Mundo de ficçãoIniciar sessãoO hotelzinho na estrada para Campinas era simples, mas limpo: um prédio baixo de tijolinho, com quartos que davam para um jardim interno iluminado por luzes amarelas suaves. Sofia e Lucas pegaram um quarto duplo — “para não levantar suspeitas”, disse ele, com um sorriso que tentava disfarçar o constrangimento. Dentro do quarto, duas camas de solteiro separadas por uma mesinha de cabeceira, ar-condicionado barulhento e uma TV antiga que ninguém ligou.
Sofia tomou banho primeiro, deixando a água quente levar embora a poeira da fazenda e a tensão do encontro com Rafael. Quando saiu, enrolada na toalha, Lucas estava na varanda pequena, fumando um cigarro e olhando o céu escurecendo. — Desculpa o cheiro — disse ele, apagando o cigarro no corrimão. — Nervoso. — Tudo bem. Eu também tô. Eles pediram pizza pelo iFood — margherita e uma cerveja gelada cada um — e comeram sentados na cama, planejando a volta à fazenda. — O encontro é às 22h — contou Lucas, limpando a boca com o guardanapo. — Meu contato disse que três helicópteros chegam entre nove e meia e dez. Homens de São Paulo, Rio e até um de Goiás. Negócios com o senhor Monteiro pai. — E os agiotas do meu pai vão estar lá? — Provavelmente. É comum nesses casos: a família rica “compra” a dívida, mas na verdade negocia direto com os credores. Transferência de controle, sabe? Sofia sentiu um arrepio. — Eu preciso ver isso. Preciso entender o tamanho do buraco que o meu pai cavou. Lucas olhou para ela longamente. — Tá bem. Mas a gente vai com cuidado. Eu tenho um crachá falso de imprensa que uso em eventos assim. Você vai de “assistente”. Se der ruim, a gente corre. Às nove da noite, voltaram para a fazenda. O portão lateral dos fornecedores estava mais frouxo agora, com movimento de caminhões de buffet saindo. Lucas mostrou o crachá para um segurança distraído e entraram sem problema. Estacionaram longe das luzes principais e caminharam por entre as árvores até um ponto elevado atrás da casa principal, de onde dava para ver o heliponto iluminado. Às nove e quarenta, o primeiro helicóptero chegou — um modelo preto brilhante, barulhento, levantando poeira. Desceram dois homens de terno escuro, malas executivas na mão. Depois outro, e mais outro. O senhor Monteiro — um homem alto, grisalho, de postura militar — recebeu cada grupo pessoalmente na varanda dos fundos, com aperitivos e charutos. Sofia e Lucas se esconderam atrás de uma cerca viva. Lucas tirava fotos discretas com o celular em modo silencioso. — Olha ali — sussurrou ele, apontando. Entre os homens que desciam do segundo helicóptero, um rosto conhecido: o “Tio Edu”, como o pai de Sofia chamava. Eduardo Vargas, dono de vários cassinos clandestinos na capital, famoso por ser educado até o momento em que não era mais. Ele apertou a mão do senhor Monteiro como velhos conhecidos. Sofia sentiu o estômago embrulhar. — É ele. O maior credor do meu pai. A reunião se mudou para uma sala envidraçada no andar térreo — uma espécie de escritório com vista para o lago. As cortinas estavam semicerradas, mas dava para ver silhuetas. Rafael estava lá também, de terno completo agora, ao lado de Isabella e do pai dela. Parecia um fantoche: assentia quando falavam com ele, mas não dizia nada. Lucas gravava áudio no celular, aproximando o máximo possível. De repente, vozes altas. Discussão. — ...a dívida é de dois milhões e meio agora, com os juros — dizia Vargas, a voz abafada pelo vidro. — Nós pagamos dois milhões líquidos — rebateu o senhor Monteiro. — O resto vocês absorvem como taxa de risco. Meu genro entra na empresa, limpa o nome da família Almeida, e vocês nunca mais se aproximam deles. — Genro? — Vargas riu. — O rapaz parece que tá sendo arrastado pro altar. E se ele fugir depois? Isabella se aproximou da janela por um segundo, o rosto frio como mármore. Rafael estava pálido, as mãos nos bolsos. — Ele não vai fugir — disse o senhor Monteiro. — Temos garantias. A casa no Jardim Europa já está no nosso nome como caução. E a menina... Sofia, não é? Ela é o seguro final. Sofia congelou. Lucas segurou o braço dela com força. — Eles tão usando você como ameaça — sussurrou ele, furioso. Lá dentro, Rafael finalmente falou, a voz tremendo: — Ninguém toca na minha irmã. Nem na minha mãe. Isso foi o combinado. Vargas deu de ombros. — Combinados mudam, rapaz. Mas tudo bem. Dois milhões hoje, transferência imediata, e a gente esquece os Almeida pra sempre. Papéis foram assinados. Aperto de mãos. Charutos acesos de novo. O clima voltou a ser cordial, como se nada tivesse acontecido. Sofia não aguentou mais. As lágrimas desciam silenciosas. Lucas a puxou para trás, longe das luzes. — Vem. A gente precisa sair daqui antes que alguém nos veja. No caminho de volta para o hotel, ela não falou nada. Só olhava a estrada escura, as luzes dos postes passando rápido. No quarto, Lucas trancou a porta e sentou ao lado dela na cama. — Sofia... me desculpa te trazer pra ver isso. Ela balançou a cabeça. — Não. Eu precisava ver. Precisava saber que o Rafa tá fazendo isso por nós. Mesmo que doa pra caramba. Ele passou o braço ao redor dos ombros dela, hesitante. Ela encostou a cabeça no peito dele, sentindo o coração dele bater forte. — Você não tá sozinha nisso — murmurou Lucas. — Eu vou te ajudar. A gente vai achar um jeito de tirar seu irmão dessa sem que ele perca tudo. Sofia ergueu o rosto. Os olhos dele estavam tão perto, castanhos e intensos. Havia preocupação ali, mas também algo mais quente, mais profundo. Sem pensar muito, ela se aproximou. Os lábios se tocaram — primeiro devagar, quase com medo, depois com urgência. Um beijo que carregava toda a tensão do dia, o medo, a raiva, a gratidão. As mãos dele na cintura dela, as dela no cabelo bagunçado dele. Quando se separaram, ofegantes, ela sorriu pela primeira vez naquela noite. — Obrigada por estar aqui. — Eu não ia estar em nenhum outro lugar — respondeu ele, a voz rouca. Dormiram de conchinha, vestidos, na mesma cama — não por desejo (ainda não), mas por necessidade de calor humano. Lá fora, a lua iluminava a estrada que levava à fazenda onde, no dia seguinte, aconteceria um casamento que ninguém realmente queria. Mas Sofia já não era mais a mesma menina que chegara ali de manhã. Agora ela sabia a verdade inteira. E sabia que ia lutar.






