CAPÍTULO 7
“Às vezes, acho que desperdiçamos nossas vidas tentando provar que não estamos quebrados.” Algumas manhãs têm cheiro de lembrança. E, naquela terça-feira, quando abri a janela da casa dos fundos, senti como se o ar carregasse uma memória que ainda não era minha. O orvalho sobre o chão de pedra, o silêncio do vilarejo acordando devagar, a fumaça de alguma lenha queimada ao longe… Tudo parecia suspenso no tempo, como se o mundo esperasse que eu respirasse fundo antes de continuar. Miguel não estava à vista. O casarão estava silencioso, como se até ele soubesse que há dias em que a gente precisa começar devagar. Preparei o café no piloto automático, os movimentos aprendidos pela repetição e pelo hábito de me ocupar quando não quero pensar. Mas pensar é um bicho insistente. Sentei no degrau da varanda com minha xícara e o caderno de anotações. Só que, ao invés de escrever sobre colunas comprometidas ou relevos entalhados na madeira, escrevi: “Não sei o que fazer com o que sinto.” E fechei o caderno antes que ele me denunciasse. Porque a verdade era essa. Eu não sabia o que fazer com os silêncios que Miguel deixava, com os olhares que demoravam demais, com o jeito como ele me fazia querer ficar quando eu passei tanto tempo querendo ir embora de tudo. Ele não era gentil no sentido tradicional. Não me fazia rir com frequência, nem dizia coisas doces. Mas havia algo nele que tocava em mim de um jeito que ninguém havia tocado desde muito antes de André. Talvez porque Miguel não tentasse me salvar. Ele apenas ficava. E, depois de tanto tempo fugindo, isso parecia suficiente para me desmontar. Trabalhamos quase o dia inteiro sem trocar mais do que palavras técnicas. O ritmo da obra havia acelerado — uma parte por conta do bom andamento, outra porque Miguel queria terminar tudo antes das chuvas pesadas de verão. — A estrutura do telhado está comprometida nessa lateral. — ele disse, mostrando a planta. — Podemos reforçar com escoras novas, mas precisamos decidir se mantemos a madeira original ou trocamos por uma mais segura. — E perder o desenho? — perguntei, traçando com o dedo os arabescos que, apesar da deterioração, ainda contavam a história do casarão. — Talvez não dê para ter os dois. — Talvez dê. Ele me olhou por um segundo. Um daqueles olhares em que ele tentava adivinhar até onde eu ia, se era teimosia ou paixão pelo ofício. Miguel parecia sempre em alerta. Como se amar alguma coisa demais fosse perigosamente próximo de perder. — Você acredita em preservar a todo custo? — Acredito em preservar o que tem alma. — respondi. — E essa casa tem. Ele não disse nada. Mas continuou me olhando. E eu soube que ele não estava falando só da casa. … Naquele fim de tarde, saí para caminhar pelas trilhas atrás do casarão. Era um velho costume meu — andar até o corpo se cansar e a mente parar de gritar. Mas, no interior, as trilhas tinham outra função: revelavam pedaços de mundo que a gente não sabia que existia. Subi até um ponto alto, de onde dava pra ver o vilarejo inteiro. As casas coloniais pareciam enfileiradas como peças de xadrez. A igreja com sua torre branca, os telhados avermelhados, o som distante de crianças brincando na rua de pedra. E, ali, pela primeira vez desde que cheguei, senti que talvez fosse possível ficar. Ficar de verdade. Miguel apareceu quando eu já estava descendo. Suado, com uma caixa de ferramentas na mão e a expressão concentrada. — Me disseram que você subiu. — ele disse, como se procurasse uma justificativa para a própria presença ali. — Precisa de mim no casarão? — Não. Só... achei que podia querer companhia. Aquilo era novo. Inesperado. E perigoso. — Querer companhia é diferente de precisar. — rebati, sem saber se era uma provocação ou um pedido de distância. — Eu sei. — respondeu. — Mas às vezes a gente não percebe a diferença até alguém ficar. … Sentamos lado a lado no banco da varanda dos fundos. O céu começava a escurecer, tingido