Capítulo 5 -
Você diz que sou forte, quando acho que sou fraca… You Say- Lauren Daigle Há um silêncio específico que só existe nas manhãs de domingo no interior. É um silêncio que carrega cheiro de bolo assando, de orvalho no quintal, de rádio antigo tocando modão baixo numa cozinha que já acordou cedo demais. Não é ausência de som. É presença de paz. Acordei assim, envolta nesse tipo de quietude que parecia querer me proteger do mundo. Estiquei o braço para desligar o despertador, embora ele não tivesse tocado. Meus olhos demoraram a se ajustar à claridade que entrava pela fresta da cortina. E por um instante, desejei permanecer ali, entre o quase sonho e a realidade branda. Mas meu coração estava inquieto. Hoje era o almoço na casa da minha avó. E eu ainda não sabia se iria. … Na cozinha, o cheiro de café fresco me acolheu. Preparei uma caneca, me sentando diante da janela, observando as folhas dançarem com o vento. A casa parecia respirar junto comigo. Peguei meu caderno. Escrevi: "É mais difícil voltar onde se foi feliz do que onde se foi ferido. A felicidade cobra presença. A dor permite distância." Fiquei encarando aquela frase por minutos. Parte de mim queria seguir em frente. A outra parte ainda andava em círculos, revivendo erros e memórias como se pudesse mudá-los na repetição. A campainha tocou. Abri a porta sem muita expectativa, e lá estava ele. Miguel. Com uma expressão indecifrável e um pacote na mão. — Trouxe pães de queijo. Quentes. — E sua presença é brinde? — Considera como quiser. Abri um sorriso sem querer. Miguel tinha esse talento estranho de aparecer quando minha dúvida era mais alta que a coragem. Como se ele escutasse o que eu não dizia. — Tem almoço na casa da minha avó hoje. — falei, sentando à mesa. Ele assentiu, colocando os pães em um prato. — Vai? — Não sei. Parte de mim quer. Parte de mim quer desaparecer. — As duas partes estão certas. Mas talvez a primeira precise mais da sua presença do que a segunda da sua fuga. Miguel e suas frases que acertavam em cheio. … Fui. Vesti um vestido leve, nada que chamasse atenção. Prendi o cabelo num coque frouxo e passei apenas um rímel. O espelho me mostrou alguém mais madura. Não necessariamente mais forte, mas menos frágil do que antes. Miguel me acompanhou até a entrada, mas não entrou. — Você consegue. — ele disse, e aquilo foi mais encorajador do que qualquer elogio. — Obrigada por não tentar me convencer. — Obrigada por não precisar. Entrei. A casa da minha avó tinha o mesmo cheiro. Uma mistura de madeira antiga, cravo e nostalgia. Os móveis estavam todos nos mesmos lugares, mas tudo parecia menor. Como se fosse eu quem tivesse crescido demais para caber ali. — Helena! — exclamou minha tia, me abraçando com força exagerada. Vieram os beijos, os elogios forçados, os comentários mal disfarçados: “Como você está diferente!”, “Ainda trabalhando na capital?”, “E o ex? Superado?” Sorri por educação. Respondi o mínimo. Mas o incômodo era crescente. Até que avistei minha avó, sentada na cadeira de balanço. Me aproximei devagar. Ela me olhou com ternura. E ao contrário de todos os outros, não disse nada. Apenas estendeu a mão. Segurei. — A gente só volta onde se sente chamada. — ela disse, como se lesse meu pensamento. — Mas é bom ver você aqui. — Eu tinha medo. — Do quê? — De não caber mais. — O coração das avós tem espaço demais, minha filha. A gente sempre cabe. Sorri. Sincero. … O almoço foi barulhento. As crianças corriam, os adultos falavam todos ao mesmo tempo, as tias disputavam elogios pelos pratos. Era caótico. Mas, em algum ponto, reconfortante. Mesmo assim, saí antes da sobremesa. Meu peito já começava a pesar. E eu aprendi a ouvir esses sinais. … Miguel estava no jardim quando cheguei. Sentado no banco de madeira que havíamos lixado juntos dias antes. Tinha uma xícara nas mãos e uma expressão de espera. Como se soubesse que eu voltaria antes do previsto. — Como foi? — Suportável. O que, para mim, é quase uma vitória. — Então já é. Sentei ao lado dele. — Quando minha esposa morreu, eu também fugi da minha família. — ele disse, com a voz baixa. — Porque ninguém sabia como me olhar sem pena. E eu não sabia como respirar no meio das expectativas. Assenti. Entendia mais do que gostaria. — Mas voltei. Um dia. E foi pior do que esperava. Depois, melhor. A vida é cíclica. E a dor... ela perde a força quando a gente a divide com quem pode suportá-la. Ficamos ali por muito tempo, apenas existindo. O sol começava a se pôr, tingindo o céu de laranja e dourado. … Mais tarde, após o banho, sentei à mesa da cozinha com uma taça de vinho. Miguel estava lavando as mãos, depois de mexer em algo no galpão. — Aceita? — perguntei, apontando para a garrafa. Ele hesitou por um segundo, mas assentiu. — Uma taça. Só uma. Servi. Brindamos sem dizer por quê. Mas sabíamos. — Tem algo que você gostaria de fazer de novo? Algo que deixou pra trás? — perguntei, curiosa. Miguel pensou por um instante. — Eu gostava de andar a cavalo. Fazia isso com meu pai. Depois que ele morreu... nunca mais fui. — Você ainda pode. — Não é o mesmo sem ele. — Talvez não. Mas pode ser algo novo, com outro significado. Ele sorriu, dessa vez completo. — E você? O que deixou pra trás? Pensei. Havia muita coisa. Mas uma em especial. — Eu cantava. Em barzinhos, saraus. Era algo meu. Depois... parei. Achei que não tinha mais o direito de brilhar em nada. — Você ainda tem voz, Helena. — E você ainda tem estrada. Miguel me olhou como se enxergasse além do óbvio. — A gente podia tentar. Os dois. — Cantar e cavalgar? — Recomeçar. … Antes de dormir, me peguei cantarolando uma antiga canção. Não lembrava o nome, só a melodia. Mas aquilo foi como abrir uma janela que ficou tempo demais fechada. E naquela noite, sonhei. Sonhei com um campo aberto, um cavalo correndo, e alguém ao meu lado. Não havia rostos. Mas havia liberdade. Quando acordei, percebi: eu não estava apenas reconstruindo uma casa. Estava reconstruindo a mim mesma. E, talvez… só talvez… eu estivesse pronta para o que viesse depois. ... Pela manhã, a brisa estava mais fresca. Saí para caminhar sozinha, os pés descalços tocando a grama ainda molhada do orvalho. Uma sensação simples, mas que me lembrou da infância. Lembrei de quando a vida era só correr até o portão, brincar até anoitecer e voltar com o cabelo bagunçado e o coração cheio. Senti falta daquela leveza, e pela primeira vez em muito tempo, desejei reencontrá-la, mesmo que de forma diferente. Voltei para casa e encontrei Miguel no galpão. Ele ajeitava algumas tábuas, medindo com paciência. — O que está fazendo? — perguntei, curiosa. — Um banco. Pro quintal. Achei que seria bom ter um lugar pra sentar e ver o tempo passar. Sorri. — Gosto disso. — Eu também. — ele respondeu. — A gente anda tão rápido, que às vezes esquece de sentar e só... estar. E, por alguma razão, aquela frase ficou comigo o resto do dia. Naquela tarde, fomos até o terreno atrás da casa, onde havia árvores altas e sombras generosas. Miguel testou o banco ali, e sentamos lado a lado. Em silêncio. O tipo de silêncio que conforta, que embala. Em algum momento, ele disse: — Quando a gente para, a dor fala mais alto. Mas também é quando escutamos a nós mesmos. Assenti. E ali, entre as árvores, com o vento passando entre nossos cabelos, senti que estava exatamente onde devia estar. E talvez, só talvez, eu tivesse encontrado algo que nunca soube que procurava.