CAPÍTULO 8
Eu nunca fui boa com silêncio. Aprendi, com o tempo, a respeitá-lo. A suportar sua presença, a aceitar suas entrelinhas. Mas gostar... gostar, não. O silêncio sempre teve um jeito incômodo de escancarar o que eu tentava esconder. E naquela manhã, enquanto Miguel dirigia em silêncio pela estrada estreita que ligava o vilarejo à cidade vizinha, eu me vi encarando um silêncio que não sabia interpretar. Estávamos a caminho de um armazém antigo, onde guardaríamos algumas peças restauradas para exposição. O casarão estava tomando forma, mais rápido do que eu esperava, e algumas partes já ganhavam de volta a beleza que haviam perdido com o tempo. Eu deveria estar satisfeita. Orgulhosa. Mas tudo parecia suspenso. Como se eu estivesse esperando algo acontecer — ou talvez temendo que algo se repetisse. Miguel mantinha as mãos firmes no volante. Os olhos presos à estrada. Havia algo na forma como ele respirava — lenta, contida — que me dizia que também havia algo preso nele. Um pensamento não dito, uma pergunta engolida, um sentimento à beira de transbordar. — Você está bem? — arrisquei, a voz baixa, como se eu não quisesse quebrar algo frágil demais. Ele desviou o olhar por um segundo. E, mesmo sem responder, eu entendi que não era uma pergunta simples de responder. — Sonhei com ela ontem. — ele disse, por fim. A frase caiu no carro como um sussurro denso. Eu soube de quem ele falava antes mesmo de perguntar. Era sempre ela. — Tem acontecido com frequência? — Às vezes. Nos dias bons. — ele respondeu, dando um meio sorriso amargo. — Nos dias ruins, nem os sonhos me visitam. Fiquei em silêncio por um instante. Não por não saber o que dizer, mas porque percebi que ele não precisava de palavras. Precisava de presença. De alguém que não fugisse. E, acima de tudo, de alguém que não tentasse apagar o que ele ainda carregava. — Eu fico feliz que ela ainda esteja aí. — falei, encarando a paisagem pela janela. — Às vezes, manter viva a memória de quem a gente amou é a forma mais pura de continuar. Ele assentiu. E dessa vez, quando voltou os olhos para a estrada, havia algo mais leve em seu semblante. Uma aceitação, talvez. Ou o início dela. O galpão era maior do que eu esperava. Cheirava a metal, madeira e poeira — três dos meus cheiros favoritos, estranhamente reconfortantes. Passamos horas organizando peças, etiquetando, ajustando apoios. Conversávamos pouco, mas havia uma fluidez em nossos movimentos, como se já soubéssemos nos coordenar no espaço um do outro. Em determinado momento, Miguel subiu numa escada para ajustar uma viga solta e eu fiquei embaixo, segurando a estrutura. Foi aí que percebi: meu coração estava acelerado por motivos que não tinham nada a ver com o trabalho. Eu o observava com olhos que haviam aprendido a ter medo de sentir. E agora, contra a minha vontade, começavam a se abrir para algo novo. Não era paixão, não ainda. Era cuidado. Era admiração. Era o lento florescer daquilo que, por muito tempo, eu jurei que não permitiria de novo. Quando ele desceu e nossos olhos se encontraram, senti que ele também percebia. Mas, como sempre, Miguel era comedido. Afastava-se no exato momento em que algo se tornava intenso demais. E eu respeitava isso. Respeitava até doer. À noite, já de volta ao casarão, eu estava sentada na varanda da casa dos fundos, com uma xícara de chá morno entre as mãos, quando ele apareceu. Não disse nada. Apenas sentou-se ao meu lado, em silêncio. O céu estava limpo, cheio de estrelas. Aquelas que a gente não vê na cidade. As que a gente esquece que existem. — Helena… — ele começou, a voz baixa, quase receosa. — O que você está fazendo aqui? Demorei um instante para responder. Porque não era uma pergunta qualquer. Ele não queria saber o que eu estava fazendo no casarão, ou no vilarejo. Queria saber o que me movia. O que me mantinha. Por que eu não fui embora ainda. — Estou tentando me lembrar de quem eu era… antes de tudo. — confessei. — Antes de me perder. Antes de amar errado. Antes de me apagar por dentro. Ele ficou quieto por alguns segundos. Então, virou-se para mim, os