de lilás e laranja. Um daqueles fins de tarde que não cabem em fotografia. — Você ainda ama ela? — perguntei, sem encarar diretamente. Era uma pergunta que não planejei. Mas saiu. Como um desabafo que ficou entalado por tempo demais. Miguel demorou a responder. — Não do jeito que se ama alguém vivo. — ele disse, baixo. — Amo a lembrança. Amo o que a gente tinha. Mas... o tempo muda a forma do amor. E às vezes o que resta é só saudade mal resolvida. Fiquei em silêncio. Aquelas palavras, ainda que duras, me tocaram de um jeito que poucas coisas tocaram nos últimos anos. — Eu me acostumei a amar em silêncio. — sussurrei. — Porque gritar nunca fez diferença. — Quem te ensinou isso? — Alguém que me fez acreditar que eu era difícil demais de amar. Miguel virou o rosto na minha direção. Seus olhos eram escuros como café forte, e tão intensos quanto um mergulho sem aviso. — Ele estava errado. — disse. E, naquele instante, eu soube que ele não estava tentando me consolar. Estava afirmando um fato. Um que ele havia aprendido observando. … Os dias seguintes se arrastaram entre marteladas, esquadros e suspiros não ditos. Eu sentia que algo entre nós se movia devagar, como uma peça de dominó prestes a tombar — só precisava de um pequeno empurrão. E o empurrão veio numa noite sem luz, novamente. A tempestade pegou todos de surpresa. Ventos fortes, relâmpagos riscando o céu e a energia elétrica falhando de novo. Corri para fechar as janelas da casa dos fundos, tentando evitar que a chuva molhasse tudo, quando ouvi a batida na porta. Miguel. — Eu trouxe velas. — disse, com um sorriso tímido. — E companhia? — perguntei, rindo. — Talvez também. Sentamos no chão, como naquela outra noite, dividindo o calor da vela e a escuridão ao redor. — Você tem medo do escuro? — perguntei, tentando disfarçar o que eu realmente queria perguntar. — Do escuro não. Mas do que ele revela, às vezes. — Como assim? — A gente se acostuma com as distrações da luz. Mas no escuro... sobra só o que é real. E isso assusta. Ficamos em silêncio por longos minutos. Até que, sem pensar, deixei minha mão escorregar sobre a dele. Miguel não recuou. Seus dedos se fecharam sobre os meus, firmes, quentes. E, de repente, não havia mais escuridão capaz de assustar. Porque naquele toque, havia tudo que eu precisava para continuar. O silêncio entre nós era o tipo mais barulhento que existe — aquele cheio de tudo o que não se diz. Eu sentia meu coração pulsando alto, como se meu corpo inteiro tivesse se tornado um tambor. E mesmo assim, não havia medo. Havia uma estranha paz naquele toque, como se minha pele finalmente tivesse encontrado um lugar para repousar depois de tanto tempo em guerra. Miguel me olhou como quem atravessa mil portas. E, naquele olhar, havia algo de pergunta, de confissão e de cuidado. Como se ele quisesse saber se eu estava pronta, não para ele, mas para mim mesma. — Faz quanto tempo? — ele perguntou. — Desde quando? — Desde a última vez que você deixou alguém se aproximar assim. Fechei os olhos. Respirei fundo. Engoli o nó que crescia na garganta. — Desde antes do luto. — sussurrei. — Desde antes da perda real, houve uma perda silenciosa. A de mim mesma. Ele assentiu devagar, apertando minha mão com delicadeza. — Às vezes, a gente só precisa de alguém que fique ao lado enquanto a gente se procura. E, naquela noite, foi o que ele fez. Não me beijou. Não forçou promessas. Só ficou. Comigo. No escuro. Me deixando existir inteira — com minhas partes quebradas, meus pedaços soltos e todas as coisas que ainda estavam por costurar. A tempestade passou, mas deixou marcas. No céu, nas árvores, no chão. E também em mim. Era como se algo tivesse sido limpo pela chuva. Uma clareza depois do turbilhão. Nos dias seguintes, meu corpo seguiu o ritmo da obra, mas minha mente... minha mente voltava sempre àquela noite. Aos olhos de Miguel. À forma como ele segurou minha mão como se fosse uma âncora e um