Mundo ficciónIniciar sesiónO sol da manhã de sábado entrou pelas frestas da persiana do quarto do hotel, desenhando listras douradas sobre os lençóis bagunçados. Sofia acordou primeiro, o corpo ainda colado ao de Lucas, o braço dele pesado sobre a sua cintura. A respiração dele era calma, profunda, o peito subindo e descendo contra as costas dela. Na noite anterior, depois do beijo intenso e das revelações pesadas, eles haviam adormecido assim — abraçados, vestidos, mas com uma intimidade que nenhum dos dois esperava tão rápido.
Ela se mexeu devagar, tentando não acordá-lo. Lucas murmurou algo incompreensível e apertou o abraço por instinto, puxando-a mais para si. Sofia sentiu o calor do corpo dele, o cheiro de pele misturado com o resto do perfume barato que ele usava. O coração dela acelerou. Fazia tempo que não se sentia tão protegida — e, ao mesmo tempo, tão desejada. Lucas abriu os olhos devagar, piscando contra a luz. Quando percebeu a posição em que estavam, ficou imóvel por um segundo. — Bom dia — sussurrou ele, a voz rouca de sono. — Bom dia — respondeu ela, virando o rosto para encará-lo. Estavam a centímetros um do outro. Os olhos castanhos dele desciam para a boca dela, depois voltavam aos olhos verdes. Ele respirou fundo, como se estivesse lutando contra algo interno. — Sofia... — começou, a mão ainda na cintura dela, os dedos apertando levemente o tecido fino da blusa. — Eu... caralho, você não faz ideia do quanto eu tô me segurando agora. Ela sentiu um calor subir pelo pescoço até as bochechas. — Se segurando do quê? Lucas deu um meio sorriso torto, quase sofrido. — De te beijar de novo. De te puxar pra cima de mim e esquecer que hoje é o dia do casamento do seu irmão. De fazer coisas que a gente talvez se arrependa depois, porque você tá vulnerável e eu não quero ser o cara que aproveita isso. Sofia engoliu em seco. A atração estava ali, palpável, como eletricidade no ar. Ela sentia o corpo dele tenso contra o dela, o desejo contido na forma como os músculos do braço se contraíam, como se ele estivesse se esforçando para não se mover. — E se eu quiser que você não se segure? — perguntou ela, baixinho, quase desafiando. Lucas fechou os olhos por um segundo, soltando o ar devagar. — Você não sabe o que tá pedindo, Sofia. Eu te quero desde o momento que te vi naquele café, com aquela cara de quem precisava de alguém. Mas hoje não. Hoje você precisa estar inteira pro seu irmão. Pro que vai acontecer na fazenda. Depois... depois a gente conversa sobre isso. Sem pressa. Sem bagunça emocional. Ele se afastou devagar, sentando-se na beira da cama, passando as mãos pelo cabelo bagunçado. Sofia sentiu falta do calor imediatamente, mas também sentiu respeito — um respeito que poucos homens tinham demonstrado na vida dela. — Você é diferente, né? — disse ela, sentando-se também. — Tento ser — respondeu ele, virando para olhar para ela. — E você merece alguém que pense em você antes de pensar no próprio desejo. Eles tomaram banho separados, trocaram de roupa em silêncio, mas com olhares que diziam tudo que as palavras não diziam. Sofia escolheu um vestido azul-escuro simples, elegante o suficiente para o casamento, mas discreto. Lucas vestiu uma camisa social preta que encontrou na mochila e calça jeans escura — “o mais chique que eu tenho”, brincou. Tomaram café da manhã no restaurante do hotel: café preto forte, pão de queijo e suco de laranja. Nenhum dos dois falou muito. A tensão sexual ainda pairava, mas agora misturada com a ansiedade do que viria. Às duas da tarde, partiram para a Fazenda Boa Vista. O convite que Sofia recebera pelo correio estava na bolsa — o único ingresso oficial que tinham. O portão principal estava aberto para os convidados, carros de luxo enfileirados: Porsche, Mercedes, Land