CAPÍTULO 6
Resgata-me Porque estou me afogando no silêncio Rescue - Lauren Daigle … O cheiro de café fresco me acordou antes mesmo da luz do sol. Abri os olhos devagar, com aquela sensação confusa de não saber exatamente onde estou. Me levou alguns segundos para lembrar da casa, da noite anterior, da manta que ele trouxe, da voz dele ecoando baixinho naquela pequena sala. Era cedo, o céu ainda estava mais cinza do que azul, e umidade escorria pela vidraça da janela. Levantei devagar, os pés ainda frios tocando o chão, e enrolei o cobertor nos ombros. Havia algo de íntimo demais naquele silêncio entre a madrugada e o dia. Quando abri a porta, encontrei Miguel em pé com uma caneca na mão. Ele estava com uma blusa de moletom fina, os cabelos bagunçados, e os olhos cansados — mas havia algo leve nele. Um gesto pequeno, uma ausência de armadura. — Fiz café — disse, como quem se desculpa por alguma coisa. — Obrigada — respondi, minha voz ainda rouca da noite. Sentei-me no degrau da entrada, deixando o cobertor escorregar um pouco pelos braços. O vapor da caneca dançava no ar como se tivesse algo a dizer que a gente não sabia como traduzir. Ele sentou-se ao meu lado. O ombro dele ficou a poucos centímetros do meu. Tão perto, mas ainda respeitando aquele espaço invisível que construímos. — Dormiu bem? — ele perguntou, olhando para a frente, como se não quisesse parecer interessado demais. — Dormi. Melhor do que eu esperava. — Dei um gole no café, sentindo o calor escorrer pela garganta. — Obrigada por ontem. Ele fez que sim com a cabeça, e ficamos ali por um tempo. Só ouvindo os pássaros acordando e o som do mundo voltando a respirar. Tive a impressão de que, naquele instante, nenhum de nós precisava explicar nada. … Os dias seguintes foram como uma dança silenciosa. Miguel e eu seguíamos rotinas paralelas, mas com interseções suaves — quase como se o universo tivesse decidido nos alinhar sem alarde. Ele me observava trabalhando no projeto da casa com um olhar atento. De vez em quando, apontava detalhes, sugeria materiais, dividia histórias curtas sobre como a casa era antigamente. Uma vez, ao ver que eu estava com o cabelo preso de qualquer jeito e coberta de poeira, ele largou as ferramentas e disse: — Vai acabar se machucando se subir nessa escada sozinha. Deixa que eu seguro. O modo como ele falou, direto e prático, contrastava com o cuidado nos gestos. Não era sobre a escada. Era sobre estar por perto, mesmo sem dizer. Outra vez, trouxe um ventilador pequeno e colocou ao meu lado sem uma palavra. Só quando fui agradecer, ele respondeu: — Você franze a testa quando está muito calor. Achei que podia ajudar. Não era o ventilador. Era ele me vendo. … Certa tarde, eu o encontrei mexendo em um antigo armário na sala principal. Havia caixas empilhadas, álbuns antigos, objetos de valor sentimental. Sentei ao seu lado e comecei a ajudá-lo, sem pedir permissão. Ele não reclamou. — Essa casa guarda tudo. Até o que a gente queria esquecer — disse ele, tirando um porta-retrato empoeirado com uma mulher de sorriso largo. — Sua mãe? — perguntei, baixo. — Não. Minha tia. Foi ela quem cuidou da minha avó quando ela começou a esquecer as coisas. A gente... se afastou um pouco depois que ela morreu. — Você sente falta dela? Ele demorou a responder. Encarava o porta-retrato como se as respostas estivessem ali, entre o vidro rachado e a moldura gasta. — Às vezes. Mas não sei se sinto falta dela ou de quem eu era quando ela estava viva. Fiquei em silêncio. Era aquela espécie de dor que não se consola com palavras. … Naquela mesma noite, a energia caiu de novo. Eu estava organizando papéis quando a escuridão se derramou pela casa como tinta. E, de novo, pouco tempo depois, ouvi batidas suaves na porta. — Trouxe mais velas — Miguel disse, sorrindo de lado. — Achei que já era tradição. Dessa vez, não fiz cerimônia. O convidei para entrar, acendi duas velas sobre a mesa, e dividimos o jantar improvisado — pão velho, queijo e uma garrafa de suco quente. Sentamos no chão, como da última vez, mas havia uma nova proximidade no ar. Os joelhos quase encostando, as mãos dividindo a mesma vela para acender mais uma. Falamos sobre coisas simples. As melhores e piores comidas que já comemos. Um filme ruim que ele insistiu em defender. A primeira vez que cada um foi ao mar. Em algum momento, nos calamos. E não porque o assunto acabou — mas porque não era necessário falar. — Posso te perguntar uma coisa? — ele disse, com a voz rouca. Assenti, olhando para ele sob a luz trêmula. — Por que você veio mesmo pra cá? Demorei um pouco. Não porque eu não soubesse, mas porque responder envolvia admitir. — Porque eu não sabia mais onde pertencia. — Suspirei. — E porque... de alguma forma, esse lugar me lembrou que, talvez, eu ainda possa me encontrar. Ele ficou me olhando como se as palavras dele estivessem presas na garganta. E, enfim, falou: — Quando minha esposa morreu, eu perdi esse lugar. Tudo aqui me lembrava dela. O jeito como ela arrumava as flores, o som da risada dela no quintal. Eu não suportava ficar. Mas também não conseguia ir embora. Tive vontade de tocar sua mão. De dizer que ele não precisava carregar isso sozinho. Mas só disse: — Às vezes, ficar também é uma forma de coragem. Ele desviou o olhar, apertando os lábios. Mas não negou. … Naquela noite, quando ele foi embora, ficou parado na porta por alguns segundos. O silêncio entre nós estava cheio de perguntas não feitas e respostas adormecidas. — Boa noite, Helena — disse, por fim. — Boa noite, Miguel. Fechei a porta devagar, sentindo o coração apertado por algo que eu ainda não conseguia nomear. Não era só atração. Era uma espécie de reconhecimento. Como se ele visse em mim tudo que eu lutava para esconder. E, por alguma razão, não quisesse fugir disso. Era assustador. Mas era bonito também. E talvez... só talvez... eu estivesse pronta para descobrir o que mais ainda éramos, depois de tanta dor. Dois dias depois, uma surpresa A campainha tocou no meio da tarde, enquanto eu reorganizava alguns móveis da sala da frente. Fui até a porta achando que seria Miguel, mas encontrei uma mulher de sorriso aberto e olhar curioso. — Oi! Você deve ser a arquiteta. Eu sou Ana, amiga do Miguel desde que a gente se entende por gente. Ela entrou sem cerimônia, equilibrando duas sacolas de mercado. — Ele me mandou uma mensagem dizendo que você estava por aqui, e que provavelmente não estava se alimentando direito. Então resolvi trazer umas coisinhas. Sorri, surpresa com a espontaneidade. — Foi ele quem disse isso? — Do jeito torto dele, sim — ela riu. — Você deve ser especial pra ele te mencionar. Fiquei em silêncio por um instante. “Especial” ainda soava como uma palavra pesada demais para nós dois. Passamos a tarde juntas, cozinhando e trocando histórias. Ana era leve, divertida e completamente diferente de Miguel. Mas havia uma ternura nela que me fazia entender por que ele a mantinha por perto. — Você é a primeira mulher que ele deixa entrar na vida dele desde... — ela hesitou. — Desde a Luísa. — Eu não estou “entrando” — respondi, rápido demais. — Só estamos convivendo. Ela me olhou, com aquele olhar de quem já viu mais do que gostaria, e disse com calma: — Às vezes a gente entra na vida dos outros só por existir perto. Não precisa forçar. ... No sábado, algo mudou O sábado amanheceu ensolarado, depois de uma sequência de dias nublados. Miguel apareceu no meio da manhã, com uma mochila nas costas e duas bicicletas antigas na caçamba da caminhonete. — Vamos dar uma volta? — ele perguntou, sem rodeios. Fiquei em dúvida. O que significava aquilo? Uma pausa? Um convite? Um passo? — Achei que você não gostasse de sair da rotina — brinquei. — Hoje eu quis — ele respondeu, simplesmente. Seguimos por uma estrada de terra batida, ladeada de árvores altas e cheiro de campo molhado. Pedalávamos em silêncio, mas não era um silêncio incômodo. Era uma respiração conjunta, um acordo não verbal de que estar ali já era suficiente. Paramos à beira de um pequeno riacho, onde ele desceu da bicicleta e se sentou sobre uma pedra. Fiz o mesmo, observando o reflexo da água. O som da correnteza misturava-se ao cantar dos pássaros. Era tudo tão simples... e, por isso mesmo, tão bonito. — Eu costumava vir aqui com meu pai — ele disse, depois de um tempo. — Era o único lugar onde ele não parecia tão distante. — E agora? — Agora é só silêncio. Não respondi. Apenas deixei minha mão encostar na dele, de leve. Ele não afastou. ... Voltamos para casa no fim da tarde, com a roupa suada e os cabelos cheios de poeira. Rimos quando nos olhamos no espelho e parecemos crianças que brincaram o dia inteiro sem preocupação. — Obrigada — eu disse, antes de fechar a porta atrás dele. Ele hesitou por um instante, e então falou: — Você me faz lembrar que ainda é possível. — Possível o quê? — Viver. Mesmo depois de tudo. E então, se virou e foi embora. ... Naquela noite, escrevi pela primeira vez em semanas. Escrevi sobre pontes invisíveis que se constroem entre duas pessoas que têm medo de cair. Escrevi sobre olhos que reconhecem a dor no outro sem precisar nomear. Escrevi sobre recomeços — os silenciosos, os imperfeitos, os que nascem quando menos se espera. Miguel ainda não era um porto seguro. Mas talvez... talvez ele fosse o farol. E eu, mesmo sem perceber, já estava navegando na direção dele.