convite ao mesmo tempo. E, talvez por isso, comecei a escrever de novo. Não só os relatórios. Não só os cálculos. Mas escrever de verdade. Voltei a usar os cadernos antigos, os que ficaram em caixas durante anos. Páginas de letras tortas, rabiscos, metáforas e segredos. — Escreve poesia? — ele perguntou uma tarde, ao me ver com o caderno aberto no colo. — Não sei se chega a ser poesia. É mais... sobrevivência. Ele sentou ao meu lado na varanda, aquele lugar que, sem perceber, havia se tornado nosso refúgio. — Posso ouvir? — Talvez um dia. — Tudo bem. — ele disse, como sempre, respeitando meus tempos. — Mas, por algum motivo, acho que suas palavras curam. Sorri. Porque, pela primeira vez em muito tempo, eu queria ser lida. … Naquele fim de semana, o vilarejo celebrou uma festa tradicional — uma espécie de encontro cultural com música, barracas de comida, danças antigas e muita gente na praça central. Eu quase não fui. Mas Miguel apareceu na minha porta no fim da tarde, com uma expressão que misturava insistência e timidez. — Vai me fazer dançar? — provoquei. — Vou fazer você viver um pouco fora do canteiro de obras. E foi assim que fui parar sob luzes coloridas, cercada por crianças correndo, velhos tocando sanfona e o cheiro de pão de queijo recém-assado. Miguel não era de muitos sorrisos. Mas aquela noite, vi um dele se formar devagar enquanto observávamos uma dupla dançando forró como se fossem feitos um para o outro. — Você dança? — perguntei, desafiando. — Só quando vale a pena passar vergonha. — E eu valeria? — Você vale mais do que eu sei dizer. Aquela frase me atravessou. Como um sopro. Como um choque. Como uma certeza. E, pela primeira vez, me permiti pensar: E se... E se dessa vez for diferente? E se ele não for embora? E se eu não estiver quebrada demais? A madrugada chegou silenciosa. Voltamos caminhando, devagar, como quem não quer que a noite acabe. Quando chegamos à casa dos fundos, ele hesitou. Seus olhos buscaram os meus como se pedissem permissão. — Posso ficar mais um pouco? — perguntou. Assenti. Porque, naquele instante, não havia nenhum “não” dentro de mim. Entramos em silêncio. Ele se sentou no sofá, eu preparei um chá como pretexto. Mas sabíamos que não era o chá. Nem a conversa. Era a presença. A permissão mútua para existir ali, sem máscaras. — Às vezes eu penso que nunca vou conseguir amar de novo do jeito certo. — confessei, sentando ao seu lado. — Não existe jeito certo. Existe o seu jeito. E alguém que fique mesmo assim. — E se eu não souber ficar? — A gente aprende. Juntos. O silêncio que veio depois foi diferente de todos os outros. Era um silêncio cheio de paz. De promessas que não precisavam ser ditas. E então, ele encostou sua testa na minha. E ficamos assim por minutos inteiros. Respirando o mesmo ar. Ouvindo os mesmos fantasmas. Sentindo os mesmos medos. Mas juntos. Não houve beijo naquela noite. Nem necessidade. Houve presença. E, para quem passou anos ausente de si, isso era mais do que o bastante. … No domingo, fomos visitar um sítio histórico próximo, parte do inventário da restauração do vilarejo. O caminho era cheio de curvas, subidas íngremes e vistas de tirar o fôlego. Paramos no topo de uma colina, onde havia uma igrejinha antiga, branca, rodeada por árvores centenárias. — Gosto de vir aqui quando preciso lembrar que o tempo não destrói tudo. — Miguel disse. — Às vezes ele só muda a forma. — Como nós. Olhei para ele. E, naquele instante, soube. Eu estava me apaixonando. Não da forma caótica de antes. Não como uma fuga. Não como uma anestesia. Mas como um despertar. Um recomeço lento. Seguro. Real. … Naquela noite, de volta à casa dos fundos, sentei para escrever no meu caderno. Mas, pela primeira vez, não escrevi tristeza. Escrevi esperança. "Depois de nós... há sempre um agora esperando para ser escolhido." Fechei o caderno. Olhei para o céu. E, no fundo do peito, algo me disse: Essa história ainda está só começando.