Rovers. Músicos afinavam instrumentos perto da capela branca decorada com flores brancas e douradas. Tudo perfeito, como uma revista de noivas. Sofia e Lucas entraram de mãos dadas — fingindo ser um casal comum, mas o toque era real. Procuraram Rafael com os olhos. Ele ainda não havia aparecido. Isabella circulava entre os convidados, radiante em um vestido leve de seda bege, cabelo preso em um coque sofisticado, sorrindo para todos. Quando viu Sofia, o sorriso endureceu por um segundo, mas logo voltou ao normal. — Você veio — disse ela, aproximando-se. — Que bom. Rafael vai ficar feliz. — Onde ele tá? — perguntou Sofia, direta. — Se arrumando na suíte. Os homens demoram mais, né? — Isabella riu, mas o riso não chegou aos olhos. — A cerimônia começa às cinco. Sente-se onde quiser. Lucas apertou a mão de Sofia, transmitindo força. — Vamos achar um lugar bom — disse ele, guiando-a para os bancos da capela ao ar livre, sob uma tenda enorme com vista para o lago. Os convidados chegavam: empresários, políticos, socialites paulistanas. Helena não estava — Sofia havia ligado para a mãe na noite anterior, pedindo que não viesse. “É melhor assim, mãe. Eu te conto tudo depois.” Helena chorara ao telefone, mas concordara. Às quatro e meia, os músicos começaram a tocar um quarteto de cordas suave. O senhor Monteiro sentou-se na primeira fila, orgulhoso. Vargas, o agiota, estava lá também, discreto no fundo, como um convidado qualquer. Rafael apareceu finalmente, ao lado do padrinho — um primo de Isabella. Ele estava lindo no terno cinza-claro sob medida, mas o rosto... o rosto estava pálido, os olhos vermelhos como se não tivesse dormido. Quando viu Sofia na terceira fila, ao lado de Lucas, ele congelou por um segundo. Um quase-sorriso surgiu, seguido de um aceno discreto com a cabeça. Sofia sentiu as lágrimas subirem. Lucas apertou sua mão mais forte. A marcha nupcial começou. Isabella entrou pelo tapete branco, o vestido de noiva deslumbrante: renda francesa, cauda longa, véu bordado. Linda. Perfeita. Mas o olhar dela para Rafael era possessivo, não apaixonado. Quando chegou ao altar, Rafael pegou a mão dela. A voz do celebrante ecoou: — Queridos amigos e familiares, estamos aqui reunidos para celebrar a união de Rafael e Isabella... Sofia não conseguia respirar direito. Olhava fixo para o irmão, tentando transmitir com os olhos: “Você não precisa fazer isso. A gente dá um jeito. Eu te amo.” Rafael olhou para ela uma última vez antes de virar para a noiva. E então, no momento em que o celebrante perguntou se alguém tinha algo contra aquela união... Sofia se levantou.A voz do celebrante pairava no ar quente da tarde, calma e solene:
— Se alguém presente tiver algum motivo pelo qual esta união não deva ser realizada, que fale agora ou cale-se para sempre. Um silêncio absoluto caiu sobre a tenda. Até os pássaros pareceram parar de cantar. Todos os olhares se voltaram para a frente, esperando o momento passar como sempre passa. Sofia sentiu o corpo se mover antes mesmo de pensar. As pernas se ergueram sozinhas, o vestido azul-escuro roçando nos bancos de madeira. Lucas tentou segurar a mão dela, mas ela já estava de pé, o coração martelando tão alto que parecia que todos podiam ouvir. As palavras já estavam na ponta da língua: “Eu tenho um motivo. Meu irmão está sendo forçado a isso.” Ela abriu a boca. E então viu. À esquerda do altar, a uns cinco metros de Rafael, estava um dos seguranças da noite anterior — alto, careca, terno preto impecável. Ele fingia observar os convidados, mas a postura era tensa, militar. E ali, sob o paletó aberto apenas o suficiente para quem estivesse olhando com atenção: o cabo preto de uma pistola, presa no coldre de cintura. O volume inconfundível. Os olhos do homem cruzaram