. — Aí está tudo o que você precisa. Cuide bem dele. Vou manter as coisas lá em cima sob controle enquanto você cuida do nosso passaporte para fora deste inferno.
Assinto com a mandíbula tensa, os olhos fixos no ferido como se ele fosse uma bomba prestes a explodir.
Long deixa um beijo na minha testa e se afasta. O silêncio ao redor me engole por completo.
Resignada, caminho até a cesta, tentando controlar o tremor nas mãos.
Abro a tampa de vime e encontro o essencial: bandagens limpas, álcool, pomadas cicatrizantes, linha e agulha cirúrgica.
Pelo menos o Long pensou em tudo.
Vou até uma das garrafas de água, derramando o conteúdo sobre uma bacia. Terei que limpar tudo antes de começar a cuidar de cada ferimento.
Com cuidado, corto os restos da camisa grudada em seu peito. Uma de suas feridas é assustadora, profunda e irregular, como se alguém tivesse tentado arrancar a alma dele com as próprias mãos. A pele lateja, viva, e o sangue escorre devagar, como se lamentasse a dor que foi infligida.
— Ótimo. Eu vou ter que te costurar — murmuro, mais para mim do que para ele. — Vê se não morre. Não complica ainda mais minha vida.
Molho o pano na água e já deixo outro pronto para o álcool. Começo a limpar o corte. Seu corpo se contrai levemente, mesmo sob sedação. A testa franze, como se ele lutasse para permanecer consciente.
— Desculpa... — sussurro, pressionando o pano contra a carne ferida. — Seja bonzinho... aguente firme.
O cheiro de sangue e álcool preenche o ar, pesado e metálico. Após limpar sua pele e desinfetar, começo a costura com o máximo de precisão que consigo. Ponto por ponto, respiro fundo para conter o pânico.
Cada ponto parece costurar também minha própria sanidade.
— Sabe... o Long é meio louco, mas ele é gente boa. Espero que você não o decepcione.
Termino o curativo com uma camada de gaze firme e sigo para as mãos inchadas, marcadas por hematomas antigos e recentes. São largas, tão grandes que me sinto pequena ao lado delas. Alguns dos dedos estão com pequenos cortes, então, depois de limpar os ferimentos, aplico a pomada com cuidado.
E assim me preparo para a segunda fase da minha tormenta: encarar aquelas costas marcadas por cada chicotada que ele recebeu.
Com muito esforço, consigo virá-lo. Mas logo me amaldiçoo, a ferida que acabei de costurar pode abrir. Agora já era.
Ajeito sua cabeça com cuidado e começo a limpar as costas, que estão ainda piores do que a frente.
No lado direito, há uma tatuagem: uma caveira com uma adaga atravessada por dentro da boca, cercada por espinhos. Logo abaixo, há uma frase em latim, mas os cortes que passam por cima tornam difícil decifrá-la por completo.
Volto a focar na minha obrigação, limpando cada ferida com o máximo de cuidado. Assim que termino, com ainda mais esforço, o coloco de volta na posição anterior. Ele solta um leve gemido e eu paraliso.
Fico imóvel, o coração preso na garganta, até que, após alguns segundos sem mais ruídos da parte dele, volto a limpar seu rosto e pescoço com o pano úmido.
Quando tudo finalmente termina, deixo meu corpo cair no chão ao lado dele, exausta. Os joelhos doem, os ombros queimam, e as mãos... tremem como folhas ao vento.
Observo aquele homem destruído à minha frente. Mas mesmo quebrado, há algo nele que chama minha atenção. Uma força estranha, silenciosa. Uma presença que, mesmo inconsciente, impõe respeito.
Ou talvez... esperança.
— Você tem ideia do que está fazendo? — pergunto baixinho, como se esperasse uma resposta. — Espero que sim... porque, se tudo der errado, você não será o único a morrer.
Encosto a cabeça na parede de pedra fria, fecho os olhos por um instante... e escuto.
Lá em cima, a casa respira mentiras.
Aqui embaixo, só restamos eu... e a última esperança de fuga.
Espero, do fundo do peito, que Long esteja certo... porque se ele estiver errado, não vai sobrar nada de nós para contar história.