olhos mais abertos do que nunca. — Eu também estou tentando. Só que… não sei se ainda existe algo para lembrar. — Existe. — eu disse. — Você ainda está aqui. Isso já é alguma coisa. Miguel me olhou como se não soubesse o que fazer com aquele tipo de ternura. E, por um segundo, eu achei que ele fosse dizer algo. Se aproximar. Me tocar. Mas ele apenas encostou a cabeça no encosto da cadeira e fechou os olhos. E nós ficamos ali. Em silêncio. O tipo de silêncio que, pela primeira vez, não doía. --- Nos dias seguintes, algo mudou. Não falávamos sobre aquilo, mas estava no ar. Nos olhares mais longos. Nos sorrisos que duravam meio segundo a mais. No jeito como ele, agora, me chamava de "Helena" com mais suavidade. Como se meu nome tivesse ganhado um novo lugar na boca dele. Uma tarde, enquanto eu lixava um batente de porta na ala mais antiga do casarão, Miguel apareceu com um rádio antigo nas mãos. — Achei isso no porão. Acha que ainda funciona? — Só tem um jeito de descobrir. — respondi, curiosa. Conectamos o rádio a uma extensão e, depois de algumas tentativas, ele funcionou. Chiado, estático e tudo mais. Mas entre uma interferência e outra, uma música surgiu. Uma antiga. Daquelas que nossos pais ouviam dançando na sala, achando que a vida nunca ia acabar. Eu ri, surpresa. Ele também. E, num impulso, Miguel estendeu a mão. — Dança comigo? Por um segundo, hesitei. Mas depois, soltei a lixa no chão e aceitei. Dançamos desajeitados, rindo do próprio ridículo, tropeçando nos próprios pés. E foi ali, no meio do pó de madeira, com a música embolada pelo tempo, que senti meu coração fazer algo que eu não sentia fazia muito tempo: se abrir. Era pequeno. Era tímido. Mas era real. Mais tarde, naquele mesmo dia, enquanto guardávamos nossas coisas, Miguel parou de repente, como se algo o tivesse atingido. — Eu não quero que você vá embora quando o projeto acabar. Meu coração parou. As palavras vieram rápidas, cruas, sem planejamento. Como uma confissão que escapou. — Eu… — comecei, mas ele levantou a mão. — Não estou pedindo nada. Só… precisava dizer. Porque tem tempo demais que eu não digo o que sinto. E se tem uma coisa que eu aprendi com a perda… é que o silêncio pode ser uma prisão pior do que qualquer dor. Fiquei sem palavras. Porque, naquele instante, algo em mim também se rompeu. O medo, talvez. A certeza de que era cedo demais. Ou a crença de que eu não merecia recomeços. — Eu não sei o que vai ser de mim depois disso, Miguel. Mas eu também não quero ir embora. Ele sorriu. De novo, aquele sorriso pequeno. Mas, dessa vez, sem dor. Só esperança. E naquela noite, enquanto a chuva voltava a cair — fina, constante, como uma canção conhecida — eu percebi que às vezes o amor não grita. Não chega como um vendaval. Ele se insinua nas frestas. No gesto que cuida. No silêncio que compreende. Na dança torta no meio do trabalho. Às vezes, o amor nasce assim. E, pela primeira vez, eu não queria fugir disso. A chuva caía fina do lado de fora quando me levantei da cama durante a madrugada. Eu não conseguia dormir. Havia um peso leve demais no meu peito, como uma saudade do que ainda estava acontecendo. Como se minha alma estivesse tentando acompanhar o coração, e os dois seguissem em ritmos diferentes. Caminhei até a cozinha da casa dos fundos e acendi a luz baixa sobre a pia. Aquela casa antiga tinha cheiro de café guardado e lembranças esquecidas. Um tipo de aconchego que se instala mesmo quando ninguém convida. Fui até a janela e olhei a escuridão lá fora, onde os pingos de chuva desciam preguiçosos pelas folhas das árvores. E então ouvi. — Você também não consegue dormir? Me virei devagar, surpresa com a voz de Miguel atrás de mim. Ele estava encostado no batente da porta, descalço, com a camisa cinza amarrotada e os olhos ainda cheios de noite. — A insônia é uma velha conhecida. — respondi, oferecendo um meio sorriso. — Posso me juntar a você? — Claro. Ele se aproximou devagar, como quem respeita o tempo das coisas. Sentou-se à mesa, diante de mim, e por alguns segundos só ouvimos o som da chuva. Era como se aquele momento estivesse suspenso em algum lugar fora do tempo. — Sabe o que me assusta? — ele disse, olhando fixamente para o tampo de madeira. — A sensação de estar indo em direção a algo que posso não saber como cuidar. Como se eu tivesse esquecido como se ama sem medo. Aquela confissão me atravessou como uma lâmina suave. Porque eu entendia. Entendia exatamente o que ele queria dizer. — Não é sobre saber cuidar, Miguel. É sobre estar disposto a aprender. A gente não precisa estar inteiro pra tentar de novo. Só precisa estar disposto a ser honesto. Ele ergueu os olhos e me encarou com uma intensidade que fez minha pele arrepiar. — Você me faz querer tentar. Mesmo quando eu penso que ainda não posso. Meu coração deu um passo à frente dentro do peito. Um passo perigoso. Mas verdadeiro. — Então tenta comigo. No tempo que for. Do jeito que for possível. — sussurrei. Ali houve só um silêncio cheio de promessa entre nós. Na manhã seguinte, a chuva deu trégua. O céu parecia mais limpo, como se até o tempo tivesse compreendido que algo estava mudando. Eu acordei cedo, antes mesmo do despertador tocar. Havia uma leveza dentro de mim que eu quase não reconhecia. Miguel já estava no casarão quando cheguei. Organizando tábuas, revisando rascunhos da exposição que faríamos na ala lateral. Era um projeto pequeno, mas cheio de significado: recuperar a memória do lugar, contando sua história através dos objetos restaurados e das fotografias antigas que eu havia encontrado no sótão. Trabalhamos em silêncio, mas havia uma música pairando no ar — não das que se ouve, mas das que se sente. E quando ele se aproximou para me ajudar com um painel pesado, nossas mãos se tocaram por acidente. Ele não retirou a dele. Nem eu. Nossos olhos se encontraram. E, por um segundo longo, não havia dor entre nós. Só presença. — Acho que hoje podemos começar a montar a estrutura externa. — ele disse, como se o mundo não tivesse parado por um instante. Assenti. Mas meu coração sabia que algo estava nascendo ali. Devagar. Como tudo que é verdadeiro. No fim da tarde, nos sentamos na escada da entrada principal do casarão, observando o céu dourado e o movimento da brisa nas árvores. Era uma imagem tão simples, tão comum — e, ao mesmo tempo, profundamente transformadora. — Você acha que a gente pode amar mais de uma vez na vida? — perguntei, depois de um tempo. Ele pensou antes de responder. — Eu acho que a gente nunca ama igual. Mas pode amar de novo. E, às vezes, com mais verdade do que antes. Porque depois de tanto perder, a gente aprende a valorizar o que fica. Meus olhos encheram d’água. Mas não de tristeza. Era como se algo em mim finalmente tivesse sido autorizado a respirar. — Obrigada por não desistir de si mesmo, Miguel. Ele virou-se para mim, com um sorriso calmo. — Obrigado por me lembrar que eu ainda posso recomeçar. E ali, sob o céu que começava a escurecer, eu entendi que talvez o amor não seja sempre grandioso e arrebatador. Às vezes, ele chega como Miguel: com passos firmes, mas discretos. Com olhos que sabem ver além das dores. Com silêncios que abraçam em vez de afastar. O amor, naquele momento, não era uma promessa. Era uma possibilidade. E, pela primeira vez, eu queria acreditar nela. A noite já tinha se deitado inteira sobre o vilarejo quando voltamos para o casarão. A brisa estava mais fria, e o silêncio agora parecia mais denso, como se cada som fosse absorvido pelas paredes antigas e pela memória da casa. Miguel me acompanhou até a porta da minha casa nos fundos e hesitou por um segundo antes de falar. — Amanhã é domingo. A cidade fica quase parada. Se quiser dar uma volta... — Ele parou, como se reconsiderasse a própria proposta. — Posso te mostrar o caminho para a trilha da Pedra Alta. Tem uma vista bonita. Aquilo era o mais perto que eu tinha visto Miguel de um convite. E eu sabia o quanto custava a ele dar esse passo. Assenti com um leve sorriso. — Vou gostar disso. Na manhã seguinte, ele apareceu com dois cafés e uma mochila. Tinha um casaco amarrado na cintura e vestia uma camiseta cinza surrada. O cabelo, um pouco desalinhado, parecia mais suave do que o habitual. Seguimos a pé por uma estrada de terra que serpenteava por entre matas e casinhas isoladas. O céu estava limpo, e o ar ainda tinha aquele frescor da madrugada. Caminhamos em silêncio por longos minutos, até que Miguel falou: — Eu costumava vir aqui com meu pai. Ele dizia que o mundo parecia mais simples lá de cima. Como se a gente pudesse ver tudo com mais clareza. Olhei para ele. Havia uma suavidade na forma como falava do pai, diferente da rigidez com que falava sobre quase todo o resto. Senti vontade de perguntar mais, mas me contive. Com Miguel, o silêncio era um convite tanto quanto as palavras. A trilha era íngreme em alguns trechos, mas compensava com paisagens que pareciam saídas de uma pintura. Depois de mais de meia hora de caminhada, chegamos a um platô rochoso com vista para o vilarejo inteiro. Dali, as casas pareciam miniaturas e a igreja, uma maquete antiga perdida no tempo. Sentamos em silêncio. Miguel tirou uma garrafa térmica da mochila e me ofereceu café. — A primeira vez que subi aqui foi com a Luísa. — disse de repente. Luísa. O nome da esposa. Ele nunca a tinha mencionado com tanta naturalidade. — Ela tinha medo de altura, mas queria provar que conseguia vencer isso. Ficamos sentados bem aqui, como agora. — ele apontou para um ponto na borda da pedra. — Ela chorou, mas depois riu tanto que eu achei que o mundo podia ser só aquilo. Ela e aquele riso. Permaneci em silêncio, sentindo o peso daquela lembrança se misturar ao vento frio que passava por nós. — Depois que ela se foi, eu jurei que nunca mais voltaria aqui. — ele continuou. — Mas hoje... não sei. Me pareceu certo. — Porque você não está sozinho. — arrisquei. Miguel me olhou. Um olhar longo, denso, carregado de tudo que não se pode dizer em voz alta. E, ainda assim, sem palavras, ele respondeu. O silêncio entre nós não era vazio. Era presença. Era o luto sendo aceito, a dor dividida. Ficamos ali por mais tempo do que o planejado, observando a linha do horizonte mudar de cor. Na descida, ele escorregou em uma pedra solta. Instintivamente, estendi a mão, e ele a segurou. Rápido, firme. Quando se equilibrou, não soltou de imediato. Ficou ali por um segundo a mais, como se aquele toque dissesse mais do que qualquer frase. Depois, soltou devagar, os olhos fixos nos meus. — Obrigado. À noite, eu não conseguia dormir. Os pensamentos giravam como folhas soltas em vendaval. Lembrei da confissão de Miguel, da trilha, da forma como ele disse o nome dela. E de como, mesmo falando da Clara, ele olhou para mim com algo diferente nos olhos. Algo que ainda não entendi. Me levantei e fui até o casarão. Às vezes, trabalhar me ajudava a organizar as ideias. Peguei o caderno de anotações e comecei a revisar os desenhos das molduras da sala central. Perdi a noção do tempo até ouvir passos no corredor. Era Miguel. Vestia moletom escuro e chinelos. Os cabelos ainda úmidos denunciavam um banho recente. — Não conseguia dormir. — disse, encostando-se à porta. — Eu também não. Ele se aproximou devagar, observando meus desenhos. — Gosto de como você vê as coisas. Como consegue enxergar beleza naquilo que todo mundo já deixou pra trás. — Acho que é mais fácil olhar pro que é velho com carinho. A gente entende que as marcas fazem parte. São provas de sobrevivência. Miguel assentiu, pensativo. — E em pessoas? Você vê assim também? A pergunta veio como um sussurro, mas me atingiu em cheio. — Tento. Às vezes, é mais difícil. Ainda mais quando a pessoa tenta esconder as marcas. Ele se aproximou mais um passo. Miguel se sentou ao meu lado. Por um instante, não disse nada. Depois, falou, quase num murmúrio: — Eu não sei quem eu sou sem a dor. — E se a gente descobrir juntos? Ele não respondeu. Mas não precisou. O modo como encostou o ombro no meu, leve, quase tímido, era resposta o suficiente. Ali, naquela madrugada silenciosa, cercados por história, poeira e saudade, dois desconhecidos começaram a se reconhecer. Não como salvação um do outro. Mas como companhia na travessia. E às vezes, isso já é amor nascendo devagar.