com os dela por um segundo. Não era ameaça direta, mas era aviso claro: estamos aqui. Estamos vendo. Sofia sentiu o ar fugir dos pulmões. Imagens passaram rápido na cabeça: a conversa ouvida na noite anterior, as “garantias” do senhor Monteiro, a casa da família já no nome deles, ela própria citada como “seguro final”. Se ela falasse agora, em público, com jornalistas e políticos presentes, o que aconteceria depois? Com Rafael? Com a mãe? Com ela mesma? O segurança levou a mão disfarçadamente ao rádio no ouvido, como se recebesse uma ordem. Outro homem, do lado oposto do altar, fez o mesmo movimento — paletó abrindo apenas o bastante para mostrar o mesmo volume. Sofia olhou para Rafael. Ele a encarava, os olhos arregalados, quase implorando. Um leve movimento de cabeça: não. Por favor, não. Ela engoliu as palavras. Sentou-se devagar, as pernas tremendo tanto que Lucas teve que ampará-la pelo braço. O celebrante esperou mais alguns segundos, educado, depois continuou como se nada tivesse acontecido: — Então, em nome do amor que os une... As alianças foram trocadas. Isabella sorriu para as fotos, perfeita. Rafael colocou o anel no dedo dela com mãos que tremiam levemente. Quando chegou a hora do beijo, ele se inclinou, tocou os lábios nos dela de forma rápida, quase cerimonial. Aplausos educados ecoaram pela tenda. Sofia não aplaudiu. Sentia o rosto quente, as lágrimas presas, uma mistura de raiva e impotência queimando no peito. Lucas se inclinou ao ouvido dela: — Você viu também? — sussurrou. Ela assentiu, sem voz. — A gente não pode fazer nada aqui. Não agora. Mas isso não acaba hoje. A cerimônia terminou com a marcha nupcial de saída. Os noivos passaram pelo corredor central, Isabella radiante, Rafael com um sorriso forçado que não enganava quem o conhecia bem. Quando passou por Sofia, ele apertou o braço dela de leve — um toque rápido, quase imperceptível. Os olhos dele diziam: “Desculpa. Eu te amo.” Depois vieram as fotos oficiais, o coquetel no gramado, a banda tocando bossa nova ao fundo. Sofia e Lucas circularam como convidados comuns, taças de espumante na mão que nenhum dos dois bebia de verdade. Isabella se aproximou em certo momento, sozinha, o sorriso ainda colado no rosto. — Que bom que você veio, Sofia. Família é importante, não é? — disse, a voz doce demais. — Agora somos irmãs, afinal. Sofia sustentou o olhar. — Somos? — respondeu, fria. — Irmãs de verdade não precisam de seguranças armados pra manter a família unida. O sorriso de Isabella vacilou por uma fração de segundo. — Você viu coisas que não devia, pelo visto. Meu conselho: esquece. Hoje é um dia feliz. Não estrague. Virou-se e foi embora, cumprimentando outros convidados como se nada tivesse sido dito. Lucas puxou Sofia para um canto mais reservado, perto do lago. — Eu gravei tudo que pude ontem à noite. Áudio, fotos. Se a gente levar isso pra alguém certo — polícia federal, talvez um jornalista grande —, isso pode mudar. — Mas e o Rafa? Eles vão destruir ele. — Ou a gente força a mão deles. Mostra que temos provas. Que se tocarem em vocês, a história vai pra todos os jornais. Sofia olhou para o irmão ao longe, posando para fotos com a nova esposa. Ele parecia distante, como se estivesse em outro mundo. — Eu não vou deixar ele preso nisso pra sempre — disse ela, a voz firme pela primeira vez naquele dia. — Nem a gente. Lucas segurou o rosto dela com as duas mãos, obrigando-a a olhar pra ele. — Então a gente luta. Juntos. A partir de agora. Ela assentiu, e dessa vez foi ela quem o beijou — rápido, mas cheio de determinação. Não era paixão cega. Era aliança. A festa continuou ao redor deles: risadas, taças tilintando, música alta. Mas para Sofia, o casamento do irmão não tinha sido o fim. Tinha sido o começo da